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É um homem que conhece bem a Rússia. Michel Eltchaninoff, um dos filósofos mais conhecidos em França, escreveu em 2015 o livro Na Cabeça de Putin (ed. Zigurate), na esteira da invasão da Crimeia. Mas a sua obsessão com o país não é nova: afinal, a sua tese doutoramento de 2000 tinha precisamente o tema “A expressão do corpo na obra de Dostoiévski”.
Mas este académico francês não ignora o que se passa no país onde nasceu e cresceu toda a vida. Dois anos depois de se dedicar a Putin, publicou Dans la tête de Marine Le Pen (“Na cabeça de Marine Le Pen”, sem edição em português). Os laços conhecidos e antigos entre a antiga Frente Nacional e a Rússia foram parte da razão porque decidiu debruçar-se sobre o tema, mas não só: a transformação que Marine Le Pen operou no partido foi mais do que apenas mudar o nome para União Nacional (UN) — foi transformar toda uma ideologia, mantendo algumas das suas inspirações, de forma a apelar às classes trabalhadoras.
Numa entrevista com o Observador num clássico café de Paris, o filósofo não enjeita tentar fazer o exercício de entrar na cabeça de Emmanuel Macron. E o resultado não é bom sobre o caráter do Presidente: “É uma atitude pseudo-romântica, narcisista, arrogante, que ainda é uma das características deste meu país. ‘Bem, tomar o controlo, fazer um ato de coragem, de panache‘. Mas, por fim, as pessoas viraram-se contra ele, porque Macron não compreendeu que a História se escreve coletivamente”, decreta. O “herói”, explica, não é o Presidente, que se vê como uma “espécie de Cyrano de Bergerac”.
Eltchaninoff olha também, naturalmente, para a influência que a Rússia mantém em França, incluindo não apenas entre a extrema-direita: “Jean-Luc Mélenchon foi extremamente indulgente com Vladimir Putin, com a sua impossibilidade de pensar que podem existir dois impérios [EUA e Rússia] ao mesmo tempo”. E não tem dúvidas em garantir que, aconteça o que acontecer nas eleições deste domingo, o resultado será benéfico para o Kremlin. Por um lado, explica, porque com um governo da UN, haverá “consequências muito concretas para a guerra na Ucrânia”. Por outro, porque se o resultado levar à ingovernabilidade e, quem sabe, à violência, a Rússia virá vingada a sua narrativa de que “as democracias liberais estão à beira do caos e numa guerra perpétua”.
O papel de “acelerador” de Macron nas transformações que se operam neste momento em França, diz, terá consequências muito para lá das fronteiras do país. Para além da perda de influência dos franceses junto de Bruxelas, teme pelos ucranianos: “Grande parte da sociedade francesa odeia ainda mais Macron após a dissolução. Portanto, o que ele diz sobre a Ucrânia e a Europa também corre o risco de vir a ser [odiado]”, afirma.
Perante tudo isto, apenas uma conclusão: aconteça o que acontecer, com ou sem maioria, se a violência emergir, Macron não será o vencedor deste romance. Serão Marine Le Pen e Vladimir Putin.
“Ele pensava que estaria a acalmar, parar — mas o que causa é aceleração. E esse é um enorme paradoxo: é que, de facto, Macron provoca acelerações”
Escreveu um artigo dias depois destas eleições serem convocadas onde dizia que a decisão de Macron era incompreensível. Agora, com mais tempo: acha que foi uma estratégia política, de que se a União Nacional chegasse ao poder poderia desgastar-se e travar uma eleição de Marine Le Pen em 2027? Ou o Presidente estava apenas confiante de que conseguiria ele travar agora o crescimento da extrema-direita?
Acho que, na verdade, ele tinha na cabeça os dois cenários. Primeiro cenário: vou convocar eleições imediatamente para desacelerar o progresso da UN, dizendo que é melhor que as eleições sejam imediatamente. Mas o que é interessante é que, de acordo com o que vemos hoje, sem dúvida que, em vez de retardar o progresso da antiga Frente Nacional, irá acelerá-lo. E isso é um enorme paradoxo. Ele pensou que iria “congelar” a imagem atual. De facto, há uma espécie de “engano da razão” [conceito filosófico de Hegel, que defende que a História avança através de uma forma de razão enganadora, não a que é esperada] que, na verdade, vai acelerar. A progressão da UN é quase certa. E o que é interessante é que ele fez um pouco a mesma coisa com a Rússia, desde 2019.
Pensando que, ao dialogar com Vladimir Putin, o conseguiria travar?
Exato. Macron pensou que seria capaz de acalmar Putin propondo uma parceria de defesa, por exemplo. E, de facto, não foi só ele [a propo-lo], mas isso provocou uma aceleração da ação de Putin com a invasão em massa da Ucrânia. Ele pensa que está a acalmar, frear, parar — mas o que causa é aceleração. E esse é um enorme paradoxo que é interessante: é que, de facto, Macron provoca acelerações.
O que acha que se passa na cabeça dele? Escreveu “Na cabeça de Marine Le Pen” e “Na cabeça de Vladimir Putin”… O que acontece dentro da cabeça de Macron?
Acho que, no fundo, ele pensa que é a personagem de um romance. Considera-se uma personagem de um romance do século XIX, extravagante, surpreendente e cheio de elegância, de panache. E, na verdade, isso é algo muito francês da parte dele: a panache de Cyrano de Bergerac… Por isso, acredito que existe uma dramaturgia pessoal, onde considera que é ele quem escreve o romance nacional e é ele o herói do romance. Mas esqueceu-se de que não é ele quem escreve o romance nacional: são os franceses, são todos os franceses. Ele viu-se como alguém que ia realizar uma façanha dramática, que iria provocar a UN e levar a um regresso “à razão”. Mas, na verdade, não entendeu que, muitas vezes, quando tentava desacelerar, acelerava; e que não era o único escritor do romance. É uma atitude pseudo-romântica, narcisista, arrogante, que ainda é uma das características deste meu país. “Bem, tomar o controlo, fazer um ato de coragem, de panache”. Mas, por fim, as pessoas viraram-se contra ele, porque Macron não compreendeu que a História se escreve coletivamente. Agora, olhemos para a hipótese da experiência. Muitos pensam que é melhor perder, para experimentar e mostrar imediatamente a futilidade, a fraqueza da UN nos próximos três anos. É possível. Portanto, ele achou que venceria de qualquer maneira. “Se vencer as eleições, venci. Se perder, perco com brio e, mais importante, demonstramos o que é a UN.” Mas, na minha opinião, não teve em conta o perigo para o Estado de Direito que representa uma chegada ao poder da UN. E portanto, novamente, o cálculo é puramente egoísta.
Há aqui uma comparação com a Rússia: Vladimir Putin foi eleito várias vezes e deu uma série de passos para transformar um país. Tendo em conta que não é, obviamente, uma democracia e um regime liberal, mas sim um regime autoritário que controla os media… Mas este é um jogo extremamente perigoso. E acho que acontece porque os franceses não suportam que o Presidente assuma o papel de herói de um romance com coisas que são muito sérias para os franceses.
As ligações da UN ao Kremlin, a perda de apoio aos ucranianos e uma Europa dividida. “Estamos no processo de concretizar o sonho de Vladimir Putin.”
O que explica a rejeição que o partido de Macron teve na primeira volta. Não sabemos o que vai acontecer agora, mas se a UN chegar ao governo, crê que terá maneira de influenciar a política em direção à Rússia? Mesmo com o Presidente mantendo poderes nessa área… Haverá um confronto sobre o tema?
Isso é certo, porque a diferença das várias coabitações que vimos anteriormente face a esta é que, agora, o Presidente não pode concorrer novamente [em 2027 terá atingido o limite de mandatos]. Portanto, está enfraquecido, porque não consegue representar-se. E, além disso, está desacreditado pelos seus próprios aliados. Os macronistas estão furiosos com ele, por isso está numa posição fraca. Se houver coabitação, Macron ficará numa posição fraca e, além disso, a UN está pronta para exercer um equilíbrio de poder muito difícil. Quando Marine Le Pen diz que ser chefe das Forças Armadas é uma posição honorária… Isso significa que vai discutir com ele. Por fim, Jordan Bardella pode ser primeiro-ministro. E, se não for, ainda corremos o risco de a UN ser o maior grupo na Assembleia e disputará com Macron a autonomia na política internacional. Portanto, em qualquer caso, isto significa consequências muito concretas para a guerra na Ucrânia. Muito concretas. Se deixarmos de enviar munições e armas de longo alcance para a Ucrânia, a Ucrânia terá dificuldade em impedir o avanço da Rússia. Isto significa consequências muito substanciais para a construção europeia da comunidade europeia, uma vez que o caminho de França ficará muito enfraquecido.
Portanto, na prática, estamos no processo de concretizar o sonho de Vladimir Putin. Ou seja: menos ajuda à Ucrânia e a uma Europa que estará muito dividida, porque será difícil França fazer-se ouvir, caso o poder seja da UN ou se o país não for governável [sem uma maioria absoluta]. Na prática, em qualquer um dos casos, é um enfraquecimento de França e é uma vitória estratégica para Vladimir Putin. Portanto, é extremamente grave e creio que todos os franceses ainda não perceberam que Macron não teve isso em conta na sua decisão. Acredito que vamos assistir a uma evidente perda de influência de França. E há um aumento da influência russa sobre França, que se tornará muito mais forte. Por exemplo, há um candidato a deputado da Assembleia Nacional no círculo de Cher, chamado Pierre Gentillet. Já ouviu falar dele?
É considerado um dos homens-fortes de Le Pen hoje em dia.
Sim, e acima de tudo é muito pró-russo. Foi ele quem criou o círculo de reflexão Pushkine [plataforma de aproximação russo-francesa], que liga tudo isto. Imagine Pierre Gentillet na Assembleia Nacional, Pierre Gentillet na Comissão dos Negócios Estrangeiros… Isto abre a porta à influência russa em França. Portanto, é algo muito, muito sério.
Os franceses aceitariam isso? Parece haver uma espécie de consenso nacional de apoio à Ucrânia contra a Rússia…
Penso que quando Emmanuel Macron disse que não descartava o envio de tropas francesas para a Ucrânia… Na minha opinião, isso é algo perfeitamente aceitável de se dizer e pessoalmente até acho que seria bom. Por outro lado, a receção da ideia foi negativa. Isto quer dizer que as pessoas, os franceses, não conseguem compreender, creio eu, a gravidade da guerra na Ucrânia. Portanto, não conseguem de forma alguma imaginar-se um dia a ter de morrer em defesa da Europa contra Putin. Macron queria acordá-los — não funcionou. Porque as pessoas dizem “Acolhemos muito os ucranianos no início da guerra e depois os preços da eletricidade e do gás subiram, em parte, devido à guerra na Ucrânia”. Portanto, acredito que a sociedade francesa está menos disposta a ajudar a Ucrânia. É claro que temos de ter em conta as sondagens e tal, mas quando Jordan Bardella diz “Não vamos enviar soldados franceses para a Ucrânia e não vamos provocar a Rússia enviando armas de longo alcance”, há uma grande parte dos franceses que concordam com isso. Só que não compreendem necessariamente as consequências disso, de como seria um avanço da Rússia, tanto na Ucrânia, como em termos de influência na Europa Ocidental.
Acredito que, infelizmente, quando Jordan diz que a linha vermelha é não enviar soldados, há uma grande parte dos franceses que ou acham isso muito bom, ou, em última análise, dizem que é sensato. Portanto, isto é muito inteligente por parte da UN. Creio, infelizmente, que a guerra na Ucrânia não é percecionada por grande parte dos franceses como uma questão existencial para a Europa. E isso significa que, quando Macron o diz, muitas pessoas não o compreendem. Grande parte da sociedade francesa odeia ainda mais Macron após a dissolução. Portanto, o que ele diz sobre a Ucrânia e a Europa também corre o risco de vir a ser [odiado].
Porque ser ele a dizê-lo influencia as posições? A rejeição dele é tal que faz as pessoas mudarem de ideias?
Sim. Por isso, infelizmente, acredito que uma parte da sociedade francesa está disposta a aceitar uma redução na ajuda à Ucrânia.
A sociedade francesa discute de forma mais acesa o que acontece em Gaza e a questão israelo-palestiniana, do que a guerra na Ucrânia, que é geograficamente muito mais próxima. Parece-lhe que estamos aqui perante outro paradoxo?
Isto é complicado. É verdade que a guerra na Europa está mais próxima de nós do que a guerra no Médio Oriente. Mas a questão israelo-palestiniana é aqui muito sensível, porque temos a maior comunidade judaica na Europa e a maior comunidade muçulmana na Europa. Portanto, apesar de ser uma guerra menos próxima geograficamente, é uma guerra muito próxima do nosso imaginário. Existe um imaginário muito forte ligado à guerra em Gaza. E penso que podemos absolutamente estar presentes na discussão sobre a guerra entre Israel e Gaza, apresentando uma posição mais unida e a mais justa possível, enquanto nos mantemos igualmente preocupados com a guerra na Ucrânia. Penso que ambas [as guerras] são dois perigos para os políticos, mas a guerra em Gaza é um fator de divisão política maior do que a guerra na Ucrânia. Está muito presente na cabeça dos jovens, por exemplo. E substituiu um pouco a atenção que se prestava à Ucrânia. Acho que, infelizmente, os franceses vivem uma espécie de fadiga, de cansaço, no que diz respeito à guerra na Ucrânia. E por isso temo que, seja qual for o governo, seja qual for a maioria, a ajuda à Ucrânia diminua. Macron ainda mantinha as rédeas seguras pelo menos nessa questão, mas agora…
Olhando para as ligações da UN à Rússia. Nos últimos dois anos temos assistido a uma tentativa de distanciamento. É real?
Bem, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo apoiou claramente a UN num post no X, viu isso?
???? #Nastasin: The people of France are seeking a sovereign foreign policy that serves their national interests & a break from the dictate of Washington & Brussels.
☝️ French officials won’t be able to ignore these profound shifts in the attitudes of the vast majority of citizens pic.twitter.com/4gCRBLayPP
— MFA Russia ???????? (@mfa_russia) July 3, 2024
Onde dizia que é necessário quebrar com o diktat de Washington e Bruxelas…
A proximidade política, seja da UN seja da antiga Frente Nacional, com a Rússia é muito antiga. É uma relação muito enraizada. Foram várias etapas: primeiro Jean-Marie Le Pen, que estava ao lado dos nacionalistas russos. Depois Marion Maréchal Le Pen, muito amiga da filha de [Alexander] Dugin [um dos ideólogos nacionalistas mais radicais russos, cuja filha foi morta num atentado em 2022]. E Marine Le Pen chegou a ir ao Kremlin pouco antes das presidenciais de 2017. Portanto, os vínculos são muito próximos. E, é claro, a UN é muito cuidadosa com o que diz. Mas, na verdade, nunca fala sobre o destino da Crimeia e silencia as relações que alguns dos seus membros ainda mantêm. Pensemos em Pierre Gentillet e no Estado russo…. Na verdade, isto é tudo uma treta, é fachada. O que é certo é que a UN vai ser o maior partido da Assembleia. E, obviamente, os russos irão beneficiar com isso, de uma forma ou de outra.
Como Marine Le Pen transformou a Frente Nacional de um partido de protesto num partido mainstream: “A dialética mágica que lhe permitiu juntar o polo socialista com o polo nacionalista”
Já há muito tempo, talvez até desde 2017, que Marine Le Pen se tem focado em apenas dois temas: poder de compra e imigração. Crê que ela viu além dos outros políticos, ao entender como essas temas mobilizam os franceses?
Para fazer o meu livro “Na cabeça da Marine Le Pen”, li todos os seus discursos, muitos livros, etc. E, de facto, quando ela assumiu a liderança da Frente Nacional em 2011, construiu realmente uma nova ideologia para o partido, que renomeou União Nacional em 2018. Mas construiu uma ideologia nova que é muito, muito inteligente, porque é muito simples de entender. Não é xenófoba e racista na sua formulação, mas nasce de uma interpretação disso.
É uma ideologia muito simples: segundo Marine Le Pen, existem duas visões de mundo que se defrontam. Existe o campo dos patriotas e dos nacionalistas, que inclui as pessoas que sofrem, que têm problemas com o poder de compra, que sentem insegurança, que têm dificuldades com a imigração, etc. E essas pessoas estão em choque com outra visão do mundo, daqueles a quem Le Pen chama “os globalistas”. “Os globalistas” são as elites financeiras. Os burocratas europeus, os grandes empresários franceses, que estão desenraizados e para quem França é apenas uma zona para explorar. Portanto, estão a gozar com o povo, porque para terem trabalhadores mais baratos trazem imigrantes para França e estes imigrantes, em última análise, estão a fazer progressos. Isso criará um país mais multinacional e mais étnico, até mesmo um país muçulmano. Ou seja, há uma luta entre os patriotas e os nacionalistas de um lado e os globalistas do outro, os globalistas da elite. Bom, no fim do século XIX, essa era a base do anti-semitismo aqui, que considerava os judeus cosmopolitas. Hoje já não dizemos isso, obviamente, dizemos antes, “a Finança”, “os banqueiros”, “os burocratas”…
E é apagada a palavra “judeus”?
Não é preciso dizê-la. Mas continuam a existir antissemitas dentro da UN que fazem a ligação dos “nómadas de cima” com “os nómadas de baixo”. Ou seja, os de cima são os cosmopolitas e os de baixo são os imigrantes, de origem subsariana ou magrebina, que mudarão o nosso estilo de vida. Portanto, a partir desta ideologia, ela consegue ligar tudo: “Eu protejo o povo.” Com Jean-Marie Le Pen só existiam sentimentos negativos — ódio, rejeição do outro, racismo, etc. Marine Le Pen, com esta nesta nova ideologia, incutiu muitos sentimentos positivos: bom senso, sabedoria, uma sensação calorosa para com as classes populares. Participei em muitos comícios de Marine Le Pen, não sei se alguma vez foi a algum…
Não, só os vi online.
Já há muito tempo que vou a alguns e, na verdade, desde os anos de 2015, 2016, que ela encarna esta ideia de calor junto do povo: a ajuda mútua, a solidariedade contra o cálculo egoísta dos homens da Finança. E assim conseguiu fazer com que o voto francês a favor da UN não fosse apenas um voto de rejeição, um voto de ódio, negativo, mas que se tornasse também num voto positivo.
Deixando de ser um voto de protesto e passando a ser um voto mainstream?
Voilà. E isso tem razões ideológicas. Ela diz: “Estou com as pessoas que estão a sofrer. Estou com o povo unido.” E, assim, parte da sociedade francesa — sobretudo as pequenas cidades, as zonas rurais, mas em quase toda a parte onde há pessoas em sofrimento —, identificou-se com este discurso e considera que as suas emoções, quer as positivas quer as negativas, são encarnadas pela UN. Ela fez algo fortíssimo: hoje isto não é apenas um voto de protesto. E, para responder à sua pergunta, penso que, de facto, a ideia de ser “nem de direita nem de esquerda”, de se focar tanto na imigração como no poder de compra, é a dialética mágica que lhe permitiu precisamente juntar o polo socialista com o polo nacionalista.
Acha que os partidos de esquerda contribuíram para essa situação de alguma forma?
Bem, já nas décadas de 1980 e 1990 os trabalhadores votavam mais na UN do que no Partido Comunista. Esta ideia sobre a esquerda é um lugar-comum, mas verdadeiro. Não sou um cientista político, mas é claro que a esquerda perdeu a classe trabalhadora, porque deixou de falar para ela. Focou-se mais na proteção das minorias, por exemplo. E é verdade que, desde os anos 90, ou seja, há pelo menos 30 anos, a UN tem conseguido aproximar-se dessas classes, para as quais a esquerda não consegue encontrar uma linguagem. O que é extraordinário é que Emmanuel Macron — voltando a ele — está a acelerar este movimento e a criar surpresas. Porque a UN é um partido que está estabelecido na França há muito, muito, muito tempo.
E que tem crescido sustentadamente ao longo do tempo…
Exato. E, de facto, existe uma espécie de legitimidade temporal. O En Marche! é um partido novo e que na prática não existe. Os socialistas encolheram, os comunistas encolheram, etc. A direita também perdeu para a UN. Este é um partido que trabalha há décadas junto do seu eleitorado. E há um certo enraizamento. E, portanto, ultrapassou a esquerda tradicional.
A França Insubmissa “complacente” com a Rússia, por oposição aos EUA. “Não vejo como será possível que a Frente Popular tenha uma política externa comum”
E quanto à França Insubmissa? O macronismo está a tentar distanciar-se dela e o próprio Mélenchon tem tido uma posição face à questão ucraniana muito diferente da do resto da esquerda e do centro. Também contribui para as ambições de Putin?
Na verdade, isto é um reflexo da influência ideológica russa na França. Ela apela obviamente à UN e aos eleitores gaulistas de direita, com a ideia de um “homem providencial” e etc. Mas também apela aos anti-imperialistas da França Insubmissa ou aos comunistas. A ligação com Moscovo é tradicional. É verdade que Jean-Luc Mélenchon foi extremamente indulgente com Vladimir Putin, com a sua impossibilidade de pensar que podem existir dois impérios ao mesmo tempo. É aquilo que em filosofia chamamos de “campismo anti-colonial”, a ideia de que existe apenas um império: o norte-americano. Portanto, todos aqueles que lutam contra o império americano são aliados. Como Chávez, por exemplo. E é verdade que Mélenchon foi extremamente complacente com o putinismo. Foi muito duro com Navalny, disse que ele um era antissemita, etc. Para Mélenchon é isto, é sempre um campo contra outro. E ele escolhe o campo anti-americano e “anti-imperialista”. Portanto, é verdade que existe uma complacência face à Rússia.
Por outro lado, não acredito que o seu partido França Insubmissa tenha ligações tão profundas com o Kremlin e com pessoas próximas do Kremlin como a UN. Havia, digamos, pessoas “castanho-avermelhadas” [defensoras de uma ideologia comuno-fascista], uma espécie de cidadãos bolcheviques dentro da França Insubmissa já há alguns anos — nomeadamente um dos conselheiros de Mélenchon, [Georges] Kuzmanovic, de origem sérvia, mas que já se foi há muito tempo. E vejo que na esquerda, na Frente Popular, existem atualmente posições muito diferentes sobre a Ucrânia — desde Raphaël Glucksmann, que é ainda mais pró-Ucrânia do que Macron, até aos comunistas e à FI. Portanto, esta é uma questão ideológica muito importante e que dificultará a formação de uma Frente Popular no futuro. Não vejo como possível que tenham uma política externa comum. Mas, de qualquer forma, acredito que os laços entre a UN e a Rússia são muito mais fortes, muito mais profundos e mais próximos do que os de qualquer pessoa na FI.
Muita gente diz estar com medo de domingo, independentemente do que acontecer. Temem um clima de violência, há até quem fale em guerra civil. Acha que há o risco de França se desagregar de alguma forma depois desta eleição?
Há exatamente um ano, houve motins nos subúrbios que foram muito fortes. Há uma polarização nos jovens, por exemplo, que é muito forte. Há um lado que é muito fortemente pró–Jordan Bardella, e um lado muito fortemente pró-FI. Há muito nervosismo social. O país está dividido, há uma forte polarização. Portanto, há obviamente um risco de violência. Esta violência beneficiará principalmente a extrema-direita, uma vez que a extrema-direita, sem dizer nada durante anos, tem beneficiado de crises como a dos Coletes Amarelos ou os motins suburbanos.
Existe, de facto, o risco de ações violentas. Espero que sejam muito localizadas e rapidamente contidas. Mas o problema é que este caos é profundamente acarinhado pela Rússia, que há anos repete que as democracias liberais estão à beira do caos e numa guerra perpétua. Portanto, há um risco. Mas não nos podemos esquecer de que, em qualquer cenário, em França ninguém beneficiará com isto a não ser a UN. Se este domingo não tiverem maioria absoluta, se Bardella não se tornar primeiro-ministro, a agitação que pode ocorrer em França beneficiará uma vez mais a UN. No final, é ela quem ganha.