Mente criativa e figura central na cidade de Lisboa, a história de Eduarda Abbondanza confunde-se com a da plataforma que construiu há precisamente 27 anos. Com o passar do tempo, a primeira foi-se recolhendo, deixando-a entregue à árdua tarefa de gerir vontades, interesses e recursos em prol da moda nacional. Presidente da Associação ModaLisboa, pouco fomos sabendo de Eduarda, fora das quatro paredes do Pátio da Galé. Percebemos agora que nunca se remeteu totalmente a um cargo institucional, que, depois de uma década de 90 prolífera em avanços e experimentação, continuou a desenhar — conceitos, espaços, tapetes, bancos, estratégias de internacionalização, marcas e moda.
Em 1991, ano em que acontece a primeira edição da ModaLisboa, não havia como não ser pioneiro na área da moda, em Portugal. Em meados dos anos 80, começou a trabalhar com Mário Matos Ribeiro, hoje, tal como Abbondanza, professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Juntos representaram Portugal no estrangeiro, desenharam figurinos para cinema, teatro e espetáculos de dança, repensaram as fardas das forças militares portuguesas, criaram a primeira licenciatura em Design de Moda do país e conceberam as togas da Universidade Aberta de Lisboa. Em 1989 formaram, oficialmente, uma dupla. Além de impulsionadores da ModaLisboa, Abbondanza/Matos Ribeiro foram cabeças de cartaz do próprio evento, com loja própria no Bairro Alto.
O caminho teve percalços, de toda a espécie. Uma hepatite viral e uma anorexia infantil, ainda em criança, a dificuldade em ingressar num curso universitário e um casamento que a levou para Itália. Mais tarde, a não vinda de John Galliano a Lisboa, em 1993, a suspensão da ModaLisboa durante três anos, a mudança do evento para Cascais, o cancro da mama, em 2012, e a constante ginástica financeira para conseguir manter de pé a principal passerelle do país revelaram-se exigentes exercícios de resistência, persistência e superação.
No documentário ModaLisboa 50, que se estreou na última quarta-feira à noite, na RTP2, Eduarda contraria uma visão nostálgica e saudosista do passado. Mas não nega as glórias alcançadas: a transformação do Armazém Terlis, em Alcântara, a iniciativa + Portugal, que em 2002 levou o trabalho de criadores nacionais, da moda e não só, a Barcelona, numa parceria com o AICEP e o apoio do Ministério da Economia, o Estoril Fashionart Festival, que juntou desfiles, exposições, instalações e performances no eixo Estoril-Cascais, e mesmo o desenvolvimento da marca Pelcor.
Aos 56 anos e com mais uma edição à porta, Eduarda Abbondanza não mostra sinais de querer abrandar. Delegar sim, mas para poder dedicar-se a outros projetos dentro da plataforma ModaLisboa. A partir desta quinta-feira, desfiles, conferências, montras temporárias, exposições e encontros de networking ocupam o Pavilhão Carlos Lopes e a Estufa Fria. É a primeira edição depois da assinatura do protocolo com a ANJE (Associação Nacional de Jovens Empresários), entidade organizadora do Portugal Fashion, mas também a primeira a usufruir de fundos do Programa de Apoio à Internacionalização do Programa Operacional. A passerelle cresce, com um novo espaço de desfiles, bem como os seus bastidores, com novos estímulos e incentivos aos jovens criadores de moda e com a vinda de novos buyers a Lisboa. Ainda assim, os apoios financeiros à moda lisboeta continuam àquem.
No documentário que agora se estreou, rejeita olhar de forma saudosista e nostálgica para estes 27 anos de ModaLisboa. Ainda assim, que lições retira do percurso feito até aqui?
Hoje, em Portugal, somos detentores de uma série de coisas que, na minha geração, não eram um dado adquirido. Para nós, um livro de moda era como um anel de diamantes. Quando chegavam revistas, um comprava uma, o outro comprava outra e assim circulavam por toda a gente. Só conseguiríamos crescer se crescêssemos em conjunto, individualmente iríamos ficar isolados, sem produzir nada. Hoje, temos informação em todo o lado e isso tem um efeito facilitador incrível, mas ninguém fixa nada. Sabíamos os números de telefone todos de cor e, neste momento, só fixei o código da porta por uma dança dos dedos. Mas gosto imenso do que estamos a viver, estamos num momento de mudança e todas as mudanças são muito interessantes, mesmo com receios. Agora, acho que temos de nos treinar a pensar. Nós tínhamos de pensar, mas sobretudo de relacionar muita coisa dentro da nossa cabeça. É isso que faz a diferença. Estamos a viver um mundo adormecido, as pessoas reagem mas não agem. Nós tínhamos ação e uma ação que nasceu aqui [peito] e aqui [cabeça].
Isto pode não ter muito a ver com a ModaLisboa, mas sou uma pessoa que se relaciona com a moda enquanto uma disciplina maior. Se me perguntar o que se vai usar este inverno, sou capaz de não saber muito bem, estou noutra dimensão, noutra bolha. Para mim, moda representa o mundo, as gerações, os comportamentos, a maneira como o ser humano se relaciona com o seu lado aspiracional. É esse lado que a moda comunica, através de signos que uns leem e outros não, que tenho sempre como desafio ler e traduzir.
Quando, juntamente com outros criativos, criou a ModaLisboa, interessava-lhe acompanhar as tendências?
Interessava-me muito mais porque havia orientações mais precisas. As reuniões de cor eram feitas a quatro anos de distância, para a produção dos pigmentos. Trabalhávamos com essas ferramentas e só depois é que nos soltávamos para outras experiências e dimensões do design de moda. Hoje em dia, isso não existe. Acho que as reuniões passaram para dois anos e entrou aqui a parte tecnológica — os tecidos são produzidos de outras maneiras, com impressoras 3D, desenhados por cima e de muitas outras maneiras que usam outro tipo de pigmento. Se, de repente, decidir produzir tudo preto e não houver preto no mercado, consigo fazê-lo na mesma. Naquele tempo, eram as chamadas reuniões de concertação da cor, onde todos os produtores de pigmento de juntavam para definir as cores para dali a quatro anos, para poderem produzi-las. Quando se tinha usado roxo, por exemplo, ele ficava escalonado para daí a muito tempo. Não havia fast fashion, as pessoas compravam as coisas cuidadosamente — uns bons sapatos, umas boas botas, um bom sobretudo –, não era como agora. No passado, havia guarda-fatos, agora há closets. O número de peças para armazenar é não sei quantas vezes mais.
Isso foi uma boa evolução, uma má evolução ou simplesmente uma evolução?
Foi simplesmente uma evolução, com um lado bom e um lado mau. No passado, a moda não se deparava com estes grandes temas transversais, estação após estação: a sustentabilidade, a racionalização da produção, a mão-de-obra escrava, o emprego infantil. Tudo isto tem de estar sempre em cima da mesa, um bocado como temos o extintor para o caso de haver um incêndio. E as pessoas deviam, logo na escola, ser estimuladas nesse sentido. Mas não, os miúdos são muito estimulados ao contrário, é consumir, consumir, consumir, brinquedos, jogos…
Olhando para o início da ModaLisboa, com todas as limitações que havia no início dos anos 90, como é que aquele foi também um momento de tanta efervescência criativa?
Imagine que é português. Vive aqui, tem a sua vida organizada, gosta de viver aqui, mas, para desenvolver a sua atividade, tem de sair, não pode ficar. Na altura, não havia comunidade europeia, havia escudos e moda era um assunto que Portugal não contemplava. Da mesma maneira que, quando acabei o liceu, quis estudar arquitetura e não tinha faculdade, estava fechada. Tive muitos obstáculos ao meu lado mais natural de ser. Quando era pequena, a história da minha doença, que me impediu de continuar o ballet, depois ter encontrado a faculdade fechada. Isto para não falar de moda, isso nem sequer existia. Tinha algumas coisas em casa porque a minha mãe era muito informada, gostava muito do jet set internacional e comprava revistas de moda, não a Burda, a Paris Match e outras assim. Fazer a ModaLisboa era quase inevitável. Estávamos no sítio certo, no momento certo e atuámos da forma certa. Foram vários ingredientes. Dificilmente, alguém resistiria sozinho aqui. Havia a Ana Salazar, mas a própria Ana Salazar não começa imediatamente com a sua marca. Começa com uma atividade de importação, a Maçã, com a qual consegue criar uma oferta que não existia em Portugal. Isso junta muitas pessoas à volta dela e alavanca-a para avançar com a marca própria. E a Ana faz parte de uma geração toda ela com um lado empreendedor. Não era só um grupo de moda, mas um grupo de empreendedores.
Isso quer dizer que, além de criativos, eram pessoas com a capacidade de erguer estruturas e plataformas, mais uma vez, como a ModaLisboa?
A reflexão era diária. Tínhamos de ponderar muitas coisas, não havia histórico. Tudo o que fazíamos era pela primeira vez, até mesmo as próprias metodologias. Aprendemos na escola as metodologias do design e o que fizemos foi aplicá-las ao desenvolvimento de projetos. Hoje, participo em reuniões de aceleração, de pensamento positivo, em que as metodologias são muito semelhantes às que inventámos, ou melhor, que fomos inventado. Até porque, em 1993, começamos também a lecionar a primeira licenciatura em Design de Moda em Portugal, portanto, esse lado de investigação das metodologias criativas dava para tudo. A ModaLisboa era um estudo de caso onde fazíamos experiências. Depois, conseguíamos aplicá-las nas aulas e no desenvolvimento dos alunos. Imagine o que é arrancar com uma licenciatura, os anos todos, os programas todos, as disciplinas todas, os horários, era uma coisa brutal.
A primeira reformulação do uniforme do Exército foi feita por mim e pelo Mário [Matos Ribeiro]. A primeira reformulação dos uniformes da Marinha também foi feita por nós, tal como a primeira reformulação dos uniformes da Força Aérea. Por isso é que não gosto de olhar para trás, porque quando olho tremo dos pés à cabeça. Era o pânico, dossiers e dossiers de cadernos de encargos, de normativos que explicavam como é que tinha de ser o bolso. Para começar a trabalhar, tínhamos de estudar o que nos davam e ir para o terreno, porque a própria edição do regulamento do uniforme tinha parado antes do 25 de Abril. Foi um trabalho difícil, mas depois dele tudo ficou mais ágil.
Fomo-nos especializando, estudando, aprendendo, observando e cometendo erros. A questão metodológica foi sempre uma obsessão para nós. Sabia lá fazer um mailing, ninguém tinha mailings. Como é que fazia, se ninguém tinha? A partir de metodologias de construção projetual, construí um mailing. Era assim. Por isso é que durante muito tempo disse que a ModaLisboa é, ela própria, um projeto de design. Às vezes, quem trabalha comigo irrita-se porque tenho uma empatia imediata com designers, muito mais do que com as outras pessoas, falamos a mesma língua. Tudo o que se faz hoje nas startups, nós já fazíamos em 1991.
A história da ModaLisboa é também a história de uma país a ser educado para a moda?
Também. Não havia jornalistas de moda, não havia fotógrafos de moda. Eles nasceram a partir do momento em que nasceram conteúdos. A nossa geração tocou imensas pessoas — a Cristina Duarte, a Anabela Becho mais tarde, a Paula Lima, que não sei o que é que está a fazer agora, a Assunção Avillez, que já existia, mas tivemos de a captar, a Tereza Coelho, o Alexandre Melo. Tivemos de interessá-los, era um assunto importante, não era fútil. Moda era mais do que a bainha da saia.
Começa à frente do projeto, como criativa, e passa a ser uma figura institucional, o rosto da ModaLisboa. Foi um sacrifício necessário?
Foi. Os interlocutores dentro do grupo eram mais e isso permitiu que cada um de nós fosse desenvolver a área para a qual estava vocacionado. Claramente, gostava de desenvolver novos projetos — o Sangue Novo é meu, o LAB é meu — e da comunicação. Era uma expert em comunicação, não tendo nenhuma formação, mas estudando como é que o mundo se relacionava. O Mário foi o meu grande parceiro na marca e nas coleções. Quando começámos a trabalhar o marketing e a comunicação, o meu segundo grande parceiro foi o Ricardo Mealha. Tivemos aventuras incríveis e isso talvez seja o que mais me emociona, porque tudo o resto é do âmbito público, mas isso não, era uma coisa entre mim e ele. Aliás, nós começámos a trabalhar a ModaLisboa, enquanto marca registada, sem ninguém no grupo saber. Fizemos alterações ao logo, pusemos o TM e ficámos à espera que alguém reparasse e ninguém reparou.
Quando deu por si à frente da organização, sozinha, teve a sensação de que tinha ficado com a batata quente na mão?
Aparentemente, queria muito aquilo. Em bom rigor, queria que a ModaLisboa se salvasse, que fosse uma marca. Quer dizer, tinha investido tanto naquele projeto que queria que ele continuasse, mas não queria ficar a fazer tudo, nunca quis, prefiro ficar a fazer só as coisas que gosto. Mas, por essa razão, teve de ser. Há áreas que me custam, que não faço tão naturalmente, em que tenho de me preparar.
Durante estes anos, o que é que ameaçou mais a ModaLisboa? A questão da viabilidade financeira, momentos de crise criativa, a sua própria disponibilidade para continuar à frente do projeto?
Há momentos em que é fundamental atuar de uma determinada maneira e, às vezes, não temos meios para isso. Aí, corremos muitos riscos. Tentamos fazer sem os meios necessários e depois levamos na cabeça porque não fomos perfeitos. Não devíamos ter feito, mas se não fizéssemos, 50 mil coisas não iam rolar. Estamos sempre a correr riscos. A história do Galliano é apontada. O + Portugal foi feito em 2002 e foi um projeto tão transcendente… Vejo experiências e descobertas de agora que nós já fizemos em 2002. Quem é que é testemunha disso? Deixe estar, não faz mal. Se estivéssemos num país mais ambicioso e mais culto, não tínhamos só feito aquilo, tínhamos continuado. Ali estava a semente de tudo o que se está a fazer agora. O Fashionart, no Estoril, também foi uma experiência, até o catering era sobre moda, comiam-se sapatinhos, t-shirts, vestidos. Tudo era uma experiência. São sempre as questões económicas que impedem a continuação da ação, não a criatividade.
Novas contas para a ModaLisboa
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Chama-se ModaLisboa Go Global e é o projeto que, através do Programa de Apoio à Internacionalização do Programa Operacional, recebe um apoio de 499 mil euros (40% do investimento feito) durante quatro edições do evento. Em que consiste? No desenvolvimento de um novo espaço, o Check Point, focado em dar apoio metodológico e proporcionar uma rede de networking a novos criadores e empresários da área, mas também em trazer novos buyers a Lisboa (nesta edição serão cinco, provenientes de Espanha, Alemanha, Reino Unido e Hong Kong). Também o Sangue Novo sofre um upgrade. Passa a ser um concurso internacional (metade dos concorrentes são estrangeiros), do qual, nesta edição, sairão cinco finalistas. Cada um deles receberá 1000€ para desenvolver uma coleção a apresentar na edição de março de 2019 da ModaLisboa. Aí, o vencedor receberá 5000€ e um mestrado em Itália no valor de 29.000€. O restante orçamento da ModaLisboa continua a ser composto pelo apoio da Câmara Municipal de Lisboa e por patrocínios.
É difícil associar a moda à falta de dinheiro. Como é que isso acontece no caso da ModaLisboa?
Somos uma organização, não estamos a produzir nada. Nesta área, há coisas que não têm financiamento e que não vão para frente por isso. Outras têm muito, outras têm pouco. Por exemplo, na questão de Barcelona, não havia nada que falhasse. Nos estudos de retorno, triplicámos o que nos propusemos a conseguir numa primeira edição. E como não havia nada para imputar, houve um veto sobre os fundos comunitários para Lisboa. O que é que nos poderia parar? Impedir-nos de aceder. E foi isso que aconteceu, uma normativa a vetar Lisboa e Vale do Tejo. Contra isso, não pudemos fazer nada, não pudemos argumentar. E é assim, todos os seres humanos são criativos, mas, para quem tem essas valências muito desenvolvidas, é muito difícil viver sem as aplicar. Morre pelo caminho.
Mas esta 51ª edição da ModaLisboa já acontece com apoios comunitários.
Muito pequenos, o apoio de Lisboa é muito simbólico. É um fundo residual, mas nós quisemos concorrer também por uma questão de presença junto das instituições que gerem os fundos. E também como maneira de nos disciplinarmos, porque implica sempre uma reestruturação interna, com o objetivo de um dia virmos a poder aceder a fundos. Nem que não seja para começarmos a treinar novamente. O projeto que nós fizemos em 2002 saiu-nos do pelo, não tínhamos gestores, foi feito por nós. E estivemos estes anos todos afastados disso. Para se recomeçar tem que se recomeçar por uma ponta. Senão estamos sempre fora dessa estrutura, nem se lembram que nós existimos. Basicamente, o PO [Programa Operacional] vai apoiar coisas novas. É um apoio de 40%, vai sempre preciso angariar os outros 60%. É difícil. Os fundos comunitários no Norte foram sempre a 85% ou a fundo perdido. Atualmente é 85%, não tem nada a ver. É outra grandeza.
Foi uma espécie de punição?
Foi uma ocorrência, sei lá. Foi tal como o Galliano, podia não ter sido. Vamos olhar para trás para retificar o futuro, não para ficar a matutar no que aconteceu, senão cortava os pulsos. Foram tantas metralhadoras em cima, este tempo todo. Who cares?
Falando então de futuro, o que é que ele reserva?
Quero delegar. Não é de agora, estou a trabalhar já há algum tempo para formar a equipa, de maneira a que não tenha de estar tão presente, como tenho estado sempre. Entreguei o Sangue Novo ao Miguel Flor, em contrapartida fui desenvolver a Workstation. Se não tiver essa possibilidade, desfaleço. Tenho de ter alguma liberdade, de me ensaiar, de me pôr à prova. Será muito difícil para mim lidar com aquela história da carreira e do louvor. Ando sempre a saltitar de uma coisa para a outra, a minha natureza é pôr coisas a andar, não preciso de ficar até ao fim para receber os louros. Estou a borrifar-me para isso.
Então está a preparar uma retirada?
Estou. Não uma retirada no sentido de me reformar, mas estou a formar a equipa para que possa fazer outras coisas e ver outras pessoas a desenvolver projetos que foram meus.
Mas o que é que tem em vista?
Se disser, não faço. Sou supersticiosa? Sou. Não sou perfeita.
Mas dentro da ModaLisboa?
Sim, a ModaLisboa permite muita coisa. Vamos ver. A maneira como faço uma coisa agora não será, de certo, a maneira como farei daqui a seis meses. Para mim, daqui a seis meses, mudou tudo. E há um lado meu que é importante e que não estou a desenvolver há muito tempo. Faço algumas coisas, mas ninguém sabe. Desenho um tapete, os bancos, um projeto… Já tive uma marca, já fiz vários projetos. Estive a desenvolver uma marca que entretanto andou para trás em vez de andar para a frente, a Pelcor. Na altura, foi um projeto de raiz, incrível. Adoro marcas, sou uma ‘marquista’. Adoro a experiência de loja, o packaging, o perfume, o atendimento, a maneira como se relacionam comigo no espaço, adoro isso tudo e adoro comprar coisas. Não gosto nada de department stores, gosto de entrar e sair, porque cada vez que saio para a rua e entro noutra loja, estou a entrar noutra experiência.
Assim sendo, não lhe causa frustração que uma parte dos designers da ModaLisboa não consiga dar esse passo, ter uma loja?
Eu própria não consegui. Quando encerrei a marca não foi por ela não ser a melhor em Portugal, nem por estar cravada de dívidas. Quando parei, tinha dinheiro para pagar todos os encargos e fechar sem negativos. A partir dessa altura sim, iria entrar em défice e isso não queria. Em bom rigor, queria fazer uma marca internacional, porque os clientes que Portugal tinha para a minha marca, eu já tinha todos. Tinha de fazer uma marca internacional e não tinha investimento para isso. Tinha de ser tudo muito bem feito e em moda isso é uma questão para os investidores. A Amorim Luxury é detentora de uma parte da Gucci. Como é que isso aconteceu? A Gucci contactou o senhor Américo Amorim para lhe disponibilizar — já não me lembro de 15% se quanto era — para ele investir e comprar. Porquê? Porque eles tinham estado a estudar o mercado e descobriram este senhor que trabalhava com cortiça e que tinha de esperar nove anos para extrair a sua matéria-prima. Pensaram que alguém que baseia o seu negócio, não na pressa, mas na capacidade de esperar e de gerir essa espera, seria o parceiro ideal para uma marca de luxo que precisa de tempo. Na altura, queria crescer assim, mas não havia investimento. Parei, com a marca no auge, para ver se alguma coisa mudava e se tínhamos hipótese de avançar. Só que não mudou assim tão rapidamente. Ainda hoje não há investimento para a moda.
Consegue ver isso através da ModaLisboa. Também aí faltam Amorins?
E não só. A nossa ideia sempre foi: se apoiarmos os criadores, eles têm hipóteses de ficarem ricos; se ficarem ricos, vão poder pagar-nos para continuarmos a crescer. Essa história não acontece porque há outras organizações que surgem no meio e que desviam as coisas todas para resultados muito pouco palpáveis. Porque se não se andasse a competir internamente, se se tivesse sempre apontado para aquilo que é a tarefa maior, provavelmente os nossos criadores já seriam bem mais potentes e bem mais ricos.
Mas acha que essa concertação em torno da ‘tarefa maior’ está mais próxima hoje?
Está bastante mais próxima, mas já não passa por aí, isso já foi. Tudo tem um tempo e nós já perdemos 20 anos. Há toda uma classe de criadores que se esgotou nesse processo e a mudança dificilmente passará por eles, terá de ser outra geração que já estamos a preparar. Digamos que esses abriram caminho. Mas é muito tempo, 20 anos dá para criar uma marca que já tem uma série de produtos. Não quer dizer que alguns não tenham feito isso, mas poucos. Em Portugal, não há uma realidade rica nesse aspeto e, com tudo o que foi investido, devia haver. Nisso, Espanha tem uma proteção em relação aos seus autores, recursos e tradições muito grande. Portugal tem essa questão. Está a ficar bastante melhor, mas às vezes acontecem coisas e as pessoas entram longo em depressão outra vez. O Euro, a Expo ’98, a Eurovisão — tudo isso são marcadores muito importantes para a melhoria da autoestima portuguesa. Somos fatalistas, negativos e reagimos mais rapidamente às coisas más do que às coisas boas. Isso tem de ser mudado porque isso condiciona o país, mesmo.
Gostava que ver a ModaLisboa diferente do que ela é hoje? Maior?
Continuo a trabalhar, não sou uma pessoa frustrada nem ressabiada ou com raiva. Tive um cancro e nesse processo de cura fiz quimioterapia, mas também mudei o meu mindset. Isso amenizou-me e fez-me ser muito mais decidida quanto às pessoas com quem me relaciono. Relacionava-me só com pessoas fascinantes e, muitas vezes, as pessoas fascinantes são igualmente tóxicas, tóxicas na sua maneira de ser. Se calhar, neste momento, as pessoas fascinantes para mim têm outras qualidades que minimizam o lado tóxico. O que mais gosto na vida é de rir. Faço qualquer coisas que me faça rir, é a manifestação mais exuberante e mais alegre. O que queria fazer e não fiz ficou para trás, fiz outras coisas que queria muito fazer. Só tenho de aprender as lições para não voltar a meter o pé na poça. Gostava de fazer projetos novos na ModaLisboa, mas também gostava de viajar, de ir para o Laos, para o Myanmar, para o Peru, de fazer experiências psicadélicas e transcendentais, yoga, meditação, de tirar 15 dias de férias sozinha.
Nesse caso, fiquemo-nos pelo futuro mais próximo: este fim de semana. Esta edição é um ponto de viragem para a ModaLisboa?
Um ponto de crescimento. Lisboa mudou. Essa mudança, para além de todos os aspetos negativos que sabemos, também tem aspetos positivos. Esta nossa relação com a cidade, que no passado foi dá-la a descobrir aos lisboetas, é captar novos públicos. Há muita gente internacional a residir em Lisboa, de vários pontos do mundo, e são pessoas que têm atividades de natureza empreendedora. Portanto, são setores da sociedade lisboeta que, de repente, existem e que são ativos.
E novos públicos. Uma Gucci e uma Prada precisam de novos públicos, nós somos uma marca e também precisamos. Daí as ações que são abertas ao público, porque isso também faz parte da educação e de fazer crescer as pessoas na área da moda, relacioná-las naturalmente com esta área. As novas gerações são muito diferentes. É preciso entendê-las e acompanhá-las e, de repente, havia um intervalo que não estava a ser contemplado. Fazemos o Sangue Novo, mas depois nem toda a gente tem capacidade para saltar logo para o LAB, no entanto há um tecido criativo muito interessante aí no meio e esse estava disperso. Então criámos uma mini plataforma intermédia para pessoas que, a desenvolverem marcas, não as desenvolvem no sentido de coleção completa, mas sim num sentido mais ágil, mais dos dias de hoje, de coleções cápsula, de mono produto. Esta plataforma tenta responder àquilo que são os desafios de agora, de quem produz, de quem procura. Vai tudo estar á venda, logo.
Atualmente, estamos coligados com uma série de associações e isso também ocupa tempo. São relações institucionais e não só. Temos protocolos com toda a gente e fomos exemplares nisso. Estamos na altura de unir forças e de trabalhar em rede. Começámos pela APICCAPS, depois fizemos protocolos com o CENIT e com a ANIVEC, estabelecemos relações muito próximas com a AORP e agora com a ANJE.
Fala num momento de crescimento para a ModaLisboa. Isso é reflexo de um desafogo financeiro?
Não tenho desafogo financeiro. Poderia ter se o investimento privado não tivesse diminuído tanto. Portugal não aumentou assim tanto a presença de marcas e produtos, nem o budgets. Pelo contrário, passarem a ser budgets ibéricos e sabemos que aí o grosso fica ali ao lado. Depois, um fenómeno novo: os influencers. Isto significa que o investimento privado se pulverizou. No nosso caso, desceu drasticamente.