Eduardo VIII ficou na história por ter abdicado do trono para se casar com Wallis Simpson, uma americana duplamente divorciada e sem sangue azul nas veias (o pai era filho de um comerciante de farinha, a mãe de um vendedor de seguros). A aura romântica deste gesto, que colocou o amor acima do apego ao poder, tem vindo a ser obscurecida por rumores sobre as simpatias de Eduardo pelo regime nazi, pela sua disponibilidade para promover a paz entre a Alemanha e a Grã-Bretanha e até mesmo para regressar ao trono de uma Grã-Bretanha ocupada pela Alemanha.
É esta a tese defendida por Andrew Morton em 17 cravos: A realeza, os nazis e o maior complô da história, em cuja contracapa pode ler-se: “O plano era simples: a Alemanha invadiria a Grã-Bretanha e o duque de Windsor [ex-Eduardo VIII] seria reposto no trono como rei-fantoche. Quando a invasão não se concretizou, o plano mudou e nasceu a Operação Willi: raptar os duques de Windsor […]. Deste modo, a Alemanha teria dois reféns reais para forçar a Grã-Bretanha a ajoelhar-se”.
O assunto interessará porventura a todos aqueles cujo coração bate mais depressa quando estão na proximidade de alguém com sangue azul e tem um picante especial para os leitores portugueses, por a Operação Willi ter sido gizada quando o duque e a duquesa de Windsor estavam hospedados na casa do banqueiro Ricardo Espírito Santo, no Estoril, no Verão de 1940.
Eduardo VIII teve uma longa vida, de 1894 a 1972, mas um breve reinado: durou apenas entre Janeiro e Dezembro de 1936. Eduardo pretendia casar-se com Wallis Simpson e manter-se no trono, mas defrontou-se com a oposição unânime da família real britânica e dos chefes de governo da Grã-Bretanha e dos Domínios (Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul). Eduardo VIII ainda sugeriu a possibilidade de um casamento morganático, isto é, em que Wallis não adquiriria o estatuto de rainha e os eventuais descendentes de ambos ficariam excluídos da linha sucessória. Mas também esta opção foi rejeitada, pelo que Eduardo escolheu a abdicação.
Ainda assim, esperava que, na qualidade de duque de Windsor, mantivesse a maioria das suas prerrogativas e fosse contemplado com um posto de elevada responsabilidade e visibilidade, e também que Wallis fosse tratada com as honrarias inerentes ao título de duquesa de Windsor. Porém, a família real não estava disposta a fazer qualquer cedência: nunca aceitou Wallis e tentou, por todos os meios, manter o duque longe da Grã-Bretanha e de cargos oficiais, não perdendo uma ocasião para minimizar a sua relevância.
[Discurso de abdicação de Eduardo VIII]
https://www.youtube.com/watch?v=re6G1hTlrEo
A realeza impossível
Se o duque de Windsor esperava que, embora tendo abdicado, ainda teria, tal como Wallis, o estatuto de “Sua Alteza Real”, no palácio de Buckingham, no Parlamento e no Governo havia muitos que entendiam que, após a abdicação, ele era apenas “Mr. Edward Windsor”. O casamento de Eduardo e Wallis, a 3 de Junho de 1937, teve lugar em França, não na Grã-Bretanha, e não contou com um único convidado da família real britânica, uma vez que o irmão de Eduardo, que fora coroado como Jorge VI no mês anterior, interditou os seus familiares de estarem presentes. O casal ducal teve também de contentar-se em ver o seu matrimónio oficiado por um simples reverendo, já que a Igreja Anglicana também não autorizou a presença de um bispo na cerimónia.
O tratamento dispensado aos duques de Windsor pela família real parece ter sido mesquinho, rígido, obstinado e vingativo e foi suscitando no casal um ressabiamento crescente, com o duque a trocar missivas particularmente azedas com a família e a reclamar de Jorge VI, em telefonemas ásperos e intermináveis, dinheiro para ele e títulos para Wallis e esta a referir-se à família real em termos invariavelmente cáusticos. Tudo piorou quando perceberam que o que julgavam ser um período de exílio temporário se iria tornar definitivo: Jorge VI ameaçou o duque de Windsor que se pusesse pé em solo britânico sem ser convidado, perderia automaticamente o estipêndio que lhe era pago – e que saía do orçamento pessoal do rei, uma vez que o Governo se recusara a incluir o duque de Windsor na Civil List, através da qual eram pagas as despesas de representação das figuras de Estado.
A cerimónia de casamento, que teve lugar no Château de Candé, pertencente a Charles Bedaux, um milionário americano de origem francesa que fizera fortuna como consultor de gestão (sobretudo no domínio da optimização do trabalho – ou da exploração dos trabalhadores, consoante o ponto de vista) e se tornaria um colaborador próximo dos nazis, foi uma pífia sombra do espectáculo grandioso que o casal tinha idealizado.
[O casamento de Eduardo e Wallis, no Château de Candé, em 1937]
Terminada a lua-de-mel, o duque de Windsor, ostracizado e sem cargo ou função oficial, tentou manter um perfil de estadista internacional. Com esse fito, não encontrou passo melhor a dar do que fazer uma visita à Alemanha, supostamente para “saber como é que os operários viviam no admirável mundo novo de Hitler” (Morton).
[A visita dos duques de Windsor à Alemanha, em 1937]
Por esta altura – Outubro de 1937 – o regime nazi ainda não mostrara tudo aquilo de que era capaz, mas já não restavam dúvidas a qualquer pessoa bem informada sobre a sua natureza essencial. Mas o casal ducal passeou-se candidamente pela Alemanha, o duque terá mesmo correspondido com a saudação nazi a alguns cumprimentos e honrarias e a visita culminou num encontro particular de 50 minutos entre o duque e Hitler. Num cenário em que a Alemanha se via a braços com um crescente isolamento na comunidade internacional, a propaganda nazi rejubilou com o “presente” oferecido pelo duque de Windsor.
A averiguação pelo duque de Windsor das condições de vida e trabalho do proletariado mundial deveria ter tido uma segunda etapa nos EUA, mas esta visita, sugerida, planeada e financiada pelo amigo Charles Bedaux, acabaria por ser cancelada à última hora, por Bedaux ter sido assoberbado por uma conjugação de dissabores – contestação dos sindicatos aos seus métodos de gestão desumanos, problemas com o fisco e um “golpe de estado” que o fez perder o controlo da sua empresa – vendo-se forçado a escapulir-se para França. Mas a verdade é que a visita aos EUA, cujo programa revelava menos preocupações com o proletariado do que com a projecção da imagem do duque de Windsor como “embaixador mundial de um movimento de paz que não passava de uma fachada para as ambições nazis” (Morton), já enfrentava fortes resistências nos EUA e na Grã-Bretanha ainda antes da “fuga” de Bedaux.
Este fiasco parece ter retirado ao duque de Windsor a pouca iniciativa que o animava, de forma que se contentou em levar uma vida de ócio e diletantismo, alternando viagens com estadias nas sua luxuosa casa no Boulevard Souchet, em Paris, e no Châteaux de La Croë, em Cap d’Antibes – foi nesta mansão (que entretanto passou pelas mãos de Onassis e hoje pertence a Roman Abramovich) que a eclosão da II Guerra Mundial o apanhou.
O duque ofereceu-se de imediato para dar o seu contributo à Grã-Bretanha, mas o Palácio de Buckingham não se mostrou disposto a amenizar o “bloqueio”. O duque acabou por ser adstrito, com atribuições pouco relevantes, à missão militar britânica em França, mas, afirma Morton, soube usar esse posto para obter informações sobre o dispositivo de defesa francês e em particular sobre a famigerada Linha Maginot – o problema, sugerem as teorias conspirativas, é que as terá transmitido aos alemães (teoria alternativa sustenta que foi Wallis a “espremer” o marido e informar os alemães).
Um Duque em Cascais
Com ou sem ajuda do duque, em Maio de 1940, as divisões alemãs romperam as linhas francesas com inesperada facilidade, levando o duque a solicitar um cargo num local mais distante da frente de batalha (e mais próximo da casa de Cap d’Antibes). Foi colocado em Nice, mas o avanço das tropas alemãs para sul era imparável, pelo que, a 17 de Junho, o duque solicitou que um navio da Royal Navy o fosse buscar a Nice. É claro que a Royal Navy tinha mais com que se preocupar – a desesperada evacuação de Dunkerque fora concluída duas semanas antes – pelo que os duques de Windsor tiveram de conformar-se em fugir de carro, deixando para trás a maioria dos pertences na casas de França. Chegaram a Barcelona a 20 de Junho, passaram por Madrid e no início de Julho chegaram a Lisboa – ficaram instalados em Cascais, na casa de Ricardo Espírito Santo Silva, banqueiro com boas relações com britânicos e alemães e que fora também o anfitrião do duque de Kent numa recente visita a Portugal que, oportunamente, terminara imediatamente antes da chegada do duque de Windsor.
Com o domínio nazi na Europa a estender-se do círculo polar árctico à fronteira espanhola, o exército inglês derrotado e sem equipamento (ficara quase todo nas praias de Dunkerque), a RAF envolvida numa luta de morte com a Luftwaffe e Hitler a reunir meios para saltar sobre o Canal, Churchill teve ainda de arranjar tempo para se preocupar com o destino a dar ao duque de Windsor: nomeou-o governador das Bahamas, um cargo que o manteria afastado da Grã-Bretanha e não envolvia responsabilidade nem visibilidade – e que Wallis, despeitada, classificou como “um empregozinho patético num fim de mundo horroroso”.
Os duques de Windsor foram arranjando subterfúgios para adiar a partida para as Bahamas – “o equivalente social do exílio de Napoleão em Santa Helena” – enquanto os alemães se afadigavam para atraí-los para a sua teia, tendo para esse fim montado a Operação Willi. O ressentimento do duque de Windsor contra a casa real, os seus comentários depreciativos sobre a actuação de Churchill, os rumores de que os duques de Windsor teriam simpatias pela nazismo (reforçados pela viagem de 1937) e a convicção, expressa publicamente pelo duque, de que “com ele como rei a guerra não teria começado”, terá levado os alemães a alimentar a ideia de que poderiam usar o duque de Windsor em seu proveito. A demora do duque de Windsor por Lisboa – a estadia prolongou-se durante quase um mês – terá contribuído para reforçar a ideia de que o duque de Windsor estaria indeciso sobre o rumo a tomar. A demora também será aproveitada pelos duques para mover cordelinhos e conseguir que alguns pertences pessoais – entre os quais um “fato de banho verde-Nilo” – fossem resgatados das suas casas em França.
Os alemães, sob a orientação de Walther Schellenberg, um dos mais capazes agentes do SD (Sicherheitdienst, os serviços de segurança das SS), destacado expressamente para esta missão, tentaram um misto de aliciamento e de intimidação: um emissário espanhol, Miguel Primo de Rivera, que era amigo do duque convidaria este para uma caçada em Espanha, que serviria de pretexto para lhe propor alinhar com os alemães (o que, alegadamente, incluiria uma oferta de 50 milhões de francos suíços). Por outro lado, foi criado um ambiente persecutório em torno da casa de Cascais, com janelas a serem apedrejadas e rumores de que os serviços secretos britânicos pretendiam eliminar o duque de Windsor. Mas a espionagem alemã não tinha as mãos livres: os duques de Windsor eram também vigiados de perto pelos serviços secretos britânicos (entre os seus agentes estaria um certo Ian Fleming, hospedado no Hotel Palácio, no Estoril) e pela PIDE (Salazar, preocupado em manter a neutralidade, não estaria interessado em que algo acontecesse aos duques de Windsor enquanto estivessem em território português).
Por outro lado, as pressões de Londres para que o duque de Windsor assumisse o cargo nas Bahamas iam subindo de tom, pelo que o duque acabou por resignar-se e marcar 1 de Agosto como data de embarque. Quando souberam disto, os alemães decidiram passar da persuasão ao rapto, mas ou Schellenberg foi francamente incompetente ou a protecção da PIDE e dos serviços secretos britânicos foi eficaz: na data aprazada, o casal embarcou de Lisboa com destino às Bahamas e o melhor que Schellenberg conseguiu foi atrasar o embarque da sua bagagem (que, diga-se de passagem, costumava ser extravagantemente volumosa).
Nas Caraíbas
Com a partida para as Bahamas, dissiparam-se as possibilidades – se é que alguma vez existiram – de colocar o duque de Windsor ao serviço da Alemanha nazi. O casal aborreceu-se mortalmente naquilo que o duque designava como “uma colónia de terceira categoria” e em Março de 1945 apresentou a sua demissão do cargo. O casal reinstalou-se em França, já que continuava a ser malquisto na Grã-Bretanha e, por outro lado, o governo francês lhe concedeu uma espécie de “Visto Gold”: isenção de impostos e uma casa em Neuilly-sur-Seine por uma renda simbólica. O duque de Windsor não voltou a receber qualquer cargo oficial e ocupou o tempo em eventos sociais e viagens de lazer, complementados por expedientes para dilatar os seus rendimentos à custa dos contribuintes, usando as viagens e as prerrogativas do título para comprar bebidas e artigos de luxo sem pagar taxas alfandegárias (actividade que iniciara como governador das Bahamas e que, quando não é praticada por gente de sangue azul, costuma ser classificada como “contrabando”). Resta saber se teria qualificações intelectuais para mais do que isto.
O mergulho na irrelevância dos duques de Windsor após a partida de Lisboa a 1 de Agosto de 1940 não significa que tenham deixado de ser motivo de preocupação para o Governo britânico – destas apoquentações dão conta os cinco últimos capítulos (13 a 17) de 17 cravos: são 90 páginas sumamente maçadoras que relatam com minúcia de guarda-livros as batalhas burocráticas e diplomáticas movidas pelo Governo britânico para recuperar (e destruir) cartas e outros documentos eventualmente comprometedores para os duques de Windsor que foram apreendidos na Alemanha no fim da guerra. Presume-se que, este empenho teve menos a ver com o interesse em salvar especificamente a pele dos duques de Windsor e mais com a preservação da imagem da monarquia britânica. Todavia, após avanços e recuos e peripécias várias, envolvendo intervenções directas de personalidades do gabarito de Churchill e Eisenhower, o “dossiê Windsor” acabou por ser tornado público a 1 de Agosto de 1957. Só que, entretanto, o duque e a duquesa já tinham publicado os seus livros de memórias – respectivamente A king’s story (1951) e The heart has its reasons (1956), ambos redigidos por escritores-fantasma – e as memórias do super-espião Walther Schellenberg também tinham vindo a lume, postumamente, em 1956, pelo que as revelações do “dossiê Windsor” foram parcialmente esvaziadas. De qualquer modo, o duque rejeitou quer as revelações de Schellenberg quer os documentos que indiciavam a sua simpatia pela causa nazi – o seu advogado classificou alguns dos relatórios como “em parte puras invenções e em parte grosseiras distorções da verdade”.
As revelações e os erros
Sendo o conteúdo de 17 cravos genericamente do domínio público e sendo há muito conhecidas as teorias conspirativas que acusam os duques de Windsor de terem espiado a favor dos nazis ou de terem planeado colaborar com eles, tendo em vista reocupar o trono após a eventual rendição da Grã-Bretanha à Alemanha, que nos traz o livro de Andrew Morton?
Não aportando elementos novos, poderia ao menos ter o mérito de uma perspectiva inovadora ou de uma síntese clara e escorreita. Em vez disso, Morton aposta na insinuação, no esbatimento de fronteiras entre rumores fantasiosos e factos comprovados, na produção de afirmações a que não se dá substanciação e no lançamento de pistas conspirativas a que não se dá seguimento. Para piorar tudo, o autor parece incapaz de discernir entre factos relevantes e irrelevantes, pelo que maça o leitor com detalhes ridículos e se esquece de falar do que realmente conta. O resultado são 367 páginas de coscuvilhice errática, mais própria de artigo sobre realeza para a Hola! do que de livro de divulgação histórica.
Tome-se o caso da participação de Eduardo na I Guerra Mundial: Morton apresenta-o como “um genuíno herói de guerra, com medalhas para [o] provar”, mas não apresenta qualquer facto que ateste a sua heroicidade. Nas poucas linhas que dedica ao assunto, Morton afirma que “foi obrigado a ficar em Inglaterra quando a sua unidade foi combater em França” e que mesmo quando foi autorizado a ir para França foi para ficar no quartel-general e apenas “ocasionalmente podia aproximar-se da linha da frente”. No entanto, não o terá feito para combater mas para fazer visitas ou inspecções, o que, mesmo podendo ser perigoso (Morton relata uma ocasião em que, acompanhando o major-general Lord Cavan, terá ficado sob o fogo da artilharia alemã), dificilmente pode ser classificado como “heroísmo”. Eduardo recebeu uma medalha em 1916 pelo empenho que sempre manifestou em visitar a frente de batalha, mas não há notícia de que tenha desempenhado actos heróicos ou que tenha entrado em combate, pelo que pode presumir-se que se tratou de uma condecoração “de secretaria”. Se Eduardo era corajoso ou tinha estofo de herói, não teve oportunidade de o provar, pelo que a imagem do “genuíno herói de guerra” nada tem que a sustente.
Apesar de ter 367 páginas à sua disposição, Morton esquece-se de dizer que Eduardo obteve brevet de aviador em 1918, uma informação relevante para uma época em que voar, mesmo sem ser em combate, requeria mais coragem do que acompanhar altas patentes do Estado Maior em visitas à frente.
No livro de Morton, Eduardo entra em cena como “o primeiro símbolo sexual real da era moderna”, cujas “melancólicas feições adornavam as mesas de cabeceira e as paredes de dormitórios de milhares de meninas de colégios e jovens mulheres em toda a Grã-Bretanha e no império”, mas nada se sabe sobre a sua infância e educação – é preciso chegar à pg. 33 para que nos seja revelada a sua data de nascimento! Menciona-se que Eduardo era tratado, no círculo familiar, por David, mas não se diz tal era justificado por o seu nome ser (tome-se fôlego) Edward Albert Christian George Andrew Patrick David.
De Eduardo ficamos a saber as superficialidades que costumam ser assunto nas “revistas de coração” mas pouco é desvendado sobre o seu carácter – teria sido útil, por exemplo, saber que passou oito semestres em Oxford sem ter obtido qualquer grau académico; ou que Alan Lascelles, seu secretário privado nos anos 20 (e uma das pessoas mais abalizadas para o avaliar), entendia que “por qualquer razão hereditária ou psicológica, o seu desenvolvimento mental cessou quando atingiu a adolescência”.
Mas até o estatuto de Eduardo como “primeiro símbolo sexual” mereceria reflexão mais séria: se à saída da adolescência, Eduardo deixaria as raparigas a suspirar, o ar de rapazinho angelical desvaneceu-se num ápice: a boca torceu-se num ricto amargo e maldoso e a sua expressão by default passou a ser a de quem está a fazer um imenso frete ou sofre de azia (ou ambas as coisas). Entrado nos trintas, a sua figura prestava-se a encarnar o papel de um pequeno velhaco azedo e sádico e é duvidoso que, pelos quarentas, ainda houvesse mulheres a ter sonhos húmidos com o duque de Windsor.
Uma questão de imagem
O progredir do livro não ajuda a formar uma ideia sobre Eduardo –a uma dezena de páginas do fim, escreve-se que a jardinagem era “a outra grande paixão da sua vida”, sem que nas 356 páginas que ficaram para trás haja qualquer indicação de que Eduardo fosse capaz de distinguir uma batateira de uma orquídea. Num livro em que seria fulcral apresentar elementos que permitissem concluir se o carácter de Eduardo seria ou não compatível com os actos e intenções que lhe são atribuídas pelas teorias conspirativas, o duque de Windsor não passa de um borrão indistinto. Num livro que pretende apresentar Eduardo como simpatizante da ideologia nazi, pouco ficamos a saber sobre o que pensava da política e da sociedade – é apresentado genericamente como conservador e anti-comunista, mas teria sido útil, por exemplo, reproduzir as suas declarações impregnadas de preconceito racial sobre negros ou sobre aborígenes australianos (assunto que Morton omite).
As lacunas de informação sobre os antecedentes e o carácter de Eduardo contrastam com a abundância de detalhes sobre a vida pessoal e personalidade de Robert Currie Thompson, um obscuro funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico que, em 1945, foi encarregado de se apoderar de documentos alemães comprometedores para o casal Windsor (os que viriam a constituir o disputado “dossiê Windsor”), embora seja completamente irrelevante para efeitos deste livro o liceu em que Thompson estudou ou a forma como ascendeu na burocracia do ministério.
Sempre pronto para se preocupar com ninharias e deixar de fora o que importa, Morton, embora dedique numerosas páginas ao caso amoroso entre Eduardo e Wallis e aos obstáculos que foram levantados ao casamento de ambos, esquece-se de mencionar um dos impedimentos mais difíceis de contornar: o rei era, por inerência, o líder da Igreja Anglicana e a doutrina desta opunha-se a casamentos envolvendo divorciados cujo ex-cônjuge ainda fosse vivo, e ambos os ex-cônjuges de Wallis – o oficial da marinha americana Earl Winfield Spencer e o homem de negócios Ernest Simpson – estavam vivos à data do seu casamento com Eduardo.
[Jornal de actualidades revela a tensão crescente envolvendo o projectado casamento de Eduardo VIII e Wallis Simpson. Aos 2’35 pode ouvir-se a explanação dos argumentos da Igreja Anglicana (representada aqui por um bispo do seu ramo americano) contra o casamento]
A pulsão de Morton para fazer afirmações não fundamentadas pode ser atestada, por exemplo, nas pg. 267-8: escreve-se que “o Ministério das Colónias, Churchill e Roosevelt [admitiam] que [o duque de Windsor] estava a desempenhar bem o cargo de governador [das Bahamas]”, mas não se fornece qualquer informação factual que permita avaliar se o seu desempenho foi satisfatório ou não. Para começar, no calor de um conflito de magnitude e intensidade inauditas, Roosevelt deveria ter uma infinidade de coisas mais importantes com que se preocupar do que a avaliação do desempenho de uma figura insignificante como governador de uma insignificância como as Bahamas. Por outro lado, o duque de Windsor não tinha à data da nomeação para o cargo de governador, qualquer experiência “profissional” que não fosse a de acenar para multidões, tentar não adormecer durante discursos de boas-vindas e sustentar conversações elegantes em bailes e recepções, pelo que é de duvidar que pudesse ter brilhado nas funções de governador.
Aliás, o próprio Morton fornece fortes indícios neste sentido umas páginas atrás, quando descreve o comportamento do duque de Windsor quando chegou a Nassau, nas Bahamas: o diário do duque está preenchido não com os seus planos para a gestão da colónia mas com queixas sobre o tempo quente e húmido, que apenas refrescava quando soprava o vento de nordeste – mas este tinha o inconveniente de produzir “o pior barulho mistral para nos dar cabo dos nervos”. O diário prossegue com mais queixas do playboy real: “Há um campo de golfe plano e muito desinteressante. […] A Casa do Governo [a sua residência oficial] estava num estado tão lastimável, quase sem mobiliário e com a aparência mais de uma instituição que de uma residência oficial, que passada uma semana nos recusámos a viver nela até ser remodelada”.
[O duque de Windsor nas suas funções como governador das Bahamas, 1941]
Quando a remodelação foi concluída, a casa exibia em lugar de destaque “um retrato de corpo inteiro de Wallis” e a colecção de objectos que o duque tinha em grande estima: “um suporte para 50 cachimbos, uma caixa feita de madeira do navio de Nelson, The Victory, um punhal de aspirante da marinha e um bastão de marechal de campo” (o leitor perguntar-se-á o que faria nesta colecção “um bastão de marechal de campo” – acontece que o Duque era marechal de campo honorário, informação que Morton também omite).
O duque lamenta no seu diário quão difícil foi para Wallis tornar a nova residência habitável, quando o casal se vira obrigado a deixar para trás os pertences das suas duas casas em França – “c’est la guerre”, concluía o duque, com uma resignação que só pode soar como hipócrita e repassada de auto-comiseração face a uma guerra em que dezenas de milhões perderam a vida e centenas de milhões perderam tudo e passaram por privações inimagináveis, mas em que os duques de Windsor nunca deixaram de viver como nababos. Bastará mencionar que, durante a estadia do casal nas Bahamas, Antoine (esclareça-se, já que Morton não o faz: Antoine de Paris, o primeiro cabeleireiro do jet set, que se estabelecera na Saks Fifth Avenue) voava regularmente entre Nova Iorque e Nassau, expressamente para cuidar do cabelo da duquesa. “C’est la guerre…”
Mais enervante do que a absoluta incapacidade de Morton para separar o essencial do acessório, é o seu registo toca-e-foge: afirma, por exemplo, que “nos Estados Unidos até havia uma sociedade chamada Amigos do Duque de Windsor na América, cujos membros esperavam vê-lo receber um cargo de embaixador de algum tipo no seu país”. Quantos sócios tinha? Com que peso na sociedade, política e economia? Eram duas solteironas xexés que se juntavam uma vez por semana para tomar chá e comentar o ar garboso que Eduardo tinha nas fotos dos seus 20 anos? Ou contava com uma hoste de senadores e capitães da indústria? O desejo de ver o duque de Windsor “receber um cargo de embaixador” ficou lavrado em acta da sociedade ou foi divulgado num comunicado? Não é por Morton que ficaremos a sabê-lo.
O registo toca-e-foge é também evidente quando Morton cita Fulton Oursler, então jornalista da revista Liberty, que entrevistou o duque em Dezembro de 1940, quando de uma visita deste a Miami.
[Os duques de Windsor visitam Miami em 1940]
Após a entrevista, Oursler ter-se-á encontrado, alega ele, com Roosevelt, que terá proferido gravíssimas acusações sobre o duque, nomeadamente a de que, em 1940, “havia nove aparelhos sem fios de ondas curtas em Paris a enviar informações sem cessar para as tropas alemãs”, dando a entender que o duque estaria por trás de tal dispositivo (fica assim explicada a débâcle de 1940: não foi a impreparação das forças armadas francesas, a incompetência dos seus generais, a desmotivação dos seus soldados, os conceitos estratégicos e tácticos obsoletos, a eficácia demolidora da Blitzkrieg alemã – foram nove rádios montados pelo duque de Windsor). Morton informa que o encontro entre Oursler e Roosevelt não consta dos registos oficiais e que, segundo Oursler, só teve o cão de Roosevelt como testemunha. Mas não fornece quaisquer elementos sobre a credibilidade de Oursler em geral ou sobre a deste episódio em particular ou sobre a plausibilidade do cenário dos “nove aparelhos sem fios de ondas curtas” (seria a traição do duque menos grave se a transmissão dos segredos sobre as defesas francesas fosse feita por apenas oito aparelhos?). Aqui, como no resto do livro, Morton limita-se a disseminar atoardas, sem se dignar avaliar a sua veracidade.
O estilo farfalhudo e pouco rigoroso de Morton também não ajuda: escreve que o Departamento de Estado americano se apoderou de uma enorme quantidade de documentos alemães, atingindo “um milhão e duzentas mil toneladas de ficheiros” (um peso que só seria plausível se a burocracia alemã se baseasse não em folhas de papel mas em blocos de mármore). E insiste em referir-se à documentação alemã apreendida como “ouro pirata”, sem que seja fornecida qualquer explicação para tal bizarria.
Truques fotográficos
De todas as especulações disseminadas por Morton, talvez a mais extravagante seja a interpretação de uma fotografia tirada quando, em 1938, os duques de Windsor fizeram um cruzeiro pelo Mediterrâneo no iate Gulzar, dos seus amigos Herman e Katherine Rogers, e aportaram à ilha italiana de Ischia.
A cena em que os duques de Windsor parecem acenar aos populares no cais é lida por Morton como sendo Edward a forçar Wallis a fazer saudação fascista ao slogan pintado na parede que diz “A Europa será fascista”. Mas se, como é repetidamente afirmado ao longo do livro, Wallis também simpatizava com o fascismo, porque seria preciso que Eduardo a forçasse a fazer a saudação? Morton não faz questão de que as suas teorias conspirativas sejam compatíveis com os factos nem sequer de que sejam compatíveis entre si…
É com a mesma despreocupação pela plausibilidade que Morton menciona uma suposta entrevista (nunca publicada) ao Daily Herald, em 1937, em que o duque de Windsor “declarou que se o Partido Trabalhista alguma vez estivesse em posição de a oferecer, ele estaria preparado para aceitar a presidência da república inglesa”. A ideia de um ex-monarca, firmemente crente nos valores da monarquia, ultra-conservador e anti-bolchevique, aceitar ser presidente de uma Grã-Bretanha convertida em república e governada por trabalhistas não desperta em Morton a sombra de uma dúvida; provavelmente daria igual crédito a uma entrevista (nunca publicada) ao Pravda em que o duque de Windsor declarasse que se Stalin alguma vez estivesse em posição de a oferecer, ele estaria preparado para aceitar a liderança do Soviete Supremo da República Popular da Grã-Bretanha.
A displicência e o gosto pela especulação está aliás patente no título do livro: 17 cravos refere-se ao número preciso de cravos no ramo que Joachim von Ribbentrop, o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, faria entregar regularmente a Wallis, que teria sido sua amante (antes de conhecer Eduardo, presume-se). O número 17 seria uma alusão de Ribbentrop ao número de encontros amorosos que tivera com Wallis.
Morton é incapaz de apresentar qualquer indício de que Ribbentrop e Wallis tiveram qualquer relacionamento amoroso, menos ainda de atestar o número de vezes que o par teria feito amor, ou que Wallis alguma vez recebera flores de Ribbentrop, mas não deixa de dar crédito a esta fantasia e de a puxar para título. Os 17 cravos enviados por Ribbentrop são como os “nove aparelhos sem fios de ondas curtas”: uma aparência de rigor matemático para disfarçar o vazio de provas que Morton tem para exibir.
Não será esta amálgama onde insinuações, especulações, boatos e factos são tratados no mesmo plano que permitirá apurar se o duque de Windsor realmente aspirava a ser o rei nazi da Grã-Bretanha. É certo que os alemães pareceram acreditar que poderiam dar algum uso aos duques de Windsor, caso contrário não teriam montado a Operação Willi, mas tal não significa que essa crença tivesse fundamento ou que a operação pudesse produzir os resultados desejados. Até a mente mais astuta envolvida na operação, Walther Schellenberg, admitiu nas suas memórias que o seu papel na intriga tinha sido ridículo.
Em tempo de guerra fazem-se muitos planos, alguns assaz disparatados e inexequíveis. A Operação Willi teve, aliás, uma equivalente britânica: a 10 de Junho de 1940, Churchill tentou “convencer o Kaiser, que na altura tinha 81 anos, a atravessar o Canal do seu exílio em Doorn, na Holanda”, a fim de usá-lo “como um potencial ponto de união dos monárquicos alemães e outros que se opunham a Hitler precisamente da mesma forma que Von Ribbentrop pensava usar o duque e a duquesa”. Desnecessário será dizer que tão descabelada iniciativa não produziu qualquer efeito: o Kaiser ficou em Doorn e mesmo que, por absurdo, tivesse fugido para a Grã-Bretanha, tal não produziria uma revolta contra Hitler.
Quanto ao “dossiê Windsor” e em particular aos relatórios e documentos relativos à passagem dos duques por Espanha e Portugal em Junho-Julho de 1940, que atribuem ao duque de Windsor posições próximas dos interesses nazis, há que entendê-los com um grão de sal: podem estar distorcidos pela gabarolice de informadores que, não tendo nada de relevante a relatar, precisam de justificar a continuidade dos seus pagamentos, apimentando uns factos e inventando outros, e do desejo dos envolvidos na Operação Willi em transmitir aos superiores hierárquicos aquilo que eles gostariam de ouvir.
Escreve Morton que, após a partida dos duques de Windsor para as Bahamas, “Churchill tinha concluído que, com base no seu recente comportamento em Madrid e Lisboa, a única causa que interessava ao duque e à duquesa de Windsor era eles mesmos”. Com efeito, se os actos e palavras dos duques de Windsor são demasiado ambíguos para que se perceba o seu posicionamento em relação aos nazis, o que não oferece dúvida é o que revelam sobre o carácter do casal: eram duas criaturas igualmente fátuas, superficiais, egocêntricas e desprovidas de tacto.
Será plausível que o despeito pela forma como tinham sido tratados pela casa real e pelo governo britânico se sobrepusesse ao seu sentido patriótico e aceitassem bandear-se para o lado alemão? E em caso afirmativo, tal mudaria a história da II Guerra Mundial?
Quanto à primeira questão, Morton não parece dar-se conta de uma falha na sua argumentação: porque estaria Eduardo disposto a tudo – inclusive a aliar-se a nazis ou ao Partido Trabalhista – para reocupar o trono britânico se os deveres, tarefas e restrições a ele inerentes, bem como o protocolo da corte, sempre o tinham enfadado, de forma que, quando o pai ainda era vivo, havia entre os governantes e a família real quem suspeitasse que Eduardo não aceitaria ser rei?
Quanto à segunda questão, importa ter em mente que assim que os duques de Windsor se passassem para o lado alemão, tornar-se-iam de imediato traidores aos olhos dos britânicos – certamente que a Grã-Bretanha não se cindiria em duas facções, uma apoiando Jorge VI e Churchill e outra apoiando Eduardo VIII e os alemães.
Há figuras que mudam o curso da história: se Hitler tivesse morrido em 1938, talvez não houvesse II Guerra Mundial; se Churchill tivesse morrido no início de 1940, talvez a Grã-Bretanha tivesse negociado a paz com a Alemanha. Mas se em 1940 o duque de Windsor (ou o rei da Dinamarca) se tivesse juntado a Hitler ou se Jorge VI (ou o rei da Grécia) tivesse morrido, o curso da II Guerra Mundial teria sido idêntico. Na Idade Média, a morte, enfermidade ou sequestro de um rei tinham o poder de decidir a guerra e a paz, em 1940 a realeza ia a caminho de tornar-se importante apenas para os leitores das revistas de mundanidades.
Mas a ideia de o duque de Windsor se passar para o lado alemão de espontânea vontade até parece razoável quando confrontada com o (suposto) plano B de raptar os duques de Windsor com o fito de obter “dois reféns reais para forçar a Grã-Bretanha a ajoelhar-se”. Churchill e a família real até agradeceriam a Hitler por providenciar o sustento e alojamento do embaraçoso casal de sequestrados durante o tempo que lhe aprouvesse.