Era a consulta da primeira semana de vida da bebé. Pai e mãe foram chamados ao gabinete médico para que fosse avaliado o perímetro cefálico da pequena, pequenina, Maria. A bebé já tinha sido pesada e a mãe estava distraída a falar com a médica, pelo que Rui*, um pai acabado de nascer, começou a vestir-lhe o body e o babygrow. Sorte de principiante ou agilidade nata, apoiou a bebé num dos braços ao mesmo tempo que lhe vestiu a manga. “Ah! Mas o pai tem muito jeito para isto!”, exclamou a médica para surpresa do homem de 28 anos, que já tinha visto a mulher fazer aquilo algumas vezes, inclusive na maternidade, sem que isso merecesse grandes reações. E também ela era mãe pela primeira vez. “O que me parece é que as expetativas em relação aos pais (homens) já são muito baixas. Qualquer tarefa minimamente bem executada por nós parece o maior feito de sempre.”
Outro pormenor mais subtil, confessa Rui, tem que ver com a forma como profissionais de saúde se dirigem aos pais e às mães: “Não é coisa rara que médicos e enfermeiros se concentrem sobretudo na mãe quando estão a dar conselhos ou quando procuram informações sobre o seu recém-nascido. É expetável (é exigível?) que a mãe tenha na ponta da língua toda a informação sobre o seu recém-nascido e mesmo quando o pai tenta tirar uma ou outra dúvida, a resposta é dada à mãe.”
Queixa semelhante — ou constatação, como lhe quisermos chamar — tem o cronista Henrique Raposo, que assina com outros cinco homens o livro Nós, os Pais, onde relata a sua experiência de pai na primeira pessoa. O testemunho de Raposo, já publicado no Observador, dá conta das diferentes expetativas que a sociedade tem face ao papel de mãe e de pai:
“Ontem voltou a acontecer: voltaste da creche da mais nova com histórias que as educadoras nunca me revelam. Partilho contigo todas as tarefas, as senhoras e raparigas da creche e da escola também me veem todos os dias, mas não consigo criar com elas a empatia que tu crias de forma majestática, fluida, natural. Já era assim na creche antiga e julgo que continuará a ser assim até à faculdade. Apesar da nossa evidente paridade doméstica, as educadoras e professoras veem-te como o natural e evidentíssimo encarregado de educação – um cargo que devia estar reservado para mim, visto que acabo por ser um progenitor mais presente do que tu.”
Agora em discurso direto, em declarações ao Observador, o também escritor argumenta que os homens da sua geração (dos 20 aos 40 anos, sensivelmente) não têm uma narrativa pela qual se seguir e, à falta de role models, os novos pais vão inventando tudo à medida que as coisas vão surgindo. “Aos homens não era suposto fazer nada”, diz, referindo-se a gerações anteriores. “De repente é-nos exigido coisas que não nos foram ensinadas, é tudo um work in progress. A geração do meu pai acha isto tudo uma enorme mariquice”, continua.
Raposo faz a ressalva. Longe dele estar aqui a vitimizar os homens, personagens a quem atribui uma parte da culpa por não se entregarem ao papel de pai. Nem de propósito, Rui presta um testemunho parecido ao falar das diferentes realidades que constatou quando ainda estava na fase de visitar a mulher e a bebé na maternidade: por lá andavam pais que passavam todo o horário de visitas junto das mulheres e que cuidavam do bebé, mas também pais que apenas chegavam ao final da tarde e que tinham uma atitude mais passiva, de espectador.
Uma história de licenças parentais
Esta semana foi avançado pelo jornal Público que o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, foi pai pela primeira vez e, como tal, vai tirar a licença parental a que tem direito. E porque é que algo estipulado na lei foi notícia? Porque até agora foram poucas — e até raras — as vezes em que figuras de relevo dos governos gozaram as respetivas licenças parentais.
É certo que o homem tem vindo a assumir um papel cada mais importante no contexto da família, ao vestir a pele de um pai mais afetivo, cuidador e com uma maior presença na vida familiar, seja em relação aos filhos, seja na participação diária na vida doméstica. Se no passado existiam papéis altamente diferenciados com base nas supostas diferenças naturais dos homens e das mulheres, tal como explica ao Observador a socióloga Vanessa Cunha, atualmente o cenário familiar foge à regra que em tempos definiu o pai como figura de provedor e autoridade suprema no seio familiar e a mãe como cuidadora (basta recuar à época do Estado Novo para termos um vislumbre de como era, então, a “família perfeita”).
Vanessa Cunha, investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, argumenta que a atual discussão sobre a posição dos homens na parentalidade começou com o 25 de Abril, altura em que se começou a prestar uma maior atenção à condição das mulheres. “Foi o primeiro passo. No fundo houve um olhar concentrado na questão das mulheres e das crianças”, afirma ao mesmo tempo que recorda que até então existiam os filhos ditos e considerados ilegítimos. Reconhecer os direitos das mulheres é, pois, considerado um passo fundamental para reconhecer os direitos dos homens pais.
A partir dos anos 1980 começa-se a construir em termos legais um papel para o pai na parentalidade cuidadora. Falamos sobretudo da evolução das licenças parentais: começaram na lógica da substituição (considerando a introdução da “licença por paternidade” em caso de morte ou incapacidade da mãe, em 1984), passaram pela negociação (tendo em conta o direito do pai a partilhar a licença de maternidade por decisão conjunta, em 1995), chegaram à conquista do direito a auxiliar nos cuidados (com a “licença por paternidade” de cinco dias úteis no primeiro mês após o parto; direito facultativo) e terminaram, por enquanto, na consolidação do direito a cuidar (com a introdução, em 2009, da “licença parental inicial”).
Benefícios dos pais tirarem as licenças parentais
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Segundo o Policy Brief II, que cita um inquérito do International Social Survey Programme sobre “Famílias e Papéis de Género em Mudança”, realizado em Portugal em 2014, homens e mulheres atribuem determinados benefícios ao gozo da licença parental por parte do pai: às relações parentais, à dinâmica conjugal e doméstica e à igualdade de género, ao bem-estar dos indivíduos e à vida profissional da mulher.
“A legislação de 2009 é um quadro legal completamente novo”, diz Vanessa Cunha. “Revoga as anteriores licenças por maternidade e paternidade e introduz a licença parental, uma licença sem género.” Em causa está sobretudo a licença partilhada entre os progenitores. A isso acrescenta-se a alteração feita em 2015 e introduzida em 2016: a licença exclusiva do pai passou de 10 para 15 dias úteis a serem gozados após o nascimento da criança (mais 10 facultativos que podem ser usados até ao final do período em que a mãe está de baixa).
Atualmente, não havendo partilha há a possibilidade de gozar de um período de 120 dias pagos a 100% ou 150 pagos a 80%. Se houver partilha, isto é, se pai e mãe gozarem sozinhos pelo menos 30 dias ou dois períodos de 15 dias consecutivos, passa para 180 dias a 83%, diz Cunha, adiantando que o passo pode ser considerado um incentivo à partilha e à promoção do bem-estar da criança, além de resvalar para a igualdade de género tendo em conta os deveres (e direitos) de pais e mães.
A matemática das licenças não é propriamente de fácil compreensão, pelo que não é de estranhar que Vanessa Cunha admita que existe uma grande falta de informação, e até desinformação, em relação a esta matéria. Ainda assim, segundo o Policy Brief II — elaborado no âmbito do projeto “O Papel dos Homens na Igualdade de Género”, desenvolvido em parceria pelo ICS-Lisboa e pela Comissão Para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) e financiado pelo Programa EEA Grants e pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), no qual Vanessa Cunha está envolvida –, o gozo das licenças parentais por parte dos homens tem aumentado, sobretudo desde 1999, quando foram introduzidas licenças específicas para eles. Entre 2000 e 2015, o gozo deste tipo de licenças — dias obrigatórios e dias facultativos — aumentou mais de 60%, sendo que em 2015 63% dos pais gozaram a licença parental de 10 dias úteis facultativos.
É neste Policy Brief — que faz parte de um Livro Branco: Homens e igualdade de género em Portugal, a ser publicado até ao final do ano — que se lê que a adesão a “medidas promotoras do envolvimento precoce do pai nos cuidados dos filhos” é sobretudo elevada entre homens e mulheres até aos 44 anos, sendo que a faixa etária menos recetiva à ideia corresponde à população com 65 anos ou mais, que olha para a família de uma forma mais tradicional.
O pai que cuida e a mãe que trabalha. Quão estranho é isso?
“A igualdade só é possível quando se olha para os dois lados. As mulheres nunca poderão ser iguais aos homens no mercado de trabalho enquanto os custos e as alegrias [da parentalidade] não forem repartidos”, diz Vanessa Cunha, que afiança que o mercado de trabalho tem uma atitude mais condescendente para com as mulheres, vistas como tendo uma dupla função: trabalhadora e cuidadora. “Quando são as mulheres que têm de sair do mercado para ir em socorro da vida familiar e os homens são libertos dessas responsabilidades, é difícil haver igualdade de oportunidades.”
Ainda assim, importa recordar um trabalho do The Economist, divulgado a 8 de março de 2016 para celebrar o Dia da Mulher, que colocou Portugal na 12º posição de uma lista dos 30 melhores países da OCDE para as mulheres trabalharem. A publicação teve em conta 10 indicadores, como o grau de educação, a participação laboral ou os direitos previstos para a maternidade e paternidade — os direitos dos pais estão diretamente relacionados com os estudos mais recentes que indicam que em “países onde os pais também podem tirar licença parental as mulheres regressam mais cedo ao mercado de trabalho e esbatem-se as diferenças entre o sexo feminino e masculino”, tal como o Observador chegou a escrever.
Para a socióloga, ainda há um trabalho a fazer nesse campo, visto que na prática o custo trabalhador-cuidador continua a recair sobre a mãe, mesmo que comecem a surgir casos de pais que escolhem ficar em casa a cuidar dos filhos.
Do outro lado da história está a forma como o mercado de trabalho encara as licenças parentais dos pais (homens). Se por um lado existe um número crescente de pais a gozarem de licença obrigatória e facultativa, tal como avança Joana Rabaça Gíria, presidente da CITE, por outro há entidades empregadoras que ainda não acompanham esse processo ou transformação. É uma questão de mudança de mentalidades, diz Rabaça Gíria:
“Temos entidades algo estagnadas no tempo e que continuam a entender a vida das pessoas como um estereótipo, que continuam a entender que as mães são as cuidadoras por excelência e que os homens são os provedores por excelência. Acho que essa mentalidade está a mudar até porque os homens têm direito à licença exclusiva. As empresas têm de admitir o gozo desse direito. Há um reconhecimento maior da sociedade de que é necessário o equilíbrio dos tempos de trabalho entre mulheres e homens.”
Joana Rabaça Gíria não dá, no entanto, conta de quaisquer queixas de pais que tenham sido impossibilitados ou limitados de gozar dos dias facultativos da licença parental, mas esclarece que na comissão é habitual receber dúvidas de pais trabalhadores, seja por telefone ou por e-mail. A presidente da CITE faz ainda uma ressalva ao evidenciar os progressos nos últimos anos, admitindo que ainda se lembra do tempo em que os pais não tinham quaisquer licenças.
Henrique Raposo é trabalhador independente, pelo que não tirou qualquer licença, mas conta a história de uma pessoa conhecida para ilustrar como algumas entidades encaram o exercício da paternidade: o cronista fala de um homem que, trabalhando num escritório de advogados, viu-se ainda na maternidade de portátil ao colo, a trabalhar, mal o seu filho tinha nascido. A imagem serve apenas de exemplo, até porque do Policy Brief já citado constam testemunhos verídicos que fazem parte de uma série de entrevistas feitas a homens entre os 27 e os 54 anos de idade. Eis algumas histórias:
- “No meu caso, o meu serviço nem sabia da possibilidade de eu poder gozar dois meses seguidos, partilhado (…). Quando eu pedi dois meses, os meus serviços só me queriam dar um mês e eu que é que expliquei por A mais B”, 36 anos, inspetor de serviço público de segurança;
- “Ainda pensámos se a mãe faria cinco [meses] e eu um, ou a mãe quatro e eu dois. Mas o trabalho não dava para dois. (…) Já não existem chicotes, mas existem as tais chicotadas psicológicas. O que eu senti foi mais isso, esse jogo psicológico. (…) A primeira pergunta que me fizeram era porque é que eu queria tirar um mês inteiro, se não chegava uns dias”, 34 anos, gestor de manutenção internet.
- “Tive uma reação muito negativa da Segurança Social (…) Foi um ambiente um bocado de cortar à faca! A senhora da Segurança Social (…) disse-me que não iria ser possível, que não encontrava essa informação, que o pai não podia tirar dois meses e meio, que era obrigatório a mãe. Só podia tirar o último mês”, 33 anos, programador informático.
“Cultural e historicamente a maternidade continua a ser vista como algo inato, algo que não se discute, e a paternidade como algo que tem de ser conquistado. Quer a maternidade quer a paternidade têm de ser construídas através da prática”, diz Ricardo Simões, da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos. É ele quem argumenta que a sociedade ainda não sabe lidar com a presente situação, seja porque é capaz de censurar a mãe que partilha a sua licença com o pai, seja porque ao homem é exigido um maior empenho e produtividade no seu local de trabalho. “Isto ainda vai demorar anos”, continua. “Já assistimos às novas gerações que estão mais presentes na vida familiar, mas ainda estamos na fase de transição.”