Mãos nos joelhos a puxar os calções, a pinga de suor a escorrer pelo nariz, um jeito na braçadeira que utilizada no braço, o jogo de pés para receber a bola. Kobe Bryant começou a jogar com apenas três anos mas não queria ser apenas um jogador – queria ser “o” jogador. Essa era uma das diferenças com os demais: não sonhava, queria. E trabalhou para que essa vontade se tornasse uma imagem de marca numa carreira de duas décadas até 2016 que funcionou como farol para milhares e milhares, arriscando um salto incomum do liceu para a NBA para mostrar que nem sempre a história tem de ser escrita by the book. Num jogo que tem regras, Kobe ganhou a criar as suas.
Morreu Kobe Bryant, uma das maiores estrelas de sempre da NBA, num desastre de helicóptero
A morte da antiga glória dos Lakers aos 41 anos não passou ao lado de ninguém, do basquetebol ao desporto em geral, passando pela política ou pelas artes. Hoje, recuando umas horas, vem à cabeça a ultrapassagem de LeBron James no terceiro lugar da lista dos melhores marcadores da NBA. Mas umas horas depois da fatídica notícia do acidente de helicóptero que tirou a vida ao ex-jogador, à sua filha Gianna de 13 anos e a mais sete tripulantes, os Grammys tinham a sua edição de 2020 no Staples Center, “um espaço que devemos a Kobe Bryant”, como referiu Alicia Keys. Coincidências em torno da vida de uma referência e inspiração que foi tudo menos uma mera coincidência e que foi recordada ao longo do dia como um exemplo para aprender, seguir, respeitar e admirar.
Há uma escolha que temos de fazer como pessoas, de forma individual. Se queremos ser grandes em algo, temos de fazer uma escolha. Todos nós podemos ser mestres no nosso ofício mas temos de fazer uma escolha. O que quero dizer com isto é que existem sacrifícios inerentes que vêm com isso. Tempo em família, sair com os amigos, ser um grande amigo, ser um grande filho, qualquer que seja o caso. Há sacrifícios que vêm com essa tomada de decisão”, destacou após a conquista de um dos cinco títulos.
Cristiano Ronaldo, Trump, Michael Jordan e atores lamentam morte de Kobe Bryant
Kobe Bryant era muito maior do que os 33.643 pontos que marcou na NBA. E era bem maior do que os 30.699 lançamentos que fez. E era maior do que os cinco anéis de campeão, ganhos numa carreira de 20 anos entre 1996 e 2016. Quando entrava em campo, era ele, a bola e um cesto; fora dele, nos treinos ou na vida, era muito mais que isso. As histórias são mais que muitas mas era a figura que maior marca deixava.
Kobe Bryant tinha mundo (ou não tivesse vivido também na Europa quando era mais novo), era inteligente, tinha uma personalidade forte, fugia ao politicamente correto sabendo evitar demasiadas polémicas. Como jogador, arriscava, decidia, liderava; como homem, empreendia, apostava, realizava. E entre uma carreira entre os melhores de sempre no basquetebol, ainda arriscou (sem sucesso) a música, teve passagens pela TV e tornou-se um empresário de sucesso.
O último ano de liceu no Lower Merion mereceu rasgados elogios (e prémios) de vários quadrantes. Kobe, que só há um ano tinha começado a ganhar nos jogos 1×1 com o pai (também ele antigo jogador e que não era nada meigo com o seu único filho rapaz, como o próprio assumiu), podia ter entrado em qualquer universidade mas tornou-se apenas no sexto jogador a saltar de forma direta para a NBA. Chegou aos Los Angeles Lakers, onde ganhou cinco Campeonatos durante 20 anos, mas o caminho poderia ter sido bem diferente: apesar de já ter impressionado e muito os californianos, só no último dia antes do draft houve acordo entre a equipa e os Charlotte Hornets para abdicarem da vaga recebendo Vlade Divac, sendo que o próprio poste só à última aceitou mudar de formação. O quarto melhor marcador de sempre da NBA entrou como 13.ª escolha atrás de Allen Iverson, Ray Allen, Antoine Walker e outros nomes que nunca vingaram mas, por ter 17 anos, foram os pais que assinaram o contrato.
Quando tinha apenas seis anos, Kobe, nascido em Philadelphia, mudou-se para Itália com os pais e as irmãs na parte final da carreira de basquetebolista de Joe “Jellybean” Bryant, que jogou no Rieti, no Reggio Calabria, noOlimpia Pistoia e na Reggiana (antes de uma última temporada no segunda escalão francês pelo Mulhouse). Além de ter aprendido a língua, e apesar de todos os vídeos de basquetebol que o avô enviava por email para que aprendesse, ganhou o fascínio pelo futebol (e pelo AC Milan) – e foi também por isso que o primeiro modelo da Nike que desenhou tinha os canos baixos ao contrário do que era normal na NBA. “Não preciso de todas estas coisas altas à volta dos tornozelos. É preciso confiança para ultrapassar as fronteiras”, disse. Kobe era um atleta que brilhava em qualquer desportos mas escolheu aquele que lhe tomou o coração com apenas três anos e que foi a base para crescer como homem, ensinando-lhe valores que passaria depois aos mais novos num caminho onde nem tudo foi fácil como se viu em alguns momentos com o eterno companheiro Shaquille O’Neal.
Kobe Bryant teve um dos momentos mais complicados na NBA em 2003, quando foi acusado por uma funcionária de um hotel de violação. Um ano depois, o caso acabou por cair, depois da recusa da mulher em testemunhar em tribunal, e o jogador quis fazer uma declaração pública sobre o caso assumindo a relação extraconjugal de uma forma que para ele foi consentida mas tentando perceber o outro lado e pedindo desculpa. No meio do turbilhão, Kobe perdeu vários contratos de patrocínios e viu a venda das réplicas do seu equipamento caírem, tal como a qualidade do seu jogo. Nesse momento, o base precisou de algo que permitisse voltar no jogo e criou um alter ego pelo qual é conhecido por muitos: Black Mamba. “O jogo, que para mim é algo sagrado, esteve comprometido. O que ajudou a manter a minha sanidade foi a criação dessa personagem enquanto tentava manter a minha família unida, algo que com o tempo acabou por se transformar em algo maior”, explicou.
Olhando para a conta oficial do Twitter de Kobe Bryant, os dois últimos tweets estavam relacionados com a NBA e dizem muito sobre quem era o antigo basquetebolista: por um lado, escreveu a LeBron James depois do também agora jogador dos Lakers o ter ultrapassado como terceiro melhor marcador de sempre do jogo apenas atrás de Kareem Abdul-Jabbar e Karl Malone, dizendo “Continua a levar o jogo para a frente. Muito respeito, meu irmão”; por outro, partilhou um trabalho de Allen Iverson (escolha número 1 do draft no ano em que foi escolhido pela formação de Los Angeles) no The Players’ Tribune. Kobe queria ser o melhor mas sempre teve capacidade para reconhecer os melhores. E também sempre passou ao lado de quem o acusava de lançar em demasia em vez de fazer rodar mais a bola pelos companheiros. Kobe fazia o que fosse preciso pela equipa e pela vitória. E foi por isso que os 30.699 lançamentos tentados na carreira foram comparados a Mozart – eram a sua música.
Lamar Odom é um exemplo paradigmático da influência que Kobe Bryant tinha não só em campo mas também fora dele: depois de ter batido o pé junto da administração por não terem segurado o extremo/poste que tinha sido campeão duas vezes em sete anos, o número 24 não passou ao lado da grave situação de saúde do antigo colega em 2015 e, depois de um jogo de pré-temporada com os Sacramento Kings, saiu a correr do pavilhão para ir ver o seu amigo ao hospital, com o clube a justificar a ausência na zona mista com “assuntos pessoais”. Lamar, encontrado inconsciente num hotel, sofreu uma falência renal, teve problemas cardíacos e correu sério risco de vida mas conseguiu recuperar e, passado um ano, descreveu Kobe como “a figura de pai que nunca tive na vida”.
As comparações com Michael Jordan começaram a ser feitas ainda antes da estreia na NBA – até porque o número 23 dos Chicago Bulls sempre foi a sua grande referência na modalidade. Quando Kobe chegou à NBA, o ídolo tinha começado aquele que seria o seu segundo tri, após uma paragem na carreira pela morte do pai. Em 1998, acabou; em 2000, o base dos Lakers ganhou o primeiro título. Estava ali aquilo que seria mais do que um ponto de viragem no domínio na NBA. Era, sobretudo, uma viragem na própria NBA. Mas Kobe sempre fez questão de não ser uma “cópia” do ídolo; quis fazer o seu próprio caminho. E foi por isso que Roland Lazenby, autor de uma biografia de Jordan, assumiu que a ex-glória dos Bulls sempre reconheceu que Kobe merecia essa comparação por ser o único a trabalhar para isso. “Era com um irmão mais novo para mim. Era um competidor feroz, um dos melhores na história do jogo e uma força criativa”, comentou Jordan após saber da notícia da morte do jogador.
Depois de ter terminado a carreira de jogador, Kobe Bryant nunca sentiu a mesma vontade do pai em continuar ligado à modalidade como treinador e colocou especial enfoque nos projetos pessoais que já antes liderava com a mulher, como uma ONG com o nome da família para ajudar jovens e famílias carenciadas nos Estados Unidos e no mundo, bem como estimular os mais novos a manterem-se ligados ao desporto. Em paralelo, escreveu também um livro sobre os principais segredos para atingir o sucesso. Mas foi um poema chamado “Dear Basketball” após a reforma que mais marcou o trajeto pós-NBA, tendo valido mesmo o Óscar de melhor curta de animação em 2018. “O Kobe foi a pessoa mais apaixonada, que foi liderada pelo seu coração e pelo seu intelecto. Ele foi um grande pensador, com uma fome insaciável de aprender. Foi assim que entrou na animação, absorvendo todos os aspetos da mesma”, destacou Glen Keane, diretor do filme, após saber da morte do antigo basquetebolista. “Nós, como jogadores de basquetebol, devíamos calar a boca e driblar mas fico feliz porque fazemos um pouco mais que isso. Obrigado Academia, por esta incrível honra”, disse no discurso da consagração.