Eurico Castro Alves, diretor do departamento de cirurgia no Centro Hospitalar do Porto e ex-presidente do Infarmed (entre 2012 e 2015), à medida que se familiarizou com a ultra-promissora indústria mundial da canábis medicinal, constatou que milhares de doentes, incluindo em Portugal, “se abasteciam [de canábis] no mercado negro para se tratarem” ou menorizarem os sintomas das suas doenças, como cancros ou problemas do foro neurológico. Ora, “isso é que eu acho uma vergonha. O Estado tem a obrigação de proporcionar os meios às pessoas para que estas possam ter acesso a todos os tratamentos, o melhor que existe”.
Em entrevista ao Observador, o médico, que foi secretário de Estado da Saúde no (curtíssimo) segundo Governo de Pedro Passos Coelho, defende que esta é uma indústria que pode trazer enormes benefícios para os doentes e para a economia nacional — não só na produção e desenvolvimento de medicamentos à base de canábis mas, também, desde já, porque Portugal pode aproveitar o movimento de ensaios clínicos que serão essenciais para que estes medicamentos sejam testados e cheguem ao mercado (um mercado gigantesco a nível mundial).
O especialista nota que “já temos algumas dezenas de empresas a investir em Portugal, empresas de grande dimensão mundial que estão cá para investir, para crescer e para desenvolver. E as que não estão, estão para chegar”. Em outubro, Eurico Castro Alves assumiu um cargo não-executivo na Symtomax, uma empresa que já tem 105 hectares para exploração (indoor e outdoor) em Beja. “É como um corolário da minha atividade como médico e, sobretudo, como cidadão que quer desenvolver e criar novas oportunidades para os nossos cidadãos. É algo que farei a tempo muito parcial, mas em que estarei disponível para ajudar com aquilo que tenho para dar”. Porque “Portugal poder ser um hub para o resto da Europa, que é um mercado com 500 milhões de consumidores”, afirma.
Foi presidente do Infarmed entre 2012 e 2015, período em que foi feita boa parte da regulação existente sobre a canábis medicinal em Portugal, cuja lei entrou em vigor no início de 2019. É justo considerá-lo o principal responsável pelo crescimento deste setor em Portugal?
Pode não ser justo dizer dessa forma porque, normalmente, as coisas grandes e boas que acontecem são fruto do trabalho de uma equipa. E, aqui, foi exatamente esse o caso. Houve influência política, influência regulamentar, dos órgãos legislativos. As leis andam sempre atrás dos costumes da sociedade e aqui passou-se isso mesmo: percebeu-se que a comunidade científica começava a notar que havia evidências, algumas evidências — faltam muitas mais –, de que havia interesse terapêutico numa determinada componente da canábis. Isso é que despoletou todo o processo. Eu fui mais um. Colaborei ativamente, porque desempenhava funções que eram decisivas, dei um contributo importante mas o resultado — que considero ser uma mais-valia para a nossa sociedade — é um resultado da colaboração de muitos agentes das mais diversas áreas da nossa sociedade.
Mas tem de haver uma visão, de perceber o potencial de algo…
Sim, tem de haver visão e alguma liderança. Comecei a ter um contacto, muito cedo, com as vantagens dos canabinóides em termos médicos. Comecei a perceber a grande utilidade que isso iria ter e, sobretudo, o fator que me tornou mais adepto deste tipo de terapêuticas foi perceber que já havia milhares de doentes que recorriam ao mercado negro para tratar as suas doenças. E isso é que não acho legítimo. Acho que o Estado tem a obrigação de proporcionar os meios às pessoas para que estas possam ter acesso a todos os tratamentos, o melhor que existe.
Como médico, quais são, então, as vantagens da canábis para uso medicinal?
Como médico, e baseado na experiência que tenho tido com a informação científica, acho que estamos perante um grande avanço terapêutico. Mas, como com todas as novidades, temos de olhar para elas com sabedoria, com cautela, e temos, sobretudo, de basearmo-nos em evidências científicas para garantir, sempre, a segurança dos utentes e, ao mesmo tempo, aproveitar o benefício terapêutico.
Esse benefício existe, é inquestionável que é assim?
Que há aqui benefícios terapêuticos é evidente. O que falta é: utilizando as regras e as metodologias científicas, demonstrar que esse benefício existe, como parece existir, em relação a muitas mais doenças. Estando isso provado, penso que será obrigação de todos — não só dos médicos — criar os meios para que os doentes rapidamente possam ter acesso a estas terapêuticas. Para que não aconteça uma coisa que considero uma autêntica vergonha que é as pessoas doentes, nomeadamente doentes oncológicos, andarem a abastecer-se no mercado negro. Isso é intolerável numa sociedade civilizada como a nossa.
Mas é preciso trabalhar na obtenção dessas evidências científicas…
Claro, também temos que olhar para isto com cuidado, com equilíbrio. Obviamente que nós não podemos pôr os medicamentos à disposição dos doentes sem garantirmos a sua segurança. E, portanto, a necessidade de serem feitos ensaios clínicos, para criar evidência científica — é fundamental. É preciso gastar algum tempo em experiências científicas, como é normal.
Tem havido avanços nesse processo?
Tem havido grandes avanços sobretudo em países como o Canadá, Israel. Há médicos com muita credibilidade, com muita experiência adquirida, que demonstraram cientificamente a importância dos medicamentos. E há, também, conhecimento empírico: há muitos doentes que já tomaram medicamentos derivados dos canabinóides com franca melhoria terapêutica. Mas, além disso, já começa a haver muita evidência real, feita em ambiente científico que nos permite tirar conclusões animadoras.
Mas não são, ainda, o suficiente para que a comunidade médica sinta total confiança ao ponto de prescrever?
Não é suficiente porque não tem havido comunicação. Tem sido sempre assim na Medicina e, na minha opinião, muito bem: os médicos são, por definição, cautelosos, porque têm de defender a segurança do seu doente, portanto são muito cuidadosos nos passos que dão quando se fala em inovação. Queremos, muito, que haja inovação, queremos, muito, tratar os nossos doentes, mas temos de saber dar os passos seguros — e, às vezes, isso pode demorar algum tempo. A comunidade médica é muito conservadora, o que falta agora é juntar os médicos, juntar a evidência científica e melhorar esta comunicação sobre o que está a aparecer de novo, o que está comprovado e cientificamente provado que é bom para o doente.
Conhece casos concretos de situações em que esses medicamentos poderiam estar a ajudar?
Tenho colegas meus, sobretudo médicos que se dedicam à área da oncologia, que têm vivido autênticos dramas com doentes que poderiam ter benefícios muito grandes e que não têm acesso a tratamento com canábis medicinal.
Qual pode ser o potencial desta indústria para Portugal?
Acho que há potencial muito interessante em duas vertentes. Desde logo o potencial económico. Isto tem um valor económico importante — como, aliás, a maior parte das atividades de saúde. E acho que dentro de algum tempo o negócio da canábis medicinal vai ter peso no PIB. Até porque esta oportunidade que existe, com o ambiente legislativo amigável em Portugal, é uma porta que se abre para Portugal poder ser um hub para o resto da Europa, que é um mercado com 500 milhões de consumidores. Se Portugal estiver na linha da frente, isso significa que será um país privilegiado para ser a partir daqui que se faz o abastecimento da Europa.
Mas o que quer dizer com “ter peso no PIB”. Estamos a falar de que potencial, concretamente?
Não sou economista mas estou a dizer, com a minha intuição, que dentro de alguns anos se vai notar no PIB. O que quer dizer que a mais-valia criada em Portugal vai ter um rendimento tal que se vai notar, que vai ter peso no nosso produto económico.
Como uma Autoeuropa, por exemplo…
Exatamente. Vai-se notar.
Em que prazo?
Num prazo inferior a cinco anos, atendendo ao conjunto de licenças que o Infarmed está a atribuir, ao conjunto de empresas credíveis, de cariz mundial, que são verticalizadas neste negócio e que estão cá em Portugal, com investimentos sérios, de grande aposta, acredito que isso vai refletir-se num avanço para a nossa economia. Neste momento, o que está a ser cultivado é quase tudo para exportação — estamos a desenvolver a produção agrícola da flor, mas já há projetos em desenvolvimento de fabrico de medicamentos em Portugal. E de distribuição de medicamentos em Portugal, que depois têm de ser aprovados pelas entidades regulamentares.
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E a outra vertente, de potencial para o país?
A outra vertente — e não menos importante, até mais importante dada a minha formação — é a vertente do benefício terapêutico franco que vamos conseguir dar aos nossos doentes, principalmente na área da oncologia e da neurologia. Todas as doenças neurológicas — a epilepsia, a esclerose múltipla, as disfunções do sono, que são muito frequentes na nossa população… Há cento e tal possíveis indicações terapêuticas. Nós queremos que as pessoas vivam mais tempo, mas não é só viver mais tempo: é viver mais tempo e com qualidade de vida. E tudo indica que a partir da canábis medicinal podemos desenvolver medicamentos que dão qualidade de vida, menos sofrimento e mais tempo de vida. Sendo isto verdade, não podemos deixar de querer dar isto aos nossos doentes o mais rapidamente possível.
Mas, voltando ao potencial económico para o país, a ideia seria não só a produção de canábis medicinal mas, também, conseguir trazer para Portugal esse processo de ensaios clínicos. É isso?
Isso é muito importante, desde logo pela importância económica — o nosso país é dos países onde se fazem menos ensaios clínicos, na Europa. O nosso país pode crescer muito nessa área porque temos os meios técnicos, os recursos humanos, os cientistas… Temos a oportunidade e os meios para poder aproveitar este aparecimento dos ensaios clínicos na área da canábis, não só para ajudar a produzir os tais resultados científicos mas, também, movimento económico. Há empresas estrangeiras que querem vir para cá fazer esses ensaios clínicos nesta área — é preciso limar algumas burocracias para tornar este processo mais célere.
O que é que pode significar, em termos concretos, para Portugal?
Vou-lhe dar um exemplo. A Bélgica tem uma população semelhante à nossa e a Bélgica fatura em volume de negócio em ensaios clínicos cerca de 750 milhões euros (por ano). E nós estamos na ordem dos 150 milhões de euros… Há aqui qualquer coisa que não está bem. Parece-me que há aqui uma margem de crescimento muito importante para o nosso país — saibam as autoridades criar o ambiente regulamentar amigável para a realização de ensaios clínicos.
Como assim?
Há alguma burocracia que ainda pode ser corrigida e melhorada.
Quando foi presidente do Infarmed, o que se fez nessa área?
Fizemos avanços notáveis, temos subido todos os anos em volume de ensaios clínicos, mas ainda há muito para fazer. Felizmente, quem está hoje nos órgãos competentes, no Infarmed e outros, têm esta noção e esta sensibilidade. Acredito que não será difícil fazer as reformas necessárias para criar um ambiente mais favorável ao aumento dos ensaios clínicos em Portugal.
Foi contratado como administrador não-executivo na Symtomax, uma das empresas que estão a investir em Portugal, neste setor. Que contribuição é que espera dar a essa empresa?
É uma contribuição de consultoria, fui convidado, de facto, uma participação não-executiva, de consultoria esporádica, que faço com muito gosto porque, com a experiência que acumulei, sei que poderei ajudar numa área que é importante para os nossos doentes. É como um corolário da minha atividade como médico e, sobretudo, como cidadão que quer desenvolver e criar novas oportunidades para os nossos cidadãos. É algo que farei a tempo muito parcial mas em que estarei disponível para ajudar com aquilo que tenho para dar.
Já existem várias empresas ativas nesta produção, em Portugal, desde a gigante canadiana Tilray, a Sabores Púrpura, a Terra Verde, a RPK Biopharma, a própria Symtomax… Acha que Portugal tem espaço para muitas mais empresas?
Tem espaço para mais algumas licenças, sim. Já temos algumas dezenas de empresas a investir em Portugal, empresas de grande dimensão mundial que estão cá para investir, para crescer e para desenvolver. E as que não estão, estão para chegar.
Quem trabalha cá, nessas empresas, são pessoas originárias dos países de onde vêm as empresas, ou há também portugueses — desde os investigadores até à mão-de-obra?
É um pouco de tudo. Temos empresas internacionais, temos investidores locais e começa a aparecer muita gente ligada às universidades, à investigação, algo que é extremamente positivo e que estão, também, a entrar neste mercado.
O que é que torna Portugal diferente, ou especial, em relação a outros países, nesta matéria?
Portugal tem vários fatores que o diferenciam, desde logo porque criámos um ambiente regulamentar e legal, com o devido sentido de responsabilidade e segurança das pessoas, que é um ambiente amigável para o desenvolvimento do cultivo e da produção. Depois, é um país com um clima excelente para o desenvolvimento da planta. E tem uma localização estratégica, depois, para a distribuição, com aeroportos, comboios, uma boa rede viária. Conjugados todos estes fatores, Portugal é uma proposta extremamente interessante para os investidores.
Mas, dizia, há pouco, que também há desafios…
Sim, porque sabemos que esta substância tem duas componentes: tem o CBD, que é a que mais utilizada do ponto de vista médico, e tem o THC, que se for numa proporção demasiado grande torna-se um alucinogénico, deixa de ser um medicamento para ser uma droga ilegal. E isso obriga a que, segundo até os padrões europeus e da Organização Mundial de Saúde, que tenhamos os maiores cuidados e cautelas na manipulação deste assunto. As questões de segurança são fundamentais, não só a segurança física mas, também, a segurança em termos medicamentosos, o efeito nos doentes, etc. A partir do momento em que se considera um medicamento, existem todas as cautelas, com toda a rastreabilidade, desde a semente até ao consumo. Todo o percurso é rastreado, é rastreável, e a qualquer momento temos de poder saber onde esteve, por onde passou e a que condições esteve sujeito. Faz parte das regras mundiais deste ou de qualquer outro medicamento.
Mas quando pensamos neste mercado, na Europa, faz sentido pensar que um dia pode haver quotas como na sardinha, no leite ou noutros produtos?
Daqui a alguns anos, o que pode acontecer é que com a produção e cultivo da flor da canábis ela possa vir a ser uma commodity [um produto intersubstituível, sem grande valor e diferenciação]. Acredito que até se chegar aí vai demorar muito tempo porque, neste momento, por só estarmos a começar, a procura é tal que a oferta não consegue responder.
Estamos perto de chegar a um equilíbrio?
Não, estamos muito longe ainda. O consumo vai aumentar desmesuradamente, as aplicações terapêuticas serão cada vez mais, vai haver cada vez mais ensaios clínicos e evidência científica a demonstrar o interesse enquanto medicamento. Portanto, a minha convicção é que surgirão muitos e novos medicamentos, o consumo será muito grande também e, portanto, as necessidades de cultivo e de produção vão estar sempre aquém da procura, nos próximos tempos. Nesta fase não faz sentido falar em quotas de produção.
Portugal está a posicionar-se a tempo?
Portugal foi pioneiro, está na linha da frente, o que é um orgulho para mim enquanto cidadão. Portugal foi dos primeiro países a abolir a escravatura e a pena de morte — e também aqui estamos a saber despirmo-nos de preconceitos. Temos um produto que é benéfico e que tem utilidade terapêutica para os doentes. Sem abdicar das questões da segurança e qualidade, conseguimos deixar de ter preconceitos e fazer com que as pessoas mais rapidamente tenham acesso àquilo que lhes faz bem.
Mas o preconceito existe, ainda se fazem capas de jornais sobre quais figuras conhecidas estão a investir ou a colaborar com este setor…
O preconceito existe. E mesmo na classe médica, por falta de comunicação e informação. Além do trabalho de criar evidência científica há aqui um outro trabalho muito importante que é o de comunicar com as pessoas e com a classe médica, porque são os médicos os agentes prescritores e são referencial de informação para os doentes. É este caminho que falta fazer.
Quantos medicamentos existem em Portugal, à base de canábis?
Já existem alguns, estão outros na fileira para serem aprovados pelas autoridades. Mas neste momento já há, inclusivamente, um medicamento que é comparticipado pelo Estado, um medicamento para as doenças neurológicas.
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O preconceito vem de onde?
O preconceito vem das nossas tradições. A canábis foi sempre tida como uma substância de consumo ilegal, o que criou um estigma na sociedade. Como médico, também sou conservador e não sou apologista do consumo de drogas, leves ou pesadas. Porque elas alteram o comportamento das pessoas e alteram o bem-estar e a saúde orgânica das pessoas — não se confundam as coisas. Não sendo a favor do consumo de drogas, sou a favor de aproveitarmos aquilo que de bom se pode tirar de uma planta com fins medicinais. É esta dicotomia que nós temos de resolver. Temos de tirar este estigma.
Mas é uma produção que estará sempre nas mãos das farmacêuticas. Ou seja, eu posso plantar uma vinha e até vender o meu produto a uma marca de vinhos…
Tem de ser regulado. Precisamente para evitar os abusos, os consumos excessivos ou desadequados, como é o fabrico de qualquer medicamento. Tem de ser um setor regulado, muito regulamentado, muito vigiado e muito controlado. Só assim conseguiremos assegurar que as pessoas podem tomar os medicamentos com confiança e segurança.
E qual é a sua perspetiva sobre o uso recreativo? Foi chumbado, em janeiro, no parlamento, com os votos contra do PSD, CDS e PCP (PS dividiu-se). Vê condições para que possa haver uma decisão noutro sentido, em breve?
São opções políticas, que reservo aos políticos. Quem está hoje com a responsabilidade de tomar decisões — esta é uma decisão de ordem política. O que estamos a assistir, um pouco por esse mundo fora, é que há uma lenta mas progressiva tendência para a liberalização do consumo. Neste momento, prefiro não me pronunciar — estou muito focado nas questões ligadas à canábis medicinal, é essa a minha área. Como médico, desaconselho o consumo de drogas, sejam elas quais forem, mas cinjo-me àquilo que sei e onde gosto de estar, que é tratar os meus doentes e tentar dar-lhes o melhor que eu puder.