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Sem bandeira. O edifício que acolhe o centro administrativo de Kherson perdeu, esta manhã, o símbolo da ocupação russa que é visto na cidade desde março. Numa região em que está a decorrer uma das “batalhas mais duras” desde o início da invasão, a falta do tecido de cor vermelha, azul e branca podia levar a crer que a Ucrânia conseguira reconquistar o território, num momento que podia ser considerado marcante para o curso da guerra. No entanto, no meio de um conflito armado, a verdade torna-se difícil de apurar, principalmente quando surgem duas versões opostas.
Um dirigente pró-Kremlin admitiu que a retirada das forças russas da cidade nos próximos dias é “muito provável” e há imagens nas redes sociais de que pode até estar já a acontecer. Mas do lado ucraniano, esta declaração foi encarada com ceticismo, temendo-se que possa representar uma provável armadilha para os russos ganharem vantagem numa eventual batalha urbana. Na guerra da contra informação, e depois do que os ucranianos fizeram a norte, ninguém arrisca agora quem pode estar a dizer a verdade.
o/#Kherson#KhersonIsUkraine https://t.co/hsWNeSAujo
— _PiepMatze (@PiepMatze) November 3, 2022
Confirmado pela Ucrânia está o facto de as tropas russas terem abandonado alguns postos de controlo e de se ter notado menos soldados nas ruas. E de facto, não faltam vídeos e imagens do edifício de Kkerson sem a bandeira russa. Mas, de resto, Kiev quis manter tudo em aberto e mostrar, pelo menos pública e oficialmente, alguma apreensão. “Não devemos ter pressa para celebrar”, aconselhou Natalya Gumenyuk, porta-voz do comando militar do sul da Ucrânia, explicando que “uma guerra híbrida envolve divulgações de informações que podem ser pensadas para enfraquecer as tropas adversárias”.
Se a Ucrânia resguarda-se e opta por não divulgar as suas possíveis vitórias (uma estratégia seguida pelo Ministério da Defesa ucraniano que prefere manter o secretismo — algo que já aconteceu em Kharkiv e que esteve na origem de um avanço de milhares de metros quadrados no norte), o Ocidente tem uma postura mais aberta e otimista. Os Estados Unidos revelaram mesmo que Kiev “tem capacidade” para tomar Kherson.
Nesse cenário da Ucrânia conseguir recuperar Kherson nas próximas horas (ou mesmo dias), será um dos maiores ganhos para o país, naquela que foi a primeira grande cidade ucraniana conquistada pela Rússia. Poderá ser mesmo um ponto de viragem da guerra, aumentando a moral dos homens de Zelensky e provocando o efeito contrário nos já pouco entusiasmados militares russos. Convém lembrar, contudo, que os objetivos ucranianos ficam-se, para já, na margem ocidental do rio Dnipro (onde se localiza o principal centro urbano). E que as tropas de Putin apenas terão sido empurradas para a outra margem, onde há quem diga que se estão apenas a reagrupar ou à espera dos reforços dos novos mobilizados, para atacarem em força ou até de surpresa, quando o inimigo estiver convencido da vitória.
Caso a Ucrânia consiga mesmo retomar o controlo do principal centro urbano, a Rússia seria obrigada a recuar, mantendo ainda assim esse controlo da margem oriental, a que corresponde a maioria do oblast de Kherson — e que é vital para transportar armas e mantimentos para a Crimeia (e vice-versa).
Mas para já, são tudo teorias de guerra. A estratégia, no terreno, e antes que este congele com a chegada do duro inverno (para já as temperaturas na região continuam acima dos 10ºC positivos), apenas os comandantes dos dois lados as conhecem. Restam os sinais que foram surgindo ao longo desta quinta-feira.
Retirada da bandeira: sinal da reconquista?
A retirada da bandeira russa o centro administrativo pode dar um novo significado a tudo o que aconteceu durante as últimas semanas. É que Moscovo tem apelado a que os seus cidadãos saiam da região — aliás, na passada sexta-feira, o líder da Península da Crimeia, Sergei Aksionov, anunciou que a retirada de civis da região de Kherson tinha sido concluída (processo que a Ucrânia alega serem deportações).
The MFA of Ukraine strongly condemns the RF for conducting deportation of the Ukrainian citizens living in the temporarily occupied territories of the #Kherson & #Zaporizhzhia regions of Ukraine.
Such actions by Russia grossly violate international law.https://t.co/b4Vfc6EVgo pic.twitter.com/MozjQwOiq7
— MFA of Ukraine ???????? (@MFA_Ukraine) November 3, 2022
Adicionalmente, ao longo dos últimos meses, a Ucrânia tem conseguido retomar o controlo de várias aldeias e cidades, aproximando-se do coração de Kherson, numa contraofensiva que começou no final de agosto e que já se adivinhava de longa duração, ao contrário daquilo que aconteceu em Kharkiv. Numa altura em que o inverno e as temperaturas baixas estão ao virar da esquina, Kiev aposta tudo em conseguir conquistar já pelo menos toda a margem ocidental do rio Dnipro.
Ao mesmo tempo, a Ucrânia também quer aproveitar a vantagem militar em termos de números que dispõe neste momento, dado que os efetivos que a Rússia convocou através da mobilização parcial decretada a 21 de setembro estão ainda a ser treinados. Porém, dentro de poucos meses, estarão prontos para combater, criando dificuldades adicionais ao lado ucraniano.
A batalha por Kherson vai ser fria e dura. E está cada vez mais próxima
A alegada retirada russa
Depois da retirada de civis, a Rússia estaria pronta para dois cenários: ou intensificar as batalhas urbanas ou retiraR. As informações desta quinta-feira apontam para a segunda hipótese. Kirill Stremousov, um administrador pró-russo da cidade de Kherson, reconheceu que as tropas russas deverão “muito provavelmente abandonar” a margem ocidental do rio Dnipro.
Kirill Stremousov sublinhou que as tropas russas deslocar-se-iam agora para a margem esquerda do rio Dnipro, onde iam assumir novas posições defensivas. Para mais, o dirigente pró-Kremlin recomendou aos civis que permaneceram na cidade que saíssem o mais rapidamente possível de Kherson, frisando que os residentes correm risco de vida.
Mensagem idêntica foi partilhada por megafones espalhados por Kherson. Nas redes sociais, foram partilhados vídeos onde se ouvia: “Os residentes devem deixar o local antes de 7 de novembro. O perigo está iminente. Um nível alto de ameaça militar é esperado. A retirada conta com transportes organizados. Levem documentos, dinheiro, bens valiosos e roupas quentes”.
The Russian Army is using loudspeakers to tell people in the city of Kherson that the Ukrainian Army is approaching and that “there is imminent danger”.
Just pull your army back to Russia and the danger will be gone. It’s that simple. pic.twitter.com/Gl3LDD509k
— Visegrád 24 (@visegrad24) November 3, 2022
As dúvidas da Ucrânia de uma possível emboscada
As autoridades ucranianas supostamente desconfiaram — ou pelo menos quiseram dizer em público que desconfiavam — daquilo que pareciam ser boas notícias. Yurii Sobolevskyi, vice-presidente do conselho regional de Kherson, afirmou à CNN internacional que os russos deixaram “alguns postos de controlo”, mas que isso não equivalia necessariamente a uma retirada. Em vez disso, podia configurar-se como uma “emboscada”.
De acordo com o chefe das secretas militares ucranianas, o general Kyrylo Bukanov, a Rússia concentrou um contingente de cerca de 40.000 efetivos em Kherson, constituído pelas suas unidades mais bem preparadas. Assim sendo, disse parecer-lhe improvável que Moscovo abdique de um parcela de um território estrategicamente importante. Por outro lado, também prevê que a ofensiva ucraniana na margem direita do rio Dnipro pode ficar concluída até ao final de novembro. Ou seja, duas opiniões que se anulam.
Bastante mais otimista é Oleksiy Goncharenko, deputado ucraniano de Odessa, que disse à televisão francesa BFMTV que a cidade de Kherson pode ser reconquistada pela Ucrânia “na próxima semana”. No entanto, o parlamentar avisou também poder tratar-se de uma “manipulação” da Rússia, isto é, uma emboscada para atrair as tropas ucranianas para o local.
Em qualquer dos casos, a Ucrânia pode também estar a esquematizar um golpe de contrainformação, com a finalidade de manter o secretismo e apenas divulgar informações quando a vitória estiver assegurada, evitando reclamá-la quando ainda não está garantida. Ou seja, repetir Kharkiv.
O Ocidente mais otimista
Mas os aliados da Ucrânia estão otimistas face à possibilidade de a Ucrânia conquistar a margem ocidental do rio Dnipro. O secretário da Defesa norte-americano, Lloyd J. Austin, acredita que o exército ucraniano “tem capacidade para fazer isso.” Destacando que os próprios ucranianos estão confiantes nesse cenário, Lloyd J. Austin elogiou o “esforço metódico mas eficaz” por parte da Ucrânia para “voltar a reconquistar o seu território soberano”. “Penso que eles vão continuar a pressionar”, conjeturou.
Por sua vez, fonte do Ocidente explicou ao Politico que a decisão de os russos estarem a planear retirarem-se da parte ocidental de Kherson deve-se a “decisões estratégicas” que incidem sobre “qual é a melhor maneira de se defenderem”. Porque querem também “manter as suas próprias munições, as suas tropas e prepararem-se para o inverno”.
Deste modo, as autoridades russas terão chegado à conclusão de que a cidade de Kherson “não vale” o esforço. “A barreira natural defensiva do rio é extremamente valiosa” para a Rússia, que prefere apostar as fichas na manutenção dos territórios localizados a leste do que manter o centro urbano sob seu domínio.
Putin pressionado?
Outro fonte ocidental, desta feita à Sky News, indicou que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, já fora pressionado pelos seus mais próximos do Kremlin pela aparente retirada das tropas russas em Kherson, onde “é provável que a maioria das altas patentes se tenha retirado para a margem oriental, deixando os soldados desmoralizados e sem liderança para enfrentar os ataques ucranianos”, descrevendo que “pelo menos alguns reservistas estão a chegar ao teatro de operações sem armas.”
Ora, vários dirigentes do Kremlin condenam o que dizem ser a “má liderança” dos chefes militares, para além de se oporem à retirada — já “numa fase bastante avançada” do centro de Kherson. O aparente falhanço e a desorganização das tropas faz com que as críticas aumentem de tom — e estas podem ter como destinatário o próprio Vladimir Putin, que reuniu com o seu governo em Sochi.
“Uma tarefa-chave [para o Ocidente] é continuar a monitorizar como é que estas movimentações impactam a credibilidade de Putin. Por agora, ele parece continuar a ser bem-sucedido”, indicou a fonte ocidental citada pela Sky News, ressalvando, no entanto, que já existe pressão aplicado ao Ministério da Defesa que tem sido culpado pela “má gestão e pela condução da guerra”.
Pode ser que a queda real de Kherson acabe por fazer alastrar o criticismo a Vladimir Putin — ou então, pode manter-se tudo como sempre. Os próximos dias serão determinantes. Porque alguma coisa se está a passar nas margens do rio Dnipro.