Aos 66 anos, Eliane Robert Moraes vê o seu nome chegar às livrarias portuguesas. A Antologia da Poesia Erótica Brasileira foi editada pela Tinta da China em novembro de 2017, depois de ter sido publicada no Brasil em 2015. É professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, mas passou anos de volta dos mestres do erotismo literário francês. Foi depois de conhecer a obra do Marquês de Sade de uma ponta à outra (é uma sádica nata, no fundo) que se interessou pela poesia brasileira de teor erótico e obsceno, nos anos 1990. Hilda Hilst foi uma “porta de entrada” e Natália Correia o despertar para a produção literária erótica deste lado do Atlântico.
Casada com um poeta português, Eliane vê Portugal com entusiasmo. Há quatro anos, passou a ter casa em Lisboa, no Príncipe Real e, ao mesmo tempo que se deslumbra com o fervilhar cultural da cidade, reconhece uma gradual abertura do país ao género erótico. Fala em “partilhas que são subterrâneas e que exigem descobertas” entre os dois países. Foi no seu “novo bairro” que a encontrámos, uma tarde dividida entre os interiores setecentistas da atual Embaixada e uma conversa “gostosa” numa esplanada do jardim. Pelo meio, ainda nos deu uma aula de calão brasileiro.
Também em 2015, publicou o livro Sade — A felicidade libertina, depois dos trabalhos Sade — Ensaios sobre a imaginação libertina (2006), O corpo impossível — A decomposição da figura humana, de Lautréamont a Bataille (2012) e Perversos, amantes e outros trágicos (2013). E os projetos são mais do que muitos. No Brasil, prepara-se para publicar este ano uma segunda antologia, desta vez com contos eróticos brasileiros. Enquanto isso, intensifica a pesquisa em torno da figura da prostituta na literatura. Quem sabe se a seguir não virá um trabalho, publicado em Portugal, sobre os “deslizes” transatlânticos no vernáculo luso-brasileiro. Pelo menos, vontade não lhe falta.
Antes do trabalho académico, qual foi o primeiro contacto que teve com poesia de teor erótico?
Eu estudava muito a literatura francesa erótica e um grande amigo meu no Brasil me ofertou uma edição fac-símile do Laurindo Rabelo. O livro chama-se Poesias Livres, obviamente tudo muito proibido na época, e é de sonetos eróticos. Este meu amigo, já falecido, é um grande poeta brasileiro chamado José Paulo Paes, que organizou no Brasil um volume muito importante, nos anos 1990, chamado Poesia Erótica em Tradução. E ele vivia me incitando a ler os brasileiros.
Com o erotismo literário brasileiro foi através da Hilda Hilst, já publicada em Portugal e que este ano vai ser homenageada na FLIP [Festa Literária Internacional de Paraty]. Foi a primeira escritora brasileira a lançar um livro decididamente obsceno, nos anos 1990. Os leitores e críticos ficaram assim pasmos, escandalizados. Ninguém quis escrever sobre ela na época. Era uma poeta de dicção elevada, respeitada e, de repente, me sai com um livro absolutamente pornográfico, com as memórias sexuais de uma menina de oito anos de idade, chamado Caderno Rosa de Lori Lamby. O editor do Jornal do Brasil, que na época tinha um caderno de cultura muito interessante, me ligou e disse: “Você não quer resenhar esse livro?”. Eu respondi: “Mas eu não trabalho com literatura brasileira”. Aí ele me disse: “Mas o livro é pornográfico, ninguém quer fazer isso”. Eu falei: “Manda”. E aí eu li Hilda Hilst e fiquei boba com aquilo que eu estava vendo, fiquei encantada. Eu conhecia Georges Bataille, Apollinaire, Marquês de Sade. De repente, estava ali do meu lado uma autora brasileira fazendo a maior ficção erótica que existe. Digamos que ela foi a porta de entrada. Ela, o Laurindo Rabelo e a Natália Correia, cuja antologia [Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica] descobri mais ou menos nessa época.
Nessa altura, o que é que encontrou de fascinante na literatura erótica?
A literatura erótica é fascinante por si. Nesta altura, já conhecia muito bem os autores franceses, já tinha lido muita literatura libertina. Então, o meu encanto primeiro foi entender que a erótica não era uma questão francesa e que ela habitava a nossa língua e habitava muito bem. E que ela também tem, digamos, um colorido próprio, tanto a brasileira, quanto a portuguesa. Ela não é uma imitação do que se fez na França, aliás é bastante diferente, tem feições muito próprias.
Ainda assim, o colorido brasileiro e o colorido português são muito diferentes um do outro, talvez um seja mais gracioso e o outro mais rude. Somos mais brutos deste lado do Atlântico?
Não. A poesia erótica portuguesa é elaboradíssima. Não acho que seja rude. É mais grave, mas de uma elaboração formal extraordinária. A nossa… Eu também não diria graciosidade, que parece que estou botando água no moinho brasileiro e não tem isso, sou muito fã da poesia portuguesa em geral e da erótica também. A nossa tem a leveza da comicidade, tem uma tendência para brincar mais. Em Portugal, o mesmo tipo de poema satírico é mais da ordem do insulto.
E essa diferença de tons vem da forma como as próprias sociedades lidam com o tema sexo? Nesse caso, o conservadorismo português faz com que a escrita seja mais solene?
Sim, mas não estou falando de comportamento erótico. Naquilo que salta à vista, os portugueses são muito mais solenes. Mário de Andrade, o nosso escritor modernista, autor de Macunaíma, diz uma coisa que adoro e que foi um empurrão para fazer essa antologia. Ele fala nos alemães, nos franceses, nos portugueses, nos indianos e diz que todos eles têm uma erótica organizada, todos menos o Brasil. E ele escreve: “Já falam que, se três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria”. Em Portugal, acho que você tem o contrário. Tem uma erótica fabulosa, extensíssima, e que, por ser mais solene, pode ir para um livro. No Brasil, botar num livro não, agora o brasileiro faz troça e faz muita troça erótica no dia-a-dia, na malícia, no falar, enfim, é do nosso quotidiano. Aliás, isso também é Mário de Andrade. Ele diz que a pornografia é da nossa quotidianidade nacional.
Mas acho que há uma solenidade no comportamento. O brasileiro talvez pegue mais, é mais fácil de pegar um pouco no corpo e de ter uma soltura nisso. E talvez a sociedade portuguesa seja mais solene, embora eu note qualquer coisa aqui em Portugal. Até aos anos 70, justamente durante esse momento tão penoso que foi a ditadura, houve publicações eróticas excecionais em Portugal: aquela coleção Afrodite, Marquês de Sade sendo traduzido e outras traduções notáveis de franceses e ingleses eróticos, aí você tem Herberto Helder que se interessa muito por isso, você tem um Luiz Pacheco e tal. Mas sinto que quando há uma abertura política, sempre muito bem-vinda, parece que a sociedade se retradicionaliza um pouco, parece que há medo desta “porcaria” que é o erotismo.
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[…]
te peço te suplico
meu macho meu rei meu cafetão
eu faço tudo o que você mandar
até o que a putinha de rua tem vergonha
eu fico toda nua
de joelho descabelada na tua cama
eu fico bem rampeira
ao gazeio da tua flauta de mel
eu fico toda louca
aos golpes certeiros do teu ferrão de fogo
ereto duro mortal
oh meu santinho meu puto meu bem
querido
se você não me estuprar
agora agorinha mesmo
sem falta hei de morrer
[…]
Excerto do poema "Cantares de Sulamita", de Dalton Trevisan
Agora, sinto que é outra vez um momento de abertura. O lançamento dessa antologia aqui é um sintoma, a própria Tinta da China tem uma coleção de livros eróticos, aqui em Lisboa você tem um lugar que é a Pensão Amor, Lisboa tem uma livraria erótica lá, coisa que não tem em quase lugar nenhum do mundo, Hilda Hilst foi editada aqui num volume chamado Obscénica, com desenhos magníficos. Estou sentindo que houve uma mudança, depois de, nas últimas décadas, ter havido um recuo em que a solenidade falou mais alto, talvez com medo que a pornografia viesse minar o processo democrático tão bonito pelo qual Portugal passou. Eu sempre frequentei sebos [alfarrabistas] de Lisboa atrás de traduções. Talvez a erótica literária seja uma coisa bem-vinda, agora que está reaparecendo com uma nova geração. Ontem, estive com duas moças que fazem uma oficina de escrita erótica aqui. Achei o máximo.
No Brasil também houve esse retrocesso que identifica em Portugal?
Acho que foi ao contrário. Enquanto Portugal estava produzindo toda uma literatura erótica, no Brasil era tudo por baixo do pano, tudo muito proibido, um catolicismo, não tão forte em termos de fé, mas ditando regras, medo de pôr aquilo num livro. Sempre houve uma erótica popular ligada ao Carnaval, à literatura de cordel, até nos cânticos religiosos há um pouco de malícia. Mas ser considerada como literatura, aí é quase o contrário. Quando saímos da ditadura e você tem uma poeta como a Hilda Hilst a fazer essa coisa fabulosa que é a obra erótica dela em 1990, um poeta como o Roberto Piva, que também tem uma obra erótica, o Glauco Mattoso, o nosso Dalton Trevisan… Mas isso é coisa dos anos 70 para a frente, o inverso.
Deste lado, temos muitas vezes a ideia de que o Brasil é mais descomplexado e mais aberto a lidar com temas como o sexo e o erotismo. Parece que não é bem assim.
Não é necessariamente verdade. Eu acho que tem uma soltura brasileira, sim, talvez um contacto e tal. Mas não. Sabia que até 1990 a própria Hilda Hilst foi considerada um escândalo? Não são só os portugueses, nós também temos os nossos belos recalques.
Foi percebendo as diferenças entre os dois países apenas ao ler autores portugueses ou também nas vindas cada vez mais frequentes a Portugal?
Não sou uma especialista em literatura portuguesa, sou uma leitora eventual e meu marido escreve sobre Mário de Sá Carneiro. Acho que, como um número imenso de brasileiros, estou em eterna surpresa com Fernando Pessoa. Poeta como Helder, não dá para passar reto por ele. Mas não sou uma estudiosa, então tomo cuidado. Quando resolvi fazer uma antologia da poesia erótica brasileira, investiguei o Brasil e isso já era um enorme trabalho. Agora, é óbvio que o contacto com Portugal vai preparando o ouvido e o léxico.
Ontem, conversava com as duas jovens sobre a palavra “deboche”. Eu falei: “O que é que vocês sentem com essa palavra?”. Elas disseram: “Soa antiga”. Você acha isso também? Originalmente, “deboche” é uma palavra francesa e se você ler os livros de Sade está lá e no feminino: la débauche. Quando passa para a nossa língua, torna-se masculina e acho que isso aí já é de interesse. Aqui em Portugal, também tem um sentido mais grave. No Brasil, deboche é uma brincadeira que você faz com alguém. Ela foi muito usada pelo Oswald de Andrade: o deboche brasileiro, debochado… Eu chamo isso de deposição da gravidade. Em Sade, la débauche é libertinagem, praticam-se as coisas mais obscenas, mas dentro do registo solene. Aqui, ainda mantém um grau de seriedade e no Brasil essa seriedade é deposta. Esses deslizamentos de sentido entre Brasil e Portugal me interessam muito.
Porque é que acha que as palavras se aligeiram quando chegam ao Brasil?
É esta coisa brasileira de surgir uma gripe e de haver logo o nome de um personagem de época, de um jogador de futebol, de um político. Acho que a gente tem deslizamentos. Ultimamente, ando também perseguindo um pouco o verbo gozar e a palavra “gozação”, a ideia de “gozar da cara” de alguém no Brasil e “com a cara” de alguém aqui em Portugal. E estou colecionando alguns dicionários eróticos, já encontrei aqui e estou colecionando brasileiros também. Estou vendo como é que se comportam as próprias palavras obscenas, que às vezes são muito diferentes.
Imagino que tenha aprendido muitas palavras novas neste processo.
Sim, sim. Mas estamos em falta no Brasil e em Portugal, não publicamos mais dicionários eróticos. É interessante, acho que isso tem a ver com um certo relaxamento dos costumes em que a gente se permite a falar palavras do baixo calão. Pelo menos no Brasil, não tenho problemas em falar palavras que são consideradas palavrões — filho da puta, merda ou qualquer dessas palavrinhas — na frente dos meus alunos. Também não seria eu a ter, trabalhando com o que trabalho. Mas com isso, esse tipo de palavra passou a ter menos interesse, tinha mais quando era proibido.
Mas a enormidade de formas populares com que você pode falar do genital masculino — bagre, bastão, quiabo, rombudo, gaita, taco, ponteiro, sabiá, chourição, picaço, cipó, estrovenga, envernizado, trabuco, bimbinha, fuso, mango, manjuba, pau-barbado, ganso — ou do genital feminino — rosa, perseguida, xereca, pomba, cabeluda, gaveta, garanhona, choca, caverna, gruta, fornalha, urinol, maldita, camélia, nhaca, petúnia, babaca, “os meios”, crica –, ou daquela parte que é comum a ambos os sexos — anel, rosquinha, buraco, rodela, pretinho, prega, rosquete, aro, roxinho, pregueado, botão, borboleta, jiló, cabo, besouro, chibiu, furo, figo, babau. É um léxico imenso, com as metáforas mais descabidas e mais cabidas também. O número de expressões que existe, não só na nossa língua, para dizer “prostituta” é uma coisa assim… É o trabalho que estou escrevendo agora, sobre a figura da prostituta na literatura. Você fala “as horizontais” e horizontal é um nome para prostituta. Você pode ler “a flor do lodo”, é um nome popular para prostitua. É de uma riqueza vernacular, é um negócio assim lindo.
Entrando no seu estudo da obra de Sade, acha justa a conotação negativa que hoje damos aos termos “sadismo” e “sádico” quando, muito possivelmente, há mais de Sade dentro de nós do que pensamos?
A atribuição da palavra a Sade é injusta, não que não haja crueldade nele, porque só há. É injusta porque medicaliza a fantasia. A obra é uma obra literária e é totalmente fantasia. A gente pode analisar um pouco a questão do indivíduo, que vasos comunicantes há entre o que ele diz na obra e a pessoa. Um libertino de Sade senta-se à mesa, toma 100 garrafas de vinho e depois vai para uma orgia com 400 pessoas — essa é uma cena de L’Histoire de Juliette. Eu não sei quantas garrafas de vinho eu aguentaria — em Portugal, tomo várias –, mas qualquer pessoa, mesmo tomando muito menos do que isso, iria para uma coma alcoólica sem volta. É óbvio que aquilo é uma fantasia do excesso. E se nós tomássemos 100 garrafas de vinho e fossemos para uma orgia com 400 pessoas? É a figuração daquilo que nós não somos. Sade não fala dos sujeitos que somos, dos sujeitos empíricos, de todas as nossas limitações. Sade figura aquilo que não somos, o que nem ele como homem era. Quando a medicina vai ler esta fantasia extraordinária, que é uma fantasia da maior liberdade que já se concebeu na literatura, e medicaliza como um sintoma humano, reduz uma ficção de liberdade às nossas neurosezinhas, aquelas que todo o mundo tem. Nesse sentido, é absolutamente injusta por ser redutora.
Há Sade em nós? Sim, há Sade em nós, na criança que permanece em nós, na criança que sai e derruba o camiãozinho de areia como se estivesse destruindo o mundo inteiro. Está nesse desejo infantil. Lá no Brasil, adoro ver as crianças na praia, fazem uma montanha e de repente pá… Aquilo ali é Sade, essa liberdade que na verdade nós não temos, mas que nós podemos imaginar. E isso, em diversos graus, é a literatura erótica, é essa capacidade de fantasiar. Não é propriamente aquilo que você realiza, nem na cama nem na sociedade, mas é o que você pode estar imaginando num momento erótico.
É essa fantasia do excesso que é comum aos autores de literatura erótica?
Claro, não podemos nem conseguimos realizar os excessos. Mas a gente pode imaginá-los e isso nos ajuda a ultrapassar a nossa condição humana. Estamos condenados a tomar uma garrafa de vinho ou duas. Por melhor que seja, temos que parar ali, mas na imaginação não.
Enquanto autores de literatura erótica, homens e mulheres estiveram sempre em pé de igualdade?
Não, não, não, não. Se as mulheres não tinham o direito de escrever, imagine então de escrever erotismo. As que escreveram, aquilo deve ter desaparecido. A história da literatura erótica no Ocidente, no Oriente não sei dizer mas acredito que seja mais ou menos parecido, tem pouquíssimas mulheres. Você começa a ter os primeiros nomes femininos no século XIX e depois é algo que vai crescendo. Na antologia que organizei, o primeiro nome feminino é a Alexandrina da Silva Couto dos Santos, uma poeta de meados do século XIX. Depois você tem uma outra no final do século XIX, depois começa a ter outra ali nas primeiras décadas do século XX. Mas efetivamente, você só passa a ter uma produção feminina um pouco maior a partir dos anos 1970. Não obstante a gente estar numa ditadura no Brasil, tivemos uma contracultura também. Os ecos internacionais da revolução sexual, do feminismo, da pílula, tudo isso faz com que comece a haver uma produção feminina. Essa questão é muito importante, esse atravessamento da questão de género no erotismo. No Brasil, foi agora lançada uma Antologia da Poesia Gay, uma Antologia da Poesia Lésbica e uma transexual. Estamos vivendo isso, é legal.
Há outros atravessamentos que são muito complicados. Os ativismos, importantíssimos, são muito afirmativos e por vezes tendem a normalizar o erotismo. Por exemplo, pegar o Marquês de Sade e dizer: “Olha como isso aqui é machista”. Aí acho complicado porque volta a reduzir a fantasia. É um debate dentro do feminismo francês, brasileiro e acredito que aqui em Portugal também. Como é que você equaciona o ativismo — nós mulheres queremos pé de igualdade –, sem fazer um trabalho de normalização da fantasia? O erotismo pode ser político no momento em que há um ato de misoginia ou um ato de violência, mas não podemos reduzi-lo a uma pauta política, porque senão a gente perde uma coisa importante, essa liberdade de fantasiar.
Mas uma coisa é certa, a figura feminina sempre foi e continua a ser a mais erotizada. Isso pode vir a mudar?
Sim, acho que isso pode mudar e os ativismos, com certeza, concorrem para que essa mudança venha a acontecer. Isso é bom, claro! Mas temos que cuidar para que a denúncia de abusos na erotização da figura feminina não venha acompanhada de um manual de regras sobre o que deve ser o “erotismo correto”… Ou seja, não é o caso de trocar uma normatividade por outra, certo? Se o momento em que vivemos é oportuno para as denúncias de abusos que restringem a nossa liberdade, ele também o é para defendermos a própria liberdade. Creio que as artes e as literaturas eróticas nos incitam a refletir sobre esse exercício da liberdade, que — definitivamente — não se limita às ações afirmativas. Quando assim se propõem, terminam por “enquadrar” o sonho, normalizar a fantasia, obrigando a potência de Eros a se curvar à realidade. Pois arte e literatura não servem para nos dizer o que somos, mas sim, e sobretudo, o que não somos e, assim, figurar o que poderíamos ser.
Quando começou a trabalhar o erotismo na literatura, ele foi também para si um símbolo de liberdade?
Eu acho que sim. Por mais que a sociedade de massa, a indústria cultural, ou como você queira chamar isso, use o erotismo na propaganda aqui e acolá, por mais que possa ser banalizado, o erotismo tem uma vocação subversiva. Algo dessa vocação subversiva se mantém e a gente tem de estar resgatando isso também. Não é porque a propaganda de cigarro vai usar o erotismo e tal que eu vou… Como se diz no Brasil, não posso jogar a água do banho e a criança junto. Vamos ficar com a criança, porque a criança é interessante. O erotismo é criação, é energia vital e nós precisamos disso. É subversivo. O assédio sexual, a importunação e a violência sexual já atrapalhavam e já eram contra a fonte criadora do erotismo. Temos que denunciar isso, agora não podemos reduzir o erotismo a isso.
Muitas vezes, uma pessoa vai estudar um livro, um autor, um quadro e vai olhar aquilo para fazer uma denúncia, parece que a pessoa está pautada para fazer uma denúncia. Eu olho para você para dizer uma coisa que já está na minha cabeça, não faço uma descoberta. Com a própria Hilda Hilst, no momento em que vai escrever um livro sobre as memórias de uma menina de oito anos que se prostitui, é muito fácil você dizer pedofilia. A palavra está pronta. Só que se você disser, você destrói o livro, porque o livro é de uma liberdade. Foi o que viveu o Nabokov, nos anos 50, quando escreveu Lolita. É tomar cuidado com esta moralização. E claro, o erotismo tem sempre alguma coisa de perigosa também. O erotismo não é uma coisa boazinha. É como tudo aquilo que diz respeito à nossa origem, por isso é que é objeto da poesia mais elevada e de rebaixamento, de grande banalização e do culto tântrico. Há algo no erotismo que é perigoso, que é dinamite. Para mexer com dinamite é preciso ter muito cuidado e, por incrível que pareça, delicadeza.
Um dos cuidados será sempre pôr a arte acima da moralização?
Sim, porque a moralização é uma capa. Moraliza-se, encobre-se. E aí o que a gente perde é se conhecer.
Qual o seu poema favorito na antologia?
Há dois que eu adoro e os dois são escritos por homens, falando como se fossem mulheres, acho magníficos. Um é de um ficcionista brasileiro excecional, o Dalton Trevisan, que já tem mais de 90 anos e que em algum momentinho da sua vida escreveu também poemas. Chama-se “Cantares de Sulamita”, é um poema extremamente obsceno. Ela está chamando um homem para transar. E ela diz: “Eu faço qualquer coisa, eu quero que você me chame de putinha de rua”. Fui estudar esse poema, ele me chamava, e verifiquei que o Dalton Trevisan segue rigorosamente a sequência do Cântico dos Cânticos [livro da Bíblia].
O outro poema que eu adoro se chama “Cantiga de Amiga”, que já tem uma dicção lusitana. É um soneto em que também uma mulher, mas num tom mais elevado, convida um homem a transar com ela. O poeta chama-se Fernando Paixão e por acaso sou casada com ele, é a minha sorte. E eu adoro. Acho que, na verdade, esses dois poemas reúnem tudo isso que a gente está falando. Acho o máximo que estes homens assumam essa persona feminina e consigam estar no lugar do outro, porque o erotismo para mim é isso, é você sempre estar num lugar que não é só o seu lugar empírico. E a fantasia é isso também.
E é fluidez de género também?
Exato. Não é isso que o erotismo é? Não é o que a prática erótica nos ensina? As possibilidades mil que os corpos têm e que nos tiram da norma.