Desde que ficou obcecada com a história da violação, seguida de assassinato, da artista italiana Pippa Bacca, durante uma performance, em 2008, Carolina Bianchi começou a recolher histórias de violação e feminicídio. A atriz, encenadora e dramaturga nascida em Porto Alegre, Brasil, em 1984, organizou a pesquisa misturando histórias verídicas com fábulas, pinturas, cruzando narrativas em que a memória se esfuma e o trauma se satura como ferida por sarar.
Parte desse trabalho é mostrada em A Noiva e o Boa Noite Cinderela, o espetáculo com honras de abertura do Festival Alkantara, em Lisboa, numa edição do certame dominada por propostas que nos desassossegam para nos despertar — no caso, para o pesadelo da violência sobre as mulheres. A peça, que se estreou em julho de 2023 no Festival de Avignon, em França, mostra-se esta sexta-feira e sábado, na Culturgest, em Lisboa, e, uma semana depois, no Teatro Campo Alegre, no Porto (dias 22 e 23).
É o primeiro capítulo de uma trilogia de Bianchi com o seu coletivo Cara de Cavalo, a que chamaram Cadela Força. “É uma trilogia que fala de estupro e violência sexual. Dessa brutalidade do que essa ferida faz”, conta ao Observador, por telefone. “Cada peça mergulha um pouco numa determinada linguagem artística, não só como pergunta, mas como forma também de investigação”, adianta, avançando que já está a trabalhar no segundo capítulo, que se estreia na primavera. “Chama-se A Brotherhood, A Fraternidade, e volto o meu olhar para a questão da masculinidade.”
Mas voltemos ao presente: A Noiva e o Boa Noite Cinderela. A peça colhe parte do nome da expressão coloquial utilizada para fazer referência às chamadas “drogas da violação”, como o GHB (ácido gama-hidroxibutírico), “Boa Noite Cinderela”. Mas é tudo menos um conto de fadas o espetáculo que saiu de Avignon classificado pelo francês Libération como “peça-choque”, graças ao caráter explícito da violência, da nudez, da linguagem.
Bianchi não gosta de dizer que a peça começa em jeito de palestra, ainda que seja esse o aparato no palco, por onde rompe vestida de branco e, diante dos nossos olhos, prepara uma bebida adulterada enquanto dialoga com o público como se de uma conferência se tratasse. Só mais tarde A Noiva e o Boa Noite Cinderela mergulha a fundo na ficção. “A segunda parte do espetáculo é o momento em que a teatralidade, esse aparato de teatro fica completamente evidente”, assume.
“A pergunta era: como fazer a pesquisa? Porque muitas histórias não têm registo. Encontramos coisas em sites que ficamos com dúvidas sobre o que estamos a ler, sobre a fonte. Demos com a cara na porta muitas vezes porque muitas informações não existiam. Ou descobríamos um livro que estava não sei onde, que tinha essa informação”, recorda ao Observador sobre um processo de pesquisa longo e complexo, cheio de desafios impostos pela falta de relatos na primeira pessoa. “Tem uma questão com esse tipo de história que é o lado da vítima, que às vezes ele também não [existe]. Ou porque a vítima desapareceu, foi assassinada, ou, muitas vezes, quando se trata de casos de violência e de estupro, é difícil também contar.”
Com uma base de trabalho fortemente ancorada em factos verídicos, questionamos se o teatro contemporâneo não tem caminhado cada vez mais no sentido não ficção, não apenas no teor, mas também na forma — a última passagem da conterrânea Christiane Jatahy no CCB, é apenas um dos exemplos recentes. Precisará a arte, mais do que nunca, em vez de nos fazer sonhar com o que não existe, mostrar o que está bem diante dos nossos olhos? “É uma pergunta interessante. Acho que a questão da conferência está aí presente também como essa tentativa de expor o caminho de um pensamento”, assume a artista.
“Uma peça não resolve”
Uma coisa é certa, se a ferida da violação ainda arde, Carolina Bianchi não tem dúvidas que “uma peça não resolve”. “É possível que o teatro sustente essa conversa sobre violência sexual, sobre estupro?”, questiona-se em voz alta, antes de dar a resposta possível: “Acho que estou fazendo essa trilogia para investigar isso. Não sei. Não tenho essa resposta ainda”.
Nesta viagem de duas horas e trinta minutos pelo inferno da violência sexual e do feminicídio, não há catarse ou salvação. Tampouco o teatro é o lugar de resolução de problemas, de reparar o que não é reparável. Poderá ser, pelo menos, veículo de denúncia, questionamos? “A palavra denúncia, para mim, é uma contradição. Não acho que na arte há um lugar para servir a denúncia. Acho que a arte é um lugar para elaborar o pesadelo, tentar dar contornos. Veja que digo tentar, nem estou certa que isso é, de fato, o lugar das coisas”, afirma.
“O meu desejo era que fosse possível colocar também um debate sobre a arte, sobre o que a arte faz, o que a arte pode fazer. Quais são os conflitos também que o lugar da arte traz quando se está falando sobre questões como essas? Quais são as contradições, quais são essas marcas que vão ficando mais evidentes também com essa elaboração artística?”.
Nessa tentativa de dar contornos aos pesadelos, Carolina Bianchi rejeita liminarmente o título de teatro-denúncia. “A denúncia serve também um pouco como o fim do conflito. A gente aponta o dedo e diz: este é o problema. E aí o problema parece resolvido. É como a gente diz dentro do próprio texto da peça, a gente fala: ‘não há cura, não há essa superação deste problema’”. Podemos sair do teatro mais acordados, mas não mais resolvidos. Podemos “ouvir essas histórias de extrema violência, da violência sexual e entender que essas marcas vão fazer parte de toda uma vida, mas elas não vão desaparecer, elas não se superam. Não acredito nessa ideia da superação desses problemas.”
Culturgest, Lisboa, 15 e 16 de novembro, sexta, às 21h, sábado, às 19h, Bilhetes a 16€. Teatro do Campo Alegre, Porto, 22 e 23 de novembro, sexta e sábado, às 19h30. Bilhets a 12€.