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Anúncio de jornal: cozinheiro japonês oferece-se
Certo dia, ao ler o jornal, o produtor de cinema Paulo Trancoso, fundador da Costa do Castelo, deparou-se com um anúncio, no mínimo, improvável. Algo como: “cozinheiro japonês oferece-se para trabalhar em Lisboa”. A proposta intrigou-o. “O meu negócio eram os filmes, mas na altura achei interessante a possibilidade de abrir um restaurante japonês”, recorda hoje, passados 30 anos.
O interesse não surgiu por acaso. À época, Paulo era um dos raros portugueses familiarizados com as expressões sushi e sashimi. A profissão obrigava-o a viajar muito e ele aproveitava, sempre que podia, para conhecer outras gastronomias, entre elas a japonesa. “Cada vez que ia a Inglaterra ou França comia em restaurantes japoneses, já gostava muito de sushi e sashimi.”
E não é que Lisboa não tivesse o seu próprio restaurante japonês. Até tinha. Abrira em 1985, com o nome Kamikaze — O Vento de Deus, e ficava na Rua Filipe Folque, perto de Picoas. Problema: não servia sushi. Paulo Trancoso também era cliente. “A ementa deles era à base de tempura [fritos] e teppanyaki [a grelha japonesa]”, conta. Não arriscavam mais do que isso, talvez prevendo os esgares de repulsa da maioria dos portugueses perante a perspetiva de comer peixe cru com dois pauzinhos.
Apesar dessa possibilidade, o atual presidente da Academia Portuguesa de Cinema decidiu seguir o que o instinto lhe dissera ao ler o anúncio. Decidiu, então, responder a Masakazu Yamamoto, assim se chamava o cozinheiro. Este, conta, queria vir para Portugal “pela curiosidade que alguns amigos lhe tinham despertado” em relação ao nosso país. Paulo acedeu, mas não sem antes lhe arranjar uma alcunha: ficou Yoshi.
Feito o contacto, pôs-se em campo à procura de um espaço, já com uma imagem bem definida do que queria fazer: “A ideia, desde o início, era que tivesse os elementos típicos, como o balcão, as salas privadas e uma porta de correr a imitar aquelas casas japonesas.” Sim, a mesma porta de correr que ainda hoje se mantém.
Onde? No Bairro Alto, claro
Por esses dias, o Bairro Alto vibrava do pôr ao nascer do sol graças a figuras míticas da noite lisboeta como Fernando Fernandes, Manuel Reis, Hernâni Miguel e Zé da Guiné. Era o auge do Frágil e do Pap’Açorda, que a par de casas como o Bartis, o Souk, o Targus, o Três Pastorinhos e outros que tais atraíam para aquelas ruas estreitas boa parte da comunidade artística e intelectual da cidade. Muitos dos que a compunham estavam ligados ao cinema, como Paulo. A sua escolha foi, por isso, óbvia: “Parecia-me, na altura, que era um bairro cosmopolita e interessante para novos restaurantes.”
Assim, o Bonsai instalou-se num dos extremos desse mesmo Bairro Alto, a chegar ao Príncipe Real. “Encontrámos um sítio na Rua da Rosa que era uma antiga tabacaria e ficámos com ele.” Para concretizar os planos de decoração, o responsável contou com a ajuda das amigas Elsa Lopes e Teresa Lacerda, uma das primeiras artistas a instalar o ateliê naquela zona da cidade. Quando tudo ficou pronto não restavam dúvidas: era uma casa japonesa, com certeza. Lisboa nunca vira nada assim, incluindo uma parede em bruto, descascada, que levou alguns a duvidar que as obras estivessem, de facto, acabadas.
“Eh pá, mas isto é peixe cru?”
Dia 21 de maio de 1987, pelas 18h30, o Bonsai abriu portas para um yakitori (espetada japonesa) de inauguração. Foi o início de uma aventura que, ainda hoje, Paulo lembra com alguma saudade. “Foram tempos duros mas muito engraçados. Íamos para a Ribeira às seis da manhã escolher o peixe e passávamos as noites no restaurante.”
Mas se até os seus filhos mais pequenos comiam sushi e sashimi, a reação dos clientes portugueses não era tão unânime. Afinal, muitos deles estavam a experimentar a cozinha japonesa pela primeira vez. “Havia uns mais cosmopolitas, que viajavam, já tinha experimentado e, por isso, conheciam e encaravam com naturalidade. Mas havia outros que quando viam do que se tratava perguntavam desconfiados: ‘eh pá, mas isto é peixe cru?!” Era. Uns provavam e ficavam fãs para a vida, outros recusavam-se determinantemente a fazê-lo. Esses, os mais resistentes podiam optar pela secção de cozinhados. É que além das yakitori, no Bonsai servia-se ainda sukiyaki e shabu shabu, dois pratos quentes em que a matéria-prima vai sendo cozinhada à mesa, tal como acontece no fondue.
Pelo espaço também passavam, claro, japoneses residentes em Lisboa e arredores, para atestar a genuinidade da cozinha de Yamamoto. Perdão, Yoshi. Entre eles, alguns que viriam, mais tarde, a ficar famosos na mesma área. “Lembro-me, por exemplo, de ver por lá o senhor Furusato, ainda antes de abrir o seu restaurante no Estoril”, revela Paulo. E quem assistia a filmes da Costa do Castelo nessa altura corria o risco de se deparar com um anúncio ao restaurante. “Decidimos fazê-lo para passar no intervalo dos filmes. Até porque, oficialmente, o restaurante não era meu, era da produtora”, justifica. É delicioso, sobretudo visto passado quase três décadas.
Substituição: sai Trancoso, entra Yokochi
Quando, ainda antes da viragem para a década de 90, Yamamoto/Yoshi quis regressar em definitivo ao Japão, ao que consta, e segundo Paulo, “por questões familiares e de amores”, o Bonsai ressentiu-se. “Acho que ainda tentei arranjar alguém [para o substituir], mas acabei por pensar que melhor seria o trespasse do negócio, visto que o meu trabalho na publicidade e no cinema era mais importante para mim e para a Costa do Castelo.”
Nos tempos que correm, está visto, seria mais fácil encontrar um outro especialista na matéria. Mas em 1989 não abundava, por estas bandas, quem soubesse da(quela) poda. “Foi um restaurante que abriu um bocadinho à frente do seu tempo. Em tudo”, conclui Paulo. E esta conclusão podia até ser a final e o texto acabar assim, com uma referência ao Bonsai como parte da memória de Lisboa e do Bairro Alto. Mas não é, graças a Shintaro Yokochi e à mulher Irma.
Hoje com 80 anos, Shintaro foi dos primeiros imigrantes japoneses em Portugal. Chegou no final dos anos 50 para treinar a equipa de natação do Sport Algés e Dafundo. Mais tarde, orientaria também o Sport Lisboa e Benfica e a seleção nacional em vários Jogos Olímpicos, entre eles os de Los Angeles, em 1984. Foi nessa competição que o filho Alexandre conseguiu o melhor resultado de sempre da natação portuguesa em Olimpíadas: um 7ºlugar na final dos 200 metros bruços.
Em casa dos Yokochi todos os pretextos eram bons para se comer comida japonesa. “Lembro-me de fazermos piqueniques e comermos sushi, que era feito com arroz carolino e vinagre de vinho e algas que eram trazidas pelos barcos de pesca”, conta a filha Luísa, que é, atualmente, a responsável pelo Bonsai. E quem é que cozinhava? Não era Shintaro, mas antes a sua mulher portuguesa, Irma, que desde cedo aprendeu tudo o que pôde sobre a gastronomia japonesa. “Fui aprendendo com várias pessoas, entre elas um antigo cozinheiro da embaixada, o senhor Uemachi, que como trabalhara durante a guerra, sabia fazer muita coisa a partir do nada. Ensinou-me a fazer miso, molho shoyu [soja]…”
Ainda nos anos 60, Irma recorda-se de oferecerem um jantar, em casa, a um grupo de atores japoneses que estava de passagem por Lisboa, em digressão. “A sorte foi que consegui arranjar um atum”, diz sorridente. E eles gostaram? “Gostaram, pois”, responde Shintaro de pronto. A primeira vez que se lembram de comer comida japonesa fora de casa, em Lisboa, foi no hotel Rex, nos anos 70. “Veio cá um cozinheiro japonês, chamado Sakurai, que também era alpinista e vinha acompanhar um outro que ia subir o Monte Branco. Fez um sukiyaki e ainda nos levou o molho shoyu“, recorda a matriarca. Depois desse episódio no Rex, só voltariam a um restaurante para comer comida japonesa anos mais tarde, em Cascais. Lembra Irma: “Havia um restaurante chamado Três Pastorinhos que quando abriu também fazia sukiyaki, porque o dono era filho do cônsul no Japão.” A seguir veio o tal Kamikaze, “que deve ter durado uns dois anos, porque abria e fechava e abria e voltava a fechar”. E depois o Bonsai.
Só que a relação dos Yokochi com o Bonsai não era apenas a vulgar relação cliente-restaurante. Eram, também, fornecedores da casa, já que tinham, de há uns anos a essa parte, uma empresa de importação de produtos japoneses. Sim, porque durante décadas não se conseguiu trazer nada do Japão para Portugal: “Veja lá que até as algas eram queimadas”, conta Irma. Quando o restaurante entrou na sua fase mais complicada, após a saída de Yamamoto, houve contas que ficaram por acertar. “Certo dia vou a passar aqui e vejo que o restaurante está fechado!”, conta Shintaro.
A forma encontrada para acertar essas contas foi ficar com o trespasse da casa. Uma ideia que nem sequer era assim tão descabida para Shintaro: “Tinha um amigo que dizia que tínhamos de fazer mais pela cultura japonesa em Lisboa, como abrir um restaurante” Só que quando chegou a hora de avançar o amigo roeu a corda. O senhor Yokochi, como bom japonês, manteve a sua palavra e tomou mesmo conta do restaurante.
O ‘Novo’ Bonsai
Os primeiros tempos no Bonsai não foram fáceis. A clientela teimava em não aparecer. “Quando havia três mesas para jantar já ficávamos todos contentes”, lembra Luísa Yokochi, entre sorrisos. E não era só pelo desconhecimento, que continuava a existir, em relação ao sushi e à cozinha japonesa. “Pela zona em que estava, o restaurante vinha mencionado numa série de roteiros gay e isso criou-lhe uma certa fama que naquela altura não era fácil de ultrapassar.” Para ajudar a passar a ideia que se tratava de uma nova era do restaurante, os responsáveis decidiram acrescentar o prefixo Novo ao nome. Curiosamente, e apesar de já ter regressado à formulação inicial há alguns anos, ainda hoje há quem lhe chame Novo Bonsai.
Luísa, que estava na universidade, trabalhava na sala, por onde passaram muitos colegas — “há-de ter sido o restaurante de Lisboa que empregou mais universitários”, brinca — e outros tantos artistas em início de carreira, vindos da ARCO. Já Irma passava os dias na cozinha a dar formação a quem vinha. E algumas receitas suas foram ficando, como a da salada que ainda hoje é servida aos almoços. Só largaria a cozinha anos mais tarde, quando começou a perder a visão.
Muitos dos cozinheiros que por ali passaram voltariam, depois, ao Japão, onde hoje têm restaurantes. Talvez não haja melhor sinal da qualidade da cozinha que por ali se tem praticado ao longo destas últimas décadas. Os lisboetas, no entanto, demoraram a descobri-la. Irma sorri, quando se lhe pede para contar episódios curiosos do passado: “No início, muitos entravam aqui a achar que isto era um restaurante chinês. Um dia houve um senhor que pediu sashimi a achar que era comida chinesa. Gostou tanto que passou a vir uma vez por semana.” Não foi o único. “Uma vez veio aqui aquele fadista que até faleceu recentemente, o Vicente da Câmara. Disse logo que não queria comer peixe cru. Pediu umas lulas com kimchi e reforçou ‘isto não é peixe cru, pois não?’. No final disse: ‘bolas, nunca comi umas lulas tão tenras’. Claro, estavam cruas.”
Com o apanágio do sushi em Lisboa, a clientela foi, naturalmente, crescendo. Mas sem que o restaurante perdesse identidade e uma característica importante, o facto de ser “uma espécie de centro cultural do Japão”, como lhe chama Luísa. “Antes de haver tanta informação disponível as pessoas vinham cá até pedir dicas do que visitar quando viajavam para o Japão.”
Entre 2011 e 2015 o restaurante esteve entregue ao chef Ricardo Komori e à mulher Mio. Mas há cerca de um ano, o casal seguiu os passos de tantos outros que tinham passado pela mesma cozinha e rumou ao Japão. Os Yokochi recuperaram, então, a gerência da casa. E no que depender de Shintaro, o Bonsai é coisa para durar mais uns 30 anos, pelo menos. “O segredo é que nós não fazemos isto pelo dinheiro, não precisamos. É tudo porque gostamos.” Lisboa agradece. Ou como diz Yoshi no anúncio: arigato gozaimasu.
Nome: Bonsai
Morada: Rua da Rosa, 248 (Bairro Alto), Lisboa
Telefone: 21 346 2515
Horário: De terça a sexta, das 12h30 às 14h30 e das 19h30 às 23h. Sábado das 13h às 15h30 e das 19h30 às 23h
Preço Médio: Ao almoço há um menu fixo de 10€ que inclui prato, duas peças de sushi ou sashimi, arroz, salada e café. Ao jantar paga-se, em média, 25€ por pessoa.
Reservas: Aceitam
Site: https://www.facebook.com/BonsaiRestaurante