As portas da sala estão abertas, as pessoas procuram o seu lugar e acomodam-se nas cadeiras. “Boa noite e bem-vindos”, ouve-se imediatamente do palco, onde músicos depressa arrancam para canções. A Can’t take my eyes off you (1967), tema orelhudo de Frankie Valli, segue-se o inebriante I Feel Love (1977), da diva do disco Donna Summer. Não tarda, embalaremos com o doce pop de Tu me regardes (2018), da francesa Angèle.
“Se pensarmos de forma simplista, a ópera é apenas um teatro cantado, nada mais. Não estamos a falar, estamos a cantar, a dizer algumas coisas. Portanto, este concerto no início do espetáculo é com a ideia de dizer ao público: não se preocupem, sejam bem-vindos, toda a gente pode estar aqui, toda a gente vai perceber. Quando temos um microfone e cantamos Can’t Take My Eyes Off You e quando cantamos a ópera de Gluck de 1762, é a mesma coisa”. Quem o diz é Jeanne Desoubeaux, 32 anos, dramaturga e encenadora francesa, cujo espetáculo Où je vais la nuit tem honras de encerramento esta quinta-feira, 18 de julho, no Festival de Almada, naquela cidade.
Com estudos musicais, de dança, de teatro e literários, Desoubeaux é uma figura em ascensão na cena teatral europeia. Criou a companhia Maurice et les autres em 2015, move-se na ópera e no teatro com igual à-vontade, tendo vindo a especializar-se em territórios dramatúrgicos que oscilam entre um e outro géneros. Como nesta peça, que parte do mito de Orfeu e Eurídice e da ópera do compositor alemão Christoph Willibald Gluck sobre o mesmo tema para criar um espetáculo musical e teatral que saltita entre o canto e a representação, entre a ópera de Gluck e a música moderna. “Dizemos umas coisas, pensamos sobre elas e… é isso. É como abrir a porta da ópera com um doce, a música pop. Se as pessoas não vão à ópera, quase toda a gente vai ao concerto”, compara a encenadora que reclama como seu propósito maior dizer ao público: “não se preocupem, vão perceber, vão estar no sítio certo.”
Où je vais la nuit, cujo título parte de uma canção de 2002 de Philippe Katerine utilizada no espetáculo, é uma ópera “sobre a perda, e sobre o facto de não aceitarmos a perda”, resume. Estreou-se no Teatro de Limoges em janeiro de 2022, tendo passado ainda pelo importante Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris. Em Almada, sobe, às 22h, ao Palco Grande da Escola, um espaço simbólico quando a sua encenadora é incisiva no desejo profundo de democratizar o género e cativar novos públicos. “Penso muito nisso. Com esta companhia, Maurice et les Autres, o que tentamos fazer com os espectáculos é exatamente isso. Os espectáculos líricos e a ópera não são reservados às classes de elite. É um sentimento, uma emoção que pode levar toda a gente a algo muito profundo. É um sentimento que todos podemos ter. Quando faço uma encenação tento falar para um público mais jovem”, admite Desoubeaux ao Observador.
A própria escolha de fazer uma versão no feminino de Orfeu e Eurídice, baseada na ópera de Gluck, é assim justificada: “Queria não fazer um tema com isso, mas apenas mostrar duas mulheres a amarem-se. E não dizer que é um espetáculo sobre homossexualidade. Queria só mostrar uma representação do amor e uma representação do género que não são muito mostradas neste tipo de ópera.”
“É um espetáculo que perseguimos há três anos”, confessou o diretor do Festival de Almada, Rodrigo Francisco, em junho, aquando da apresentação à imprensa da programação do certame, classificando Desoubeaux como uma “encenadora desconhecida em Portugal, mas que é uma estrela em ascensão”.
“É muito generoso da parte dele”, contesta Jeanne ao Observador, destacando a importância do trabalho conjunto, em particular a direção musical de Jérémie Arcache e Benjamin d’Anfray, ambos também em palco, no piano e no violoncelo, respetivamente. “Pensamos a música e o teatro não como coisas separadas. Tentamos pensar como a música pode ser teatral e como o teatro pode ser musical. Quando adaptamos esta ópera, não pensamos na música como algo à parte”, diz, reconhecendo: “sei que fazer óperas assim não é muito comum, há uma tradição cheia de códigos e regras.”
Sem se reduzir a uma questão geracional, Jeanne admite que o posicionamento artístico advém desse lugar que ocupa e das lutas próprias do seu tempo. “Tivemos de lutar para fazer o que fazemos agora e vamos ter de lutar muito ainda…” A conversa com o Observador, por telefone, acontece no preciso momento em que França vive uma situação política dramática, dias antes das eleições, numa altura em que o futuro do país se desenhava com uma provável vitória do partido de Marine Le Pen. “Podemos perder o nosso emprego a qualquer momento. Temos de lutar, temos de lutar para fazermos espectáculos neste contexto”, alertava.
Na iminência provável de uma repetição da primeira volta — algo que não viria a suceder-se — Desoubeaux revelava-se então incapaz de ver filmes ou ler livros, com o cérebro consumido com uma “preocupação” que se alastrava a grande parte do setor cultural francês. “Estamos todos preocupados”, dizia, revelando que as récitas mais recentes têm sido sucedidas por algumas palavras. “Tentamos dizer algo no final de todos os espetáculos. Nestas últimas semanas, apresentamos muitas vezes este espetáculo, Carmen. É uma peça muito política, muito feminista. No final de cada récita, aproveitamos o momento para falar com o público e dizer que estamos preocupados, que temos de lutar contra a extrema direita e que um espetáculo como este, e muitos outros, não podia existir com esse governo.”
Por enquanto, existe e resiste. “Não podemos mudar o mundo, nem fazer alguém mudar de ideias, mas podemos criar espaços em que, por um momento, olhamos todos em conjunto. Não é uma visão política, é mais do que isso. Mais não seja, o teatro é um espaço em que as pessoas não estão a olhar para o Instagram durante duas horas. Nada contra, tenho Instagram e é uma ótima ferramenta. Mas nas redes sociais só vemos quem pensa como nós. Fazer espetáculos também serve para isso, para propor um espaço para pessoas que querem ver a mesma coisa, sim, mas que pensam de forma diferente sobre ela.”
Palco Grande da Escola D. António da Costa (Almada). 18 de julho, quinta-feira, às 22h. Bilhetes €17,50. A bilheteira abre 1h antes do espetáculo.