Elsa Serra é contadora de histórias. Faz disso vida há 17 anos, mas normalmente é o público infantil que a acolhe por escolas e bibliotecas. Há três anos, depois de lhe ter sido diagnosticada uma artrose na anca que a obrigou a ficar mais tempo em casa, teve tempo para olhar em volta e aperceber-se de que, mesmo no andar de baixo, vivia alguém em profunda solidão.
“Tinha uma vizinha de 93 anos que estava todo o dia sozinha. Tinha apoio domiciliário, mas não tinha alguém que simplesmente lhe fizesse companhia. Fui lá ter com ela e li-lhe um conto.”
A partir desse momento, que se repetiu amiúde, apercebeu-se da carência de literacia no seu bairro e surgiu-lhe a pergunta: “Porque não crio uma biblioteca itinerante e chego a todos?”. A ideia começou a ganhar forma na sua cabeça. Queria chegar àqueles que estavam sós, que não tinham acesso aos livros, principalmente aos idosos. Mas como? Não podia simplesmente chegar à porta de casa deles e pedir para entrar. Isso soaria mal, talvez até tivessem medo de receber uma estranha. Por isso, foi à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e apresentou a ideia: sinalizar idosos isolados, criar uma rede de visitas e visitá-los para ler o jornal, uma revista, um livro ou simplesmente estar presente para os escutar.
“Não tinha nada a perder e se dissessem que não, pelo menos já tinha tentado”, pensou na altura. Mas o plano, que pouco depois se transformou no projeto “Na rua com histórias – Uma biblioteca para todos”, foi recebido com entusiasmo e, com o auxílio de uma assistente social e do medidor comunitário começaram a selecionar casos.
“As primeiras visitas são sempre para conhecer a pessoa, os seus interesses, o que gosta de fazer. Só depois volto a visitar para ler”, começa por explicar Elsa Serra que salvaguarda que muitas daquelas pessoas que vivem sozinhas vêem na leitura um pretexto para se sentirem próximas de alguém e para conversarem um pouco.
“A conversa gira na maioria das vezes em torno de médicos e doenças, da solidão… a leitura é uma forma delicada de mudar de assunto”, diz, contando que gosta de levar para ler pequenos contos com metáforas sobre a vida para “que fiquem a pensar e refletir naquilo que escutam”.
A maior parte destas pessoas tem apoio domiciliário e o devido auxílio por parte da junta de freguesia e instituições de solidariedade social, mas segundo a contadora não têm apoio emocional. “Nós somos mais do que um corpo. Partilhar histórias, ouvi-las, faz-nos bem e é muito construtivo. Mais do que um momento lúdico, é um momento que contribui para construir a auto-estima, principalmente na construção do lado mais emocional e dos afetos”, refere a mentora do projeto, sentindo-se muito gratificada com o retorno.
“Há muita emoção. Ao mesmo tempo que estou a promover a leitura e literacia, estou a contribuir para o reencontro de afetos das pessoas que estão sozinhas”, afirma. Elsa Serra ressalva, porém, que nem sempre as pessoas estão recetivas. “Há casos de autêntica mudez social. Essas pessoas vivem há tanto tempo sozinhas que deixam de ter vínculos fortes com as pessoas, com o que quer que seja”.
E conta a história de uma idosa, enfermeira toda a sua vida, que quando deparada com a possibilidade de ser visitada pelo projeto atirou de pronto: ” Eu não quero cá leituras”. No entanto, dias mais tarde, aquando de uma visita do mediador comunitário, disse-lhe timidamente: “Olhe, afinal se quiserem a menina das histórias pode cá vir”.
Cada visita é um momento único. E as histórias não são só as que Elsa leva nos livros, são muitas as que também traz no regresso: o senhor Valdemar a quem leva o jornal desportivo para ler, porque sabe que gosta de saber as novidades do futebol; o senhor Miguel que se encantou por um livro sobre Angola e lhe chamou ‘um tesouro’; a dona Amélia, de 86 anos, que se arranja a primor para receber a contadora de histórias e depois até partilha no facebook.
O projeto “Na rua com histórias” ainda está em fase embrionária. Elsa Serra pretende alargar esta ideia a outras freguesias e conta já com alguns parceiros. Por agora, pretende angariar apoios para comprar um tuck-tuck elétrico e transformá-lo numa biblioteca itinerante. As rotas já estão definidas e pretende levar livros e histórias ao Castelo, Sé, São Vicente, Santa Engrácia, Alfama e Graça. “O objetivo é estar um dia em cada bairro, fazer uma visita semanal a esses locais e tentar que as pessoas também venham ter connosco à rua. Muitas delas têm muita vida, mas o corpo já não corresponde e precisam de estímulos”, avança, revelando que este projeto terá o apoio fundamental de uma equipa de voluntários.
“Este livro é poesia, mas a realidade não é bem assim”
Miguel Paulo tem 47 anos, é angolano e está em Portugal desde 1991. Vive numa modesta casa na rua das Farinhas e é o único não idoso que goza do projeto de Elsa Serra. Um forte AVC aprisionou-o em casa e, impossibilitado de trabalhar, passa os dias sozinho. Não tem família próxima, mas por vezes recebe a visita de um amigo que o ajuda a estender a roupa ou a levar o lixo.
No dia em que o Observador acompanhou Elsa Serra, Miguel espera-a. Entramos na pequena casa de apenas duas assoalhadas e Miguel faz as honras, obrigando todos a sentarem-se em cadeiras e bancos, um de cada nação, de modo a que “fiquem todos bem”.
Em cima da mesa a conta de água e uma carta do hospital, os medicamentos assinalados em caixinhas e um saco com os restos do pão do almoço. Diz que ganha uma reforma “pequenina”, mas não se queixa: “Eu desenrasco-me”.
Miguel Paulo tem alguma dificuldade em falar, devido às limitações causada pelo AVC. Mas não cessa de contar histórias, de recordar outros momentos e revelar como ficou com “o lado esquerdo do cérebro morto”. “Gosto tanto de conversar, mas canso-me muito”, lamenta.
Elsa Serra traz na mão “Os transparentes” de Ondjaki. Escolhe-o por ser um escritor angolano na tentativa de fazer “regressar por momentos o senhor Miguel ao seu país”.
“Este livro é poesia, mas a realidade não é bem assim”, disse ele a Elsa no primeiro dia, quando começou a ler esta obra.
Atrás de si, uma cortina enrodilhada separa a segunda divisão da casa. Lá dentro a cama desfeita, encostada a uma parede descarnada a revelar cimento e tijolo antigo.
Mas antes de começar a leitura desse dia, a contadora de histórias explica quem são os jornalistas do Observador, pergunta-lhe sobre a sua semana, a saúde e tenta logo marcar nova visita e nova leitura: “Bem, para a semana… pois por agora nos meus dias não tenho nenhum plano”, responde Miguel.
Na pequena cozinha, que cheira a lixívia, desfiam-se conversas sobre o tempo, os amigos “ingratos” que o deixaram ou a noiva que fugiu sem nada dizer, quando ele adoeceu. Mas Elsa tenta sempre dar um novo rumo às palavras tristes e lembra-o das coisas que o fazem ainda feliz. “Ah, o Benfica…. jogou ontem e gosto tanto de ver”.
Nos armários verde clarinho estão figuras impressas a preto e branco de Simon Kimbangou, um líder espiritual. “É a minha companhia de sempre. Porque não é bom estar sempre sozinho, para aqui desolado. Gosto muito de estar com pessoas a conversar a partilhar e há muitas coisas que uma pessoa também precisa de aprender”, diz entusiasmado, para se lançar numa nova recordação sobre os tempos em que aprendeu russo numa escola em Angola ou lamentar o país intranquilo que o viu nascer e que teme se venha a perder: “Um país onde não há escolas, ninguém estuda. Uma pessoa sai de casa de barriga vazia e chega de barriga vazia também…que tristeza”.
Sentados lado a lado junto à mesa da cozinha, ajeita-se no banco, enrosca-se no robe “porque tem estado muito frio” e prepara-se para escutar. Silêncio. A história começa a ser lida.
De óculos na ponta do nariz, a entoação da voz de Elsa, fá-lo chegar ainda mais perto. Quer saber mais sobre a história de Odonato…
“A alma tinha paredes”, lê Elsa. Miguel, atento, segura a cabeça com as mãos e por breves momentos semicerra os olhos.
“Onde estás meu amor?”, eleva a voz a contadora. Miguel sorri.
“Lá fora gritavam vozes humanas, as mãos das mulheres ‘atraivam’… não… atraíam… sim” — o sorriso aberto perante o pequeno engano de Elsa.
“Maria quero ver o meu marido uma última vez” — Elsa lança um grito que faz encolher Miguel.
E a leitura nesse dia é interrompida. Chega uma vizinha, idosa, de passos vagarosos. Simpática pergunta: “Senhor Miguel quer que lhe traga alguma coisa da mercearia?”
— Quero salsichas.
— Daquelas com picante?
— Não quero as normais, tome lá dinheiro tenho aqui umas moedas…
— Quantas quer?
— As que der o dinheiro…
Mal sai a vizinha entra o carteiro, mais uma carta do hospital onde vai recorrentemente devido ao problema de saúde.
— Há dias em que não passa aqui ninguém, estou sempre sozinho…mas hoje, isto é uma alegria!