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Em Cem Soldos a casa deles é o festival de todos

Há quintais que se transformam em restaurantes, armazéns de cereais feitos centros de exposições e eiras que dão em palcos. Que famílias são estas que fazem o Bons Sons?

No número 210 da Rua São Sebastião, em Cem Soldos, as camaratas estão todas ocupadas. A antiga destilaria de aguardente de figos deu agora lugar a beliches com colchões coloridos e sacos-cama. A casa do forno foi transformada numa cozinha improvisada com fogões a gás e um carrinho de mão para gelar as bebidas. É preciso criar condições para albergar a família Mourão durante os quatro dias dos Bons Sons, o festival de música portuguesa na aldeia de Tomar.

“Agora somos só 30. Mas quando estamos todos, chegámos aos 63”, recorda Maria do Carmo, uma das nove herdeiras da antiga empresa agrícola em Cem Soldos. Foi ela que abriu a porta ao cavaquinho, à guitarra e ao pequeno piano dos Les Saint Armand para o concerto-surpresa da sua varanda que aconteceu no sábado. Nem os 38 graus demoveram as pessoas de ouvir os primeiros acordes da banda portuense, horas antes de atuarem no adro da igreja, no Palco Tarde ao Sol.

Apesar da vista privilegiada, Maria do Carmo vem com o filho Pedro e os sobrinhos para a rua, assistir aos concertos. Tira o telemóvel do bolso e regista o momento. Nasceu em Lisboa, mas conhece como ninguém os cantos à casa. Mostra-nos a cavalariça, a vacaria, os tabuleiros onde secavam os figos e o pomar. Lembra-se bem dos queijos pendurados, das vacas e da fila das pessoas para comprar leite à porta de casa. “A minha mãe ensinou-nos a gostar da aldeia”, explica. Por isso, todas as festas de Aleluia e férias de verão são passadas por ali. Desde 2008, Maria do Carmo não falta a um festival.

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Além da varanda da casa senhorial século XVIII, a família Mourão cedeu mais espaços à organização do Bons Sons. “Tudo começou quando nos pediram o antigo armazém dos cereais para uma exposição de design do Luís Ferreira [o presidente do Sport Club Operário de Cem Soldos]”, explica a filha da proprietária que o lagar da quinta já tinha sido também transformado na sede da associação local dos SCOCS, onde nasceu o festival dos Bons Sons.

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Em 2012, foi a vez da antiga eira comunitária da família se transformar em palco para o festival. O terreno onde se limpavam, secavam e debulhavam os cereais deu lugar a um dos grandes palcos, onde são apresentados os projetos mais aculturados e urbanos. “Foram os Capitão Fausto quem o inaugurou. Ouvi-os perfeitamente da minha cama”, recorda Manuel, um dos netos proprietários, que voltou a sentir o efeito na primeira noite do Bons Sons deste ano quando a banda portuguesa subiu ao palco.

Logo a seguir vem a vinha do peneta, outrora recheadas de uvas e que hoje está ocupada com o parque das autocaravanas, tendas e pequenos estendais improvisados. Também o armazém de cereais se transformou este ano num espaço de oficinas e sessões para os mais novos. Tudo sem custos, apenas com colaboração da SCOCS na manutenção dos espaços.

É no quintal de Ana Maria, no número 203 do Largo do Rossio, em Cem Soldos, que as cozinheiras preparam os pedidos dos clientes. Há feijão, espetadas de carne e arroz. Há ainda mesas e bancos corridos de madeira e toldos para proteger do calor. ”Em troca, quando eu morrer, deixam-me ali uma estátua como agradecimento”, diz.

Tal como a família Mourão, os habitantes da aldeia abrem portas de casas, cedem quintais, empreendem em montagens e construções, limpam e cozinham. Há quem venda bilhetes, ajude na logística ou produza merchandising como as as avós de Cem Soldos que cosem as lagartixas, a mascote do festival. São 400 voluntários que ajudam a organização, não recebem honorários, mas contribuem para a sobrevivência da aldeia.

É assim que o SCOCS ensina os jovens da aldeia a trabalhar em equipa e a gostar do sítio onde nasceram. Investem as receitas do Bons Sons para sustentar o ATL, pagam os gastos do centro de saúde da aldeia e, no futuro, querem criar um projeto de requalificação urbana com a Casa Aqui ao Lado e o programa Lar da Aldeia, de assistência a idosos.

Organizado desde 2006 pelo Sport Club Operário de Cem Soldos, o Bons Sons tem um orçamento de pouco mais de 400 mil euros e mantém o conceito original de envolvimento de toda a comunidade na preparação da aldeia para receber as pessoas. Durante os quatro dias, a aldeia de Cem Soldos fica fechada e praticamente todas as pessoas que ali vivem estão envolvidas no projeto.

Ana Maria, de 57 anos, é uma delas. É a proprietária da quinta Aleluia Grelhados que serve as refeições aos 35 mil festivaleiros esperados pela organização. “Só abro para o festival”, conta. Ou para ajudar os escuteiros na venda de frango assado para a angariação de fundos. “Cedo o espaço. O resto é com eles”, acrescenta.

Ana Maria nasceu e vive na aldeia. Tira sempre férias nesta altura para conseguir estar presente e assistir na primeira fila ao ambiente característico. “A organização está de parabéns. Cada ano que passa está melhor”, elogia o espírito comunitário da população.

É no seu quintal, no número 203 do Largo do Rossio, em Cem Soldos, que as cozinheiras preparam os pedidos dos clientes. Há feijão, espetadas de carne e arroz. Há ainda mesas e bancos corridos de madeira e toldos para proteger do calor. ”Em troca, quando eu morrer, deixam-me ali uma estátua como agradecimento”, diz.

António Clemente ajuda na montagem e organização do evento sempre que o físico permite. “É uma coisa meia maluca, que dá muito trabalho, mas que vale muito a pena ver a aldeia cheia”, diz. Já saiu para morar em Lisboa três anos, mas não aguentou ficar longe.

O largo está cheio. É lá que acontecem os “Jogos do Hélder”, desafios tradicionais repensados em formato moderno e de grande dimensão e que incluem algumas das atividades destinadas às famílias que frequentam o festival.

É o caso da Lara Ferreira, que regressou à aldeia onde morou até aos 18 anos, para apresentar à filha o festival. “É a primeira vez que venho e tenho pena de não ter comprado o passe geral. Queria ficar mais dias”, conta ao Observador. Com ela, veio a filha Simone, estreante nos festivais de música. “Estou a descobrir a aldeia. É muito fixe”, diz a menina de 9 anos.

Não faltam bebés ao colo ou crianças de carrinho pelas ruas de Cem Soldos. Pedro Baptista veio de Ourém com a família para o festival. A viver em França, aproveitou o regresso a Portugal para conhecer o Bons Sons. “Queria mostrar aos meus filhos uma típica aldeia portuguesa”, conta ao Observador. A esposa Lauriane fala pouco português, mas elogia a simpatia dos habitantes. “Até espaço para amamentar têm”.

É na sede dos escuteiros da aldeia que é possível trocar a fralda aos bebés, amamentar em privacidade ou pô-los a dormir uma sesta. Durante o Bons Sons, o lugar está disponibilizado para as crianças para inúmeras atividades. Por exemplo, passeios em burro mirandês, através das colaborações estabelecidas com instituições que trabalham no espaço rural, como a Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino, de Sendim, Miranda do Douro.

“É importante criar condições para quem nos visita e criar experiências novas”, afirma António Clemente, adjunto do presidente dos escuteiros de Cem Soldos e membro do grupo de teatro da terra. Ajuda na montagem e organização do evento sempre que o físico permite. “É uma coisa meia maluca, que dá muito trabalho, mas que vale muito a pena ver a aldeia cheia”, diz. Já saiu para morar em Lisboa três anos, mas não aguentou ficar longe.

O caráter comunitário e a veia empreendedora da aldeia foi o que motivou a família Mourão a colaborar com a organização do Bons Sons. “Esta casa nunca seria o que foi sem os habitantes de Cem Soldos. Somos uma família”, diz Maria do Carmo.

Pedro, Manuel, Gonçalo, Inês, Madalena e Leonor, na casa dos 20 anos, vieram de Lisboa de propósito para o Bons Sons. Dividem-se nas conversas à volta da mesa, na azáfama da casa ou nos mergulhos no antigo tanque da casa para se refrescarem. “Os outros primos devem andar por aí, a ver concertos”, dizem.

O sucesso do festival levou os Mourão a formarem uma associação, a “Nove Soldos”, para mostrarem como é a vida na aldeia. O primeiro campo de férias aconteceu o mês passado e trouxe 16 crianças de Lisboa. “A aldeia inspira-nos e ajudou o Bons Sons, impulsionou-nos a fazer este projeto”, refere Manuel, um dos responsáveis da associação.

No jardim da família, a mesa comprida está pronta para receber os filhos, os netos, os bisnetos, os primos e até os amigos que queriam juntar-se à festa. Pedro, Manuel, Gonçalo, Inês, Madalena e Leonor, na casa dos 20 anos, vieram de Lisboa de propósito para o Bons Sons. Dividem-se nas conversas à volta da mesa, na azáfama da casa ou nos mergulhos no antigo tanque da casa para se refrescarem. “Os outros primos devem andar por aí, a ver concertos”, dizem. Daqui a nada, é hora de comer e já sabem que a regra da tia Maria do Carmo é para cumprir: no jantar, os Mourão sentam-se todos à mesa na casa de Cem Soldos.

O festival Bons Sons termina esta segunda-feira. Todas as informações aqui.

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