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AFP/Getty Images

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Enquanto resistem, não esperam surpresas

20 anos volvidos desde o seu início, combater o regime de Lukachenko parece um esforço vão. Que força é essa que trazem nos braços, quando nunca veem mudança? Porque lutam, se não esperam surpresas?

Era o primeiro dia de verão. A 21 de junho de 2014, Ales Bialiatski cumpria um dia normal da rotina na prisão de alta segurança de Babruisk, no sudeste da Bielorrússia. De segunda a sábado, sete horas por dia, o ativista e os seus 14 colegas de cela encarregavam-se de encaixotar calças, luvas e camisolas feitas por outros reclusos. Naquele sábado, entretinha apenas um pensamento: no dia seguinte, além de poder descansar, teria direito ao único banho de água quente de toda a semana. Até que, sem ninguém esperar, apareceu um guarda prisional que gritou: “Bialiatski! Venha comigo!”

À data, contava 1052 dias atrás das grades — tempo suficiente para saber que o que se avizinhava não devia ser bom. “Entrei em pânico. Fiquei logo à espera de alguma coisa desagradável. Na prisão, sempre que se é chamado a meio do dia pelos guardas, é sinal de que alguma coisa má vai acontecer. No mínimo, vai-se receber más notícias”, recorda. Abandonou o seu posto na linha de montagem, seguiu todos os passos do carcereiro e só parou quando chegaram à porta do gabinete do diretor da prisão. Disseram-lhe que entrasse e, assim que o fez, o responsável máximo da cadeia estendeu-lhe um papel carimbado e disse-lhe: “Vais para casa mais cedo. Estás livre.”

Ales Bialiatski foi o último preso político a ser libertado na Bielorrússia. Ainda há sete homens atrás de grades por afrontarem o regime de Alexander Lukachenko.

Ales Bialiatski foi libertado a 21 de junho de 2014

Ales Bialiatski foi libertado a 21 de junho de 2014

O ativista recorda a sua saída da prisão com toda a calma. A sua atitude poderia passar por blasé, não fosse o sorriso que ostenta a cada palavra. O corpo escorrega pela cadeira e os ombros descaem-lhe. Está sentado à mesa da cozinha na sede clandestina da Viasna (Primavera, em bielorrusso), a maior ONG de defesa dos Direitos Humanos do país, da qual é fundador e presidente. Ocasionalmente ergue os braços acima da cabeça, esticando ao máximo as fibras da sua camisa azul e branca, para enfim entrelaçar os dedos atrás da nuca. É um homem em paz, relaxado.

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Os tempos na prisão, porém, foram bem diferentes.

Corria outro verão, o de agosto de 2011, quando Bialiatski perdeu a liberdade. Já tinham passado quase nove meses desde as eleições presidenciais de 19 de dezembro de 2010, em que Lukachenko foi declarado vencedor com uns fraudulentos 79,67% dos votos. Foram detidas mais de 700 pessoas nas manifestações que se seguiram ao anúncio dos resultados oficiais. Dos oito candidatos da oposição, sete foram detidos e mais tarde presos. Além dos que ficaram atrás de grades, grande parte dos manifestantes daquela noite recebeu chamadas dos serviços secretos, que conseguiram, através da recolha de sinais de telemóvel, juntar os contactos de toda a gente. Queriam saber, ao detalhe, onde tinham estado e o que tinham feito na noite dos protestos. Uma palavra em falso podia ditar a perda de um emprego ou a dispensa da universidade. Nunca as malhas do KGB estiveram tão apertadas na Bielorrússia pós-soviética.

Por isso, à medida que os meses passavam, Bialiatski sabia que a sua altura só podia estar cada vez mais próxima. A Viasna, que fundou e lidera desde 1996, é uma das organizações mais ativas na denúncia dos podres do regime de Lukachenko — desde constantes violações dos Direitos Humanos à manipulação de resultados eleitorais. Bialiatski, que não falha a shortlist para o Prémio Nobel da Paz desde 2011, era a cara de tudo isto. Por isso, quando foi interpelado por dois polícias à paisana junto à Praça da Vitória em Minsk em agosto de 2011, sabia bem o que tinha pela frente.

O julgamento já tinha o final escrito muito antes de sequer ter começado. A acusação culpou Bialiatski de ter duas contas em seu nome no estrangeiro — uma na Polónia, outra na Lituânia — das quais se serviria para proveito próprio e exclusivo, fugindo assim aos impostos. Estava em causa um crime de ocultação de bens em grande escala, que poderia resultar em confiscação de propriedade e numa pena de prisão até seis anos.

A defesa de Bialiatski desdobrou-se em argumentos e apresentou várias provas que demonstravam a inocência de Bialiatski. O seu advogado, que reconheceu a existência das duas contas bancárias em questão, explicou que estas não eram para uso pessoal de Bialiatski mas antes para, em nome da Viasna, ajudar financeiramente as famílias dos presos políticos; invocou a lei bielorrussa que diz que, por se tratarem de donativos, aquelas transações não eram sujeitas a imposto; relembrou que a ONG só não tinha uma conta num banco bielorrusso porque Lukachenko ordenara a revogação da licença da Viasna em 2003, votando-a à clandestinidade e violando o direito à reunião; e apresentou provas de que o dinheiro foi reunido graças a contribuições de privados e de governos estrangeiros, nomeadamente o da Holanda.

De nada serviu. Além de ter tido o seu apartamento pessoal e o escritório da Viasna confiscados pelas autoridades, Bialiatski, que nunca confessou o crime, foi condenado a quatro anos e seis meses de prisão.

Pior do que um homicida

“O pior da prisão não foi sequer a comida, que quase não é comestível. Nem as condições de vida, que são muito pobres… A coisa mais difícil foi lidar com a pressão psicológica que me foi imposta. Quiseram dar-me cabo da cabeça de todas as maneiras possíveis. Isso é o pior.”

Entre os seus 14 colegas de cela havia cinco homicidas, dois violadores e dois toxicodependentes. É uma prática comum a todos os presos políticos na Bielorrússia. Ao metê-los lado a lado com criminosos deste grau, as autoridades querem fazer-lhes crer que não há diferenças entre um ativista antirregime e um assassino. No caso de Bialiatski, quiseram que ele acreditasse que era até pior do que os restantes prisioneiros — todos os meses, sem como nem porquê, era alvo de participações por mau comportamento, garante. De todos os reclusos daquela prisão de alto risco, mais de dois mil, era Bialiatski quem encabeçava a lista dos mais perigosos e problemáticos.

Bialiatski esteve preso durante 1052 dias. Durante esse tempo, esteve sempre sob a vigilância dos seus companheiros de cela, que depois relatavam os guardas todos os seus passos.

“Pelo menos cinco dos meus companheiros de cela estavam a vigiar-me constantemente para depois dizerem aos guardas o que é que eu dizia, o que é que eu fazia… Tudo. Todos os meus passos eram vigiados. Além disso, eles estavam todos proibidos de falar comigo. Até em situações simples. Se algum deles pedisse para eu lhe passar um jornal, um sabonete, ou qualquer outra coisa, não me podia agradecer. Uma vez um deles descuidou-se e foi imediatamente transferido para outra cela por um simples ‘obrigado’.”

Sem outra escolha, rendeu-se ao silêncio. Para combater o isolamento, Bialiatski escrevia cartas a amigos e à família. Durante os seus 1052 de prisão, só os viu três vezes. Uma delas foi uma visita de um dia, cara a cara e sem grandes limites para além dos muros da prisão. As outras duas foram através de um vidro e sob os olhos vigilantes e os ouvidos prudentes de um guarda. Por isso, escreveu-lhes sempre que pôde.

A 4 de Junho de 2012 deixou um recado ao filho, Adam:

“Tradicionalmente, todos os Bialiatski sofrem dos mesmos problemas de saúde — os pulmões. O teu avô Viktar morreu com cancro do pulmão, tal qual o seu irmão Liavon, quando tinha 60 anos. O pai deles, o teu bisavô Ustsin, apanhou tuberculose e morreu prematuramente. Por isso, deixa de fumar! Não há discussão!”

Noutro escrito, dirige-se à mulher, Natalia, numa data importante:

“Feliz 25º aniversário de casamento! Espero que este tempo todo não tenha sido nem muito chato nem triste. Espero também que não te tenha desiludido muito durante estes 25 anos. Lembro-me deles com nostalgia e gratidão. Os próximos não serão piores, vão ser melhores, e havemos de festejar muitos mais aniversários do nosso casamento juntos.”

De resto, Bialiatski passava o pouco tempo livre que lhe sobrava do trabalho na fábrica a ler jornais de uma ponta à outra, ao mesmo tempo que os outros reclusos seguiam a televisão da cela, normalmente sintonizada num canal russo. Também teve tempo para observar o pouco mundo que tinha à volta e daí tirar conclusões. Apercebeu-se de que quando se está preso, “presta-se mais atenção ao tempo e à natureza (…) e que as mudanças se sentem com mais intensidade do que quando se está em liberdade”.

Talvez tenha dado pela chegada do verão, mas nunca lhe teria passado pela cabeça que, naquele dia em que a luz do sol começou a entrar-lhe pela janela da cela logo pelas 4h30, lhe seria devolvida a liberdade. Quando ouviu do diretor da prisão as palavras “estás livre”, julgou que era mais uma jogada para que assinasse um pedido de indulto ao Presidente — algo que recusou por duas vezes.

Só quando olhou bem para o papel à sua frente percebeu que tinha sido amnistiado. Depois de duas horas a preencher papéis, foi posto num comboio a caminho de Minsk. Ainda atordoado, pediu a um passageiro que lhe emprestasse o telemóvel e ligou à mulher. “Estou livre”, disse-lhe. Teve de se repetir duas vezes. Depois de 1052 dias de silêncio, nem Natalia lhe reconheceu a voz.

Bialiatski fala ao Observador quatro meses depois de sair da prisão. Tempo suficiente, explica, para perceber que a Bielorrússia não mudou. À superfície, anui, o país não parece ser uma ditadura. “Quando se vai para a rua parece que está tudo bem. Mas, para mim, qualquer bielorrusso sabe até que linha a sua ação é aceite e sabe o que lhe acontece se ousar ultrapassá-la. Um cidadão comum sabe que é livre para ir a um concerto ou a uma exposição. Pode fazer muita coisa. Pode dar um passeio na rua enquanto saboreia um gelado.” Mas há sempre um “mas”: “Mas também sabe muito bem que não pode ir para a rua com um cartaz com palavras de ordem.”

O panorama, garante, continua tão negro quanto sempre. “Continua a haver tortura nas nossas prisões, os reclusos são explorados e ainda há sete presos políticos. A propaganda continua a ser aplicada através dos meios de comunicação do Estado e a maior parte da população é afetada por ela — a maior parte nem vê uma ligação entre a vida deles e a vida política do país. Há um estado de apatia porque a televisão diz que está tudo bem. Os poucos media independentes que ainda temos continuam sob controlo e a censura não desapareceu. Qualquer jornalista sabe que está a ser vigiado e que o seu trabalho pode ser comprometido a qualquer momento.”

A porta mais robusta de Minsk

Essa é a maior batalha de Mirras Yantchuk, jornalista e chefe de redação em Minsk do “primeiro canal de televisão independente da Bielorrússia”, a Belsat. Fundada a 10 de dezembro de 2007, esta estação conta desde o início com um orçamento de 4,8 milhões de euros anuais financiados pelo governo da Polónia e pela televisão pública polaca. Já o Governo bielorrusso recusa qualquer pedido de licença da Belsat. Como resultado, além de independentes, também são clandestinos.

Segundo Yantchuk, a Belsat serve para “dar cobertura a todos os assuntos que não são falados na televisão do Estado”. Para ele, há uma distinção clara: “Na Bielorrússia não existe televisão pública. Aliás, na Bielorrússia não existe nada público, como se diz e pensa no resto da Europa. Aqui nada é público. É do Estado.”

"Eles [o KGB] queriam meter-nos medo, queriam que soubéssemos que eles nos conhecem a todos"
Mirras Yantchuk, jornalista

Quatro meses depois da fundação, os trabalhadores da Belsat ficaram a saber o preço que tinham de pagar por pertencerem a um projeto jornalístico que Lukachenko cedo se apressou a classificar de “estúpido, desinteressante e inútil”. Na mesma noite e à mesma hora, agentes do KGB entraram na redação da Belsat e na casa de cada um dos profissionais daquele canal e levaram consigo tudo o que acharam relevante, incluindo câmaras e computadores. “Eles queriam meter-nos medo, queriam que soubéssemos que eles nos conhecem a todos”, lembra Yantchuk. No dia seguinte, conseguiram ter um telejornal pronto às 20h00 em ponto, filmado inteiramente com telemóveis.

Foi neste estado que os jornalistas da Belsat encontraram a porta da redação, dias depois das eleições presidenciais de 2010. O KGB fez-lhes uma visita

Foi neste estado que os jornalistas da Belsat encontraram a porta da redação, dias depois das eleições presidenciais de 2010. O KGB fez-lhes uma visita.

Na véspera de Natal de 2010, poucos dias depois das manifestações contra os resultados fraudulentos das últimas eleições presidenciais, o KGB voltou a fazer uma visita à Belsat. “Quando fomos para aquela redação, eu fiz questão de comprar a porta mais robusta de Minsk. Eles primeiro tentaram arrombar a porta, mas não conseguiram, então tiveram de abri-la com uma serra elétrica”, recorda Yantchuk, incapaz de conter o riso. Ri-se também porque dois dias antes das buscas do KGB, a equipa da Belsat empenhou-se em esvaziar por completo o apartamento que então lhes servia de redação. “Nós não vivemos há um dia neste país, portanto calculámos logo que isto ia acontecer.” Para trás deixaram apenas uma mesa onde pousaram uma máquina de escrever antiga com um recado: “Especialmente para vocês.”

Hoje, a Belsat continua a ter a sede em Varsóvia, onde são gravados programas em estúdios semelhantes aos de qualquer canal de televisão europeu. Em Minsk, o caso muda de figura. Como acontece desde a sua fundação, o trabalho feito na capital bielorrussa acontece sempre em apartamentos de zonas residenciais de Minsk. Por questões de segurança, não dizem quantas moradas são. Quando Yantchuk nos abre a porta de um deles, estão apenas mais duas pessoas: um jornalista e um editor de vídeo. São 11h00 e o resto dos jornalistas está na rua a recolher material. Como em qualquer redação, e também qualquer apartamento, há alguma desarrumação. Na cozinha, o lavatório divide-se entre loiça limpa e suja. Do lado oposto, alguém deixou uma caixa de cereais tombada, não muito longe de uma câmara de filmar. O apartamento tem duas casas de banho. A uma delas é dado o uso convencional. Outra é usada como cabine de gravação de som, cujo teto tem penduradas duas mantas cinzentas e grossas que ajudam a obter uma acústica aceitável. Por detrás desta escuridão jaz uma banheira em toda a sua normalidade.

Todos os dias começam com uma reunião via Skype com a redação de Varsóvia. O planeamento do dia é feito por fases. Primeiro, acerta-se quais são os temas que devem ser abordados nos noticiários da emissão. Depois, tem de se perceber o que é possível fazer ou não. “Não nos é possível filmar em qualquer sítio de Minsk uma vez que não somos um canal registado. Por isso é que às vezes a polícia para-nos na rua e tira-nos o equipamento todo, só para nos impedirem de filmar (…). Há dificuldades, porque quando [um editor manda] um jornalista fazer um trabalho, não sabe se ele volta com material ou até se ele volta de todo.”

Em 2007, poucos dias de a Belsat ir para o ar pela primeira vez, Lukachenko descreveu o canal como "estúpido, desinteressante e inútil".

Em 2007, poucos dias de a Belsat ir para o ar pela primeira vez, Lukachenko descreveu o canal como “estúpido, desinteressante e inútil”.

A maior parte da audiência da Belsat tem um salário acima da média e educação superior. Alguns deles, garante Yantchuk, trabalham no “setor do Estado”. Por ser um canal de satélite, a Belsat chega diretamente a apenas 1 milhão de pessoas, cerca de 10% da população bielorrussa. Ainda assim, há quem copie o sinal de satélite e o retransmita na Internet, tornando o canal acessível a qualquer pessoa com um computador e uma ligação. Um dos programas com maior audiência chama-se “Eu tenho o direito”. Neste programa apresentado por Yantchuk, são analisadas situações em que instituições do Estado ou os seus funcionários não respeitaram a lei. Os casos tratados são baseados em histórias reais que chegam diariamente à redação da Belsat. “A maior parte dos bielorrussos não tem consciência dos seus direitos, e o que nós tentamos fazer neste programa é lembrá-los que mesmo na situação em que estamos, há direitos. Por exemplo, o direito à saúde ou o direito a um tratamento digno por parte dos órgãos do Estado. No nosso país só um canal como a Belsat pode ter um programa destes. Seria impossível algo assim na televisão do Estado.”

Outro ponto de honra da Belsat, além de ser o único canal de televisão independente da Bielorrússia, é ser o único cuja transmissão é exclusivamente em… bielorrusso. De resto, a televisão do Estado e a maior parte das rádios e jornais são em russo. Não foi por acaso, mas antes por decreto. Em 1959, o então Presidente da União Soviética, Nikita Krustchov, deixou bem claro a sua visão num discurso em Minsk: “Quanto mais cedo falarmos todos russo, mais depressa conseguiremos construir o comunismo.” Um ano depois, 87% dos livros publicados na Bielorrússia ainda eram escritos em bielorrusso. Em 1980, o número colapsou para 12%. Em 2011, vinte anos depois do fim da União Soviética, o número era 10%.

“Isto é tudo resultado de políticas soviéticas e da postura do Lukachenko, que é exatamente a mesma”, acusa Yantchuk. “É a catástrofe de uma nação, quando já nem a sua própria língua é falada, ainda para mais tendo em conta quem é que temos do outro lado da fronteira. É uma ocupação cultural do nosso país.”

Alucinações no Império Russo-Chinês

Se não temos um nome para lhe dar, como é que podemos saber que existe?

Minsk é uma cidade entre tantas outras na região Noroeste do Império Russo-Chinês, uma enorme potência mundial que sempre existiu e sempre existirá. A vida é um processo mecânico e maquinal, onde o trabalho é feito em prol do bem comum, embora aqueles que produzem em seu nome não se apercebam da sua concretização. Em todo este território bicontinental a comunicação é feita numa mistura de duas línguas antigas e arcaicas, o russo e o chinês. Não se sabe da existência de outros idiomas neste planeta. Não há surpresas, nem imprevistos.

Dividido em três partes iguais de 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), é este o início de Mo Va, o mais recente livro do autor bielorrusso Viktor Martynovitch.

Nesta história, o tapete onde os pés desta estabilidade aparentemente eterna assentam é puxado quando grupos da máfia chinesa passam a distribuir clandestinamente uma droga poderosa e libertadora. Não se trata de nenhum pó, não são ervas que se possam fumar ou algo que se possa engolir. São antes pequenos papéis, do tamanho de uma mortalha de cigarro, com fragmentos de textos num língua desconhecida. Sem avançar muito, os traficantes dizem apenas que esta droga se chama “Mo Va”, que significa “língua” num idioma que há um número incerto de décadas era vagamente conhecido como “bielorrusso”. Cada dose submerge o tomador num corrupio de alucinações dispersas que pouco a pouco vão fazendo cada vez mais sentido. Primeiro, sem grande esforço, entende o estranho idioma, como se ele tivesse estado esquecido numa parte adormecida do seu cérebro. Depois, através das imagens que vê diante de si a cada leitura sub-reptícia de “Mo Va”, apercebe-se de que em tempos idos não havia nada parecido como o Império Russo-Chinês. Houve até um pequeno país chamado Bielorrússia, cuja capital era a mesma Minsk onde vive. A droga alastra-se de maneira tal que é impossível isto continuar a ser um segredo. É nessa altura que a revolta explode.

Em pouco mais de um mês, o livro de Martynovitch vendeu 2 mil cópias e foi descarregado 3 mil vezes na Internet. A crítica na imprensa dividiu-se, com alguns a dizerem que o livro era “pertinente” e outros a classificarem-no como “panfletário” e “pouco original”. Ao Observador, momentos antes do lançamento da obra na Ў Gallery (um espaço no centro de Minsk com café, bar, livraria e sala de exposições no centro de Minsk), Martynovitch explica que sempre procurou escrever um livro sobre o tema da língua e que “uma distopia é talvez a melhor maneira para abordar este tema, considerando a gravidade da situação”. Para o escritor e académico, que atualmente vive em Viena, “a mova está praticamente a morrer porque ninguém a fala”.

Olhando para os números, é praticamente inegável que Martynovitch tem razão: segundo a IISEPS, a principal agência de estudos de opinião independente e de referência na Bielorrússia, menos de 5% de pessoas fala apenas bielorrusso no seu quotidiano. Quanto ao russo, o número ultrapassa os 60%. No meio, estão pessoas que alternam entre as duas línguas ou que então as misturam. Nesses casos, o russo tem por hábito prevalecer.

Mas cinco dias depois, na mesma sala onde Mo Va foi apresentado, os números são outros: num espaço que não vai para lá dos 100 metros quadrados, estão mais de 300 bielorrussos a aprender bielorrusso. Há jovens e idosos, gravatas e tshirts. Embora estejam -2 Cº lá fora, são poucas as testas que não reluzem com transpiração, tal é o calor humano. A sala está tão cheia que sempre que alguém empurra a porta para entrar, esta esbarra naqueles que já lá estão. Noutro lado, sem visão para o quadro e para os professores, doze alunos sentam-se em frente à casa de banho e tiram apontamentos.

Todas as semanas, cerca de 300 pessoas aparecem nas aulas de bielorrusso na ÐŽ Gallery, em Minsk.

Todas as semanas, cerca de 300 pessoas aparecem nas aulas de bielorrusso na Ў Gallery, em Minsk.

O cenário repete-se todas as segundas-feiras no centro de exposições da Ў Gallery. A aula, conhecida como Mova Na Nova (“A Língua de Novo”), começa às 19h00 e prolonga-se durante três horas. Ao longo desse tempo, os formadores tentam atingir um equilíbrio — todas as lições têm ensino de gramática e vocabulário, tal como discursos de figuras públicas que fazem questão de falar naquela que consideram ser a verdadeira língua nacional. No final, há sempre um concerto. As músicas são, claro, cantadas em bielorrusso.

Alesia Litvinovskaya, linguista de 44 anos, é um das fundadoras deste projeto que começou em janeiro deste ano. “Quando começámos pensávamos que só os nossos amigos e familiares é que vinham. Mas passado pouco tempo, posso dizer que não conheço 90% dos nossos alunos.” A participação inesperada, explica, é a consequência de uma necessidade de introspeção nacional. “Existe um grande problema de identidade no nosso país. A maior parte das pessoas só sabe aquilo que não são: estão certos de que não são russos. Mas, por outro lado, não sabem o que são ao certo. Afinal de contas, o que é ser bielorrusso?” A pergunta é retórica, mas a língua pode ser um bom início de resposta.

Para Litvinovskaya, a “mova” está manchada por dois estereótipos “altamente destrutivos”. “Por um lado, há a ideia de que o bielorrusso é uma língua pouco evoluída, até básica, que só é falada pelas pessoas que não têm escolaridade, que vivem isoladas nas aldeia e que trabalham nos colcózes [quintas coletivas subsidiadas pelo Estado]. Por outro, há quem diga que é a língua da oposição.”

Tal como acontece com a maior parte dos estereótipos, também estes têm algum fundo de verdade.

É nas aldeias onde ainda se fala bielorrusso com mais frequência, tanto no trabalho como em casa — a distância dos meios de poder, onde não se fala outra língua para além do russo desde a década de 1940, foi um fator decisivo para esta preservação. Lukachenko, ele próprio nascido e criado numa aldeia do Leste do país e antigo diretor de um colcóze, foi criado a falar bielorrusso.

Eu cheguei cá [a Minsk, nos 60] e falava com toda a gente em bielorrusso. Mas não dava: falar bielorrusso era uma grande vergonha. Na altura não tive outra opção e rendi-me ao russo.
Slava, engenheiro e aluno de bielorrusso

E é também inegável que a oposição, juntamente com os meios intelectuais e culturais de Minsk, comunica tanto para dentro como para fora em bielorrusso. Nos meios mais jovens, que cresceram com a Internet mas foram educados por pais moldados pela mentalidade soviética, falar bielorrusso é também uma marca distintiva. É cool. A Ў Gallery, cujo nome é inspirado num caráter que existe apenas em bielorrusso e que se lê como um “U”, é um bom exemplo disso. É frequentada maioritariamente por pessoas abaixo dos 40 anos e um ponto de encontro para artistas e jornalistas, para os quais falar bielorrusso é uma afirmação perante o próximo — seja numa discussão sobre os 20 anos de Lukachenko ou a pedir mais um copo de vinho tinto. Num país onde a repressão é mais antiga do que as fronteiras e os meios de protesto escassos, falar bielorrusso é um ato de rebeldia e um gesto político.

Slava, engenheiro de 65 anos, é um dos alunos mais assíduos do curso. Nascido e criado numa aldeia, lembra-se de como chegou a ser humilhado quando assentou malas em Minsk aos 18 anos, pronto a estudar na universidade. “Eu cheguei cá e falava com toda a gente em bielorrusso. Mas não dava: falar bielorrusso era uma grande vergonha. Na altura não tive outra opção e rendi-me ao russo.” Falar a mesma língua do que Moscovo era uma chave para o sucesso. Como resultado, Slava esqueceu-se da sua própria língua. Só a falava nas viagens esporádicas à sua aldeia e, quando o fazia, trocava géneros, errava tempos verbais e esquecia vocabulário. A vergonha agora era outra. Autoimposta. “Fiquei triste com isto, é como se tivesse perdido o meu passado.” Agora, com a ajuda das aulas de bielorrusso, aonde vai sempre acompanhado da mulher, já domina quase por completo o seu idioma de berço. “Agora até está na moda, veja bem!”, exclama, sem esconder o espanto.

Slava, na aula de bielorrusso na ÐŽ Gallery, com a mulher

Slava, na aula de bielorrusso na Ў Gallery, com a mulher

E concorda que esta moda também tem um fundo político?

“Claro que sim, isto é político! Nós fomos reprimidos há mais tempo do que nos lembramos e continuamos a ser. A língua é o primeiro passo para a liberdade.”

Já Litvinovskaya evita falar de política. Fazê-lo mais do que esporadicamente pode trazer problemas ao Mova Na Nova. “Nós estamos numa situação vulnerável. Toda a gente sabe isto neste país: quem se mete no caminho do Governo pode ter a certeza de que vai ser abordado pelo KGB. Não queremos relacionar as nossas aulas com política, porque assim que o fizermos as nossas aulas passam a ser proibidas [pelas autoridades]”, explica.

A lista negra e a catarse fora de fronteiras

Foi o que se passou com Liavon Volski, músico de 49 anos e pioneiro do rock bielorrusso. Com uma carreira iniciada nos tempos da perestroika, Volski sempre escreveu letras irónicas e incómodas para o poder político. E, embora a liberdade de expressão em geral fosse menor nos anos da União Soviética do que naqueles que se seguiram, foi o regime de Lukachenko que lhe colocou os maiores entraves.

Em 2004 Volski e a sua banda de então, os NRM (sigla para Nova República dos Sonhos, em português), foram convidados para tocar num pequeno festival em Minsk que foi marcado para assinalar (pela negativa) o décimo aniversário da primeira eleição de Lukachenko. Os concertos ocorreram de forma pacífica e ficaram marcados como um dia de protesto contra um político que já nesses anos não parecia querer ficar apenas uma década no poder. Mas, no dia seguinte, os proprietários e gerentes de todos os bares, pavilhões e salas de espetáculos do país receberam uma lista com bandas que estavam proibidas de atuar em público. Estavam lá todas as bandas daquele festival.

"Os donos dos bares até têm medo de falar connosco, porque assim que surgir o rumor de que nós vamos lá dar um concerto, no dia a seguir eles já vão estar de portas fechadas"
Liavon Volski, músico

Em 2008, altura em que a Bielorrússia estava à beira de uma crise diplomática e energética com a Rússia, a lista desapareceu. O apurado sentido de oportunismo de Lukachenko fê-lo virar-se para a Europa, dando início a um esforço puramente cosmético para fazer crer a Bruxelas que a Bielorrússia não era, afinal, a “última ditadura da Europa” e era apenas um país na rota da modernidade. Por isso, a lista negra desapareceu e os concertos voltaram a ser permitidos. O último de todos, lembra Volski, foi quatro dias antes das eleições de 19 de dezembro de 2010. “Foi um concerto emblemático, lemos textos de poetas bielorrussos, as pessoas estavam em sintonia connosco, estava lá muita gente… Mas nós já sabíamos que depois daquilo tudo eles iam acabar com tudo de novo.”

E assim foi. A lista voltou e ainda com mais força, alargando-se a um número maior de bandas. “Os donos dos bares até têm medo de falar connosco, porque assim que surgir o rumor de que nós vamos lá dar um concerto, no dia a seguir eles já vão estar de portas fechadas. Pode ir lá uma inspeção de higiene que diz que aquilo é uma pocilga mesmo que esteja completamente limpo, por exemplo. Na melhor das hipóteses, passam-lhes uma multa enorme. Ou então simplesmente tiram-lhes a licença e fecham-lhes as portas.”

Liavon Volski faz música desde os anos da perestroika e é um dos pioneiros do rock bielorrusso

Liavon Volski faz música desde os anos da perestroika e é um dos pioneiros do rock bielorrusso

O fim da carreira chegou a estar por perto para Volski, que caiu numa “depressão enorme”. Por um lado havia a revolta de não conseguir tocar no seu país, por outro a dificuldade em fazer da música um meio de sobrevivência. Num tempo em que a venda de álbuns é insignificante e os concertos são o ganha-pão, o que fazer quando tudo parece ser proibido?

Anna Volskaya, manager e mulher de Volski, conseguiu resolver o problema. “Achei que a lista negra já estava a fazer demasiados estragos e sentei-me para ver se arranjava alguma solução. Então pus-me a olhar para o mapa e vi que Vilnius [na Lituânia] é a capital europeia mais próxima. São só 170 quilómetros. Liguei logo para o embaixador lituano em Minsk, porque somos próximos. Perguntei-lhe: ‘E se nós passássemos a fazer concertos na Lituânia?’

A receita ideal foi encontrada. A embaixada propôs ajudar os bielorrussos que tivessem um bilhete para um concerto do Liavon Volski na Lituânia a título grátis. Mais: os 60 euros que são por norma cobrados a cada bielorrusso que queira entrar no espaço Schengen seriam perdoados.

“Ganhámos todos com isto”, explica Volskaya. “Foi uma oportunidade que muitas pessoas tiveram de sair do país, irem à União Europeia e verem como a vida é lá. E nós poderíamos tocar sem ter de dar a volta às autoridades ou comprometer alguém, porque essa não é a minha maneira de fazer as coisas.” Uma semana antes de falar com o Observador, Volski tocou para quase 3 mil espetadores em Vilnius. Na semana a seguir voltou a fazê-lo perante centenas de pessoas num concerto à porta fechada, também na capital lituana.

Não são concertos, são autênticos momentos de catarse. Como se, por momentos, a ditadura deixasse de existir. Um dos pontos altos de cada espetáculo é quando soam os primeiros acordes da música “Tri tcharapaqui” (“Três pequenas tartarugas”). A letra e a melodia foram escritas em 2000 por Volski, quando ainda era vocalista dos NRM. Esta canção é daquelas cuja letra está na ponta da língua de vários gerações na Bielorrússia, quase como se fosse património nacional. Em Minsk, é difícil encontrar quem não a conheça.

“Quando sentires um cheiro a esgoto
E a vida te puser uma trela ao pescoço,
Vais perceber que as três tartarugas
Continuam a empurrar a terra.

Quando saíres da cidade ou escalares a montanha
E conheceres outras pessoas
Vais perceber que hoje, tal como ontem,
A nossa terra está em cima de três baleias.”

Como acontece com um bom número de músicas que são do conhecimento geral, os significados desta letra são debatíveis. Quem são as “três tartarugas” que empurram a terra? Lénine, Estaline e Lukachenko? Ninguém sabe ao certo. Tal como as “três baleias”, e o igual número de elefantes que também são referidos mais à frente. Talvez a confusão faça parte disto tudo.

Mas há, no entanto, uma mensagem clara no refrão. No meio da confusão, no meio das descobertas de quem escala a montanha, há algo que é certo:

“Hey! La, la, la, lai! Não esperes nada, não vai haver surpresas!
Hey! La, la, la, lai! Não esperes nada, não esperes nada!”

Lukachenko é Presidente da Bielorrússia há 20 anos. Poucos arriscam adivinhar quantos anos ainda tem pela frente. Para aqueles que dedicam a vida a combatê-lo da maneira que melhor podem e conseguem, o pessimismo é a regra. Não haverá surpresas.

Quando por fim acaba de falar com o Observador na cozinha da Viasna, Bialiatski levanta-se e dedica-se a lavar as chávenas de chá que foram usadas durante a conversa. Debruçado sobre o lava-loiças, sem se virar para trás, inverte os papéis e lança-nos uma pergunta: “E o Salazar? Quanto tempo é que ele esteve no poder?”

“36 anos”, respondemos-lhe.

“Vamos ver como é por aqui”, responde, com a voz abafada pela água do lava-loiças, como quem não espera surpresas.

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