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Franco Origlia

Franco Origlia

Ensaio de Henrique Raposo. O pós-verdade é o pós-pecado

Combater o pós-verdade? Talvez regressando ao realismo e à transcendência da tradição que nos criou: o cristianismo. E com um exame de consciência dos próprios cristãos. Um ensaio de Henrique Raposo.

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Zaqueu

Chamemos-lhe Joana. Tem quinze anos quando engravida. Contra a vontade do namorado, da família e do ar do tempo, Joana assume a gravidez. Vive num bairro popular, preconceituoso e impiedoso, é um bairro que destila veneno piadético à passagem da sua barriga. Joana também deixa a escola por razões óbvias. Tem o filho e bate à porta da igreja: quer baptizar o bebé. O padre porém recusa o sacramento do baptismo à criança, visto que Joana é “mãe solteira”. Parece que o bebé está fora de esquadria, qual parede torta e irrecuperável. Funcionando como coro desta tragédia, as senhoras da paróquia, aquelas que se sentam nos primeiros bancos da igreja, também não escondem o desdém pela jovem pecadora que não merece entrar no redil dos justos. O espantoso é que estas paroquianas e este padre são os primeiros a dizer que não se deve fazer um aborto, são os primeiros a ir para a rua para formar a falange do “não” ao aborto. A hipocrisia farisaica fala por si: a Igreja que luta contra o aborto é a mesma Igreja que rejeita baptizar o filho de uma rapariga que resistiu ao aborto com coragem; uma Igreja empenhada na luta contra o aborto devia ser a primeira a mostrar misericórdia sacramental com Joana e com o seu filho.

Antes da minha conversão, escrevi muitas vezes sobre este tipo de histórias centradas nas Joanas da vida. Recebi sempre o mesmo tipo de reacção de muitos católicos: num caso clássico de ataque ao mensageiro que transporta o mal, diziam-me que “isso não é bem assim!”, “nunca vi isso na minha paróquia!”, “você está só a difamar a Igreja”. Depois da eleição do Papa Francisco, estes católicos passaram a ter um problema entre mãos: o mensageiro passou a ser o herdeiro de Pedro; ficou mais complicado negar o mal. A história de Joana é a história central do magistério de Francisco. Já era assim quando era apenas Jorge Bergoglio. Em Buenos Aires, o arcebispo Bergoglio já criticava o espírito farisaico que transforma o sacramento, sobretudo o baptismo, numa chantagem e num mecanismo de imposição de um modelo perfeito de família. Quando passou a liderar o Vaticano, Bergoglio continuou esta crítica com palavras e actos, baptizando inclusive o filho de uma mãe solteira na Capela Sistina.

Depois da eleição do Papa Francisco, estes católicos passaram a ter um problema entre mãos: o mensageiro passou a ser o herdeiro de Pedro

Com este e outros exemplos, Francisco recorda-nos que Cristo não veio para os perfeitos, veio para os imperfeitos. Recusar o baptismo a um filho de uma mãe solteira é transformar o sacramento numa arma de censura, não de misericórdia; é ser Javert e não Valjean, é transformar a lei numa letra morta que seca tudo à volta com o legalismo farisaico, é transformar o cristianismo numa eterna Quaresma sem Páscoa, é desistir de alargar o perímetro da Igreja aos imperfeitos, é estar num pós-verdade, num pós-evangelho. Sim, num pós ou pré evangelho. Paróquias legalistas como a de Joana não são paróquias de cristãos, são paróquias de fariseus que precisam de mudar para voltarem à verdade. A sua atitude fechada e punitiva afasta pessoas como Joana e como eu, diga-se. Depois de um passado de indiferença e ateísmo, passei muito tempo na fronteira, no umbral, na figueira de Zaqueu, o símbolo do agnóstico curioso em relação a Deus. Por várias razões, demorei a descer da figueira em direcção à verdade. Uma dessas razões foi sem dúvida a omnipresença das Joanas. Devido à presença esmagadora desta e de outras histórias, eu não compreendia a diferença entre o cristianismo e este farisaísmo amnésico. Sim, amnésico e iletrado. Na Bíblia, Cristo vê Zaqueu curioso no alto da figueira e diz “Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa”.

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Repare-se que Zaqueu é um pecador de último grau: é um “cobrador de impostos”, isto é, um traidor e um corrupto aos olhos dos judeus. Jesus não o censura, não o renega, vai jantar e dormir a casa dele, o que causa um prenúncio de indignação nas hostes: “ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador”. A resposta de Cristo é clara: “o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 1-10). Se Cristo acolheu um traidor corrupto, como é que a igreja não acolhe uma criança inocente de uma mãe solteira? Uma Igreja que não compreende este erro é uma Igreja que já desistiu da evangelização, porque fala apenas para quem nasceu e cresceu dentro do redil. E os outros? E os que nasceram e cresceram fora da Igreja e que, por isso, só podem estar fora da ordem correcta dos sacramentos? E os que nasceram e cresceram fora de esquadria? E os que esperam na figueira da imperfeição? Quem quer entrar na igreja vindo de fora não pode ser perfeito do ponto de vista sacramental – compreender esta intrínseca imperfeição do mundo é a essência da evangelização. É por isso que Francisco tem apelado ao centro da mensagem do evangelho, que muitas vezes é esquecida por uma igreja obcecada com um culto da perfeição, que é mais samurai do que cristão:

“A lei não foi feita para o justo, mas para os maus e rebeldes, para ímpios e pecadores, para sacrílegos e profanadores, para parricidas e matricidas, impudicos, pederastas e traficantes de escravos, mentirosos, perjuros” (1 Tm 1, 8-10).

Quem é que está mais próximo do Senhor? Uma mulher que fez vários abortos e que se arrependeu, ou uma princesa certinha que nunca passou por esta provação? Quem é que o Senhor escolheria para dialogar: uma mulher que é um modelo de piedade e castidade ou uma mulher que abortou no passado mas que revela curiosidade à passagem do Senhor, observando-O a partir da figueira de Zaqueu?

Muitos católicos estão desconfiados em relação ao Papa Francisco. Alguns nem sequer escondem o ódio que sentem pelo primeiro Papa jesuíta. Nestas cabeças ultra-defensivas, o Papa devia atacar apenas e só o exterior da Igreja, o mundo herege, o mundo ateu, o mundo da indiferença religiosa. Esta atitude é um equívoco e uma traição do Novo Testamento.

A crítica interna de Francisco continua na questão da pedofilia, um problema que ele atacou com uma energia fora do alcance de Bento XVI e João Paulo II. E muito continua por fazer. Ainda há dias escrevi uma crónica na Renascença sobre o filme Spotlight, que retrata a descoberta do escândalo da pedofilia na igreja de Boston pelos repórteres do Boston Globe. Com uma triste previsibilidade, alguns amigos disseram-me de imediato que o filme era uma “cabala mediática” contra a Igreja. Lamento, mas essa é a posição errada. Salvar a reputação da Igreja não passa por encontrar “factos alternativos” ou uma “narrativa” que evite a nossa própria podridão. Até porque a reputação da Igreja ficou danificada não pelo facto em si (a pedofilia de uma minoria de padres), mas sim pelo encobrimento da hierarquia e pela negação do paroquiano comum. O paroquiano e a paroquiana comuns não quiseram ver o que se passava debaixo do seu nariz. Ou seja, este fenómeno de larga escala que envergonha todos os católicos só foi possível porque o catolicismo em geral permaneceu numa bolha de pós-verdade.

Muitos católicos estão desconfiados em relação ao Papa Francisco. Alguns nem sequer escondem o ódio que sentem pelo primeiro Papa jesuíta. Nestas cabeças ultra-defensivas, o Papa devia atacar apenas e só o exterior da Igreja, o mundo herege, o mundo ateu, o mundo da indiferença religiosa. Esta atitude é um equívoco e uma traição do Novo Testamento. Nos quatro Evangelhos e nas cartas de Paulo, os principais alvos da crítica são os fariseus e os doutores da lei (criticados por Cristo) e os cristãos judaizantes e farisaicos que queriam fechar e nacionalizar a Revelação (criticados por Paulo). Os fariseus que recusaram e recusam baptizar os filhos das Joanas e os católicos que viveram e vivem em negação em relação à pedofilia odeiam o Papa Francisco, porque preferem olhar para o mensageiro e não para o mal. Além do mais, não há cristianismo sem debate interno forte, sem críticos impiedosos. Haverá maior monumento cristão do que a Divina Comédia de Dante? Mas haverá crítico mais impiedoso da Igreja do que o próprio Dante Alighieri? Enquanto Monarchia (o tratado) ficou no index entre 1554 e 1881, a Divina Comédia (poesia) continuou a espalhar a mundividência católica como nenhum outro livro. Se calhar, o catolicismo precisa de mais rebeldes.

Anarquia pós-moderna

Claro que a questão do pós-verdade também se aplica ao mundo exterior. Aliás, neste tema do pós-verdade, o cristianismo pode ser o antídoto fundamental.

Antes de tudo, devemos anotar que o pós-verdade não é novo. Entre outros, Orwell, Camus e Chesterton escreveram sobre as novilínguas ao longo do século XX. Há porém um dado novo e específico neste pós-verdade 2.0. No século XX, a desonestidade do pós-verdade tinha uma dimensão industrial, estava circunscrita às grandes ideologias; o fascismo e o marxismo eram duas enormes fábricas de mentiras, falácias, distorções; a novilíngua era imposta de cima para baixo na lógica do totalitarismo. Ao invés, o pós-verdade do século XXI das redes sociais não é imposto de cima para baixo, é um movimento de baixo para cima que impõe incontáveis pós-verdades populares e/ou populistas. O pós-verdade democratizou-se, massificou-se, individualizou-se. Não há uma ou duas novilínguas, há dezenas de tribos e dezenas de pós-verdades e novilínguas a vampirizar o espaço público.

Albert Camus

Onde antes havia totalitarismo há agora anarquia. E esta anarquia tem duas grandes causas. A primeira é o pós-modernismo da esquerda pós-utopia, pós-marxismo, pós-totalitária. Aliás, o verdadeiro nome do “pós-verdade” é “pós-modernismo”; desde os anos 60, a esquerda pós-moderna não tem feito outra coisa senão destruir o conceito de verdade através do relativismo moral e epistemológico. No campo epistemológico, determinou-se que não existe uma verdade empírica, existem apenas narrativas e os torvelinhos e rodopios engraçadistas da intertextualidade. Nesta mundividência, a realidade perde a sua forma material, demográfica, económica, geográfica; deixa de existir uma verdade empírica, objectiva, mensurável e independente da vontade pessoal de cada um. Ficamos assim reduzidos a um mero verbalismo estético que desiste de percepcionar a realidade que é comum a toda a gente; em vez disso, cria-se uma realidade privada, a tal narrativa.

Repare-se que há aqui uma diferença fundamental entre perspectiva e narrativa. Perante um facto ou problema empírico, podem e devem existir diferentes perspectivas e soluções. É essa a essência do pluralismo. Perante o facto em questão, as diversas sensibilidades religiosas, morais e políticas podem e devem desenvolver percepções particulares e parciais do facto. O que não podem fazer é criar uma narrativa que negue a existência daquele facto. Por exemplo, as diferentes sensibilidades políticas podem ter diferentes instintos em relação à segurança social, mas nenhuma pode ignorar que Portugal tem um rácio trabalhador-reformado de 1.6 e que o nosso índice de fecundidade é um dos mais baixos do mundo (1.2 bebés por mulher). Nenhum discurso pode anular esta fria realidade demográfica; estes números formam um penedo inamovível, nenhuma artimanha linguística o pode esconder ou arrastar. Um discurso que recuse ver o problema da segurança social a partir deste ângulo perde logo legitimidade. Sim, perde legitimidade.

Cada pessoa cria o seu próprio mundo, como se não existissem constrangimentos materiais à expressão linguística do livre arbítrio. Pior: é como se as palavras não tivessem significado material e moral lá em baixo na realidade.

O debate tem regras e negar evidências empíricas é uma clara violação dessas regras. Mas a nossa tragédia intelectual está precisamente aqui: o pós-modernismo, que treinou as duas últimas gerações de jornalistas, intelectuais e até políticos, construiu um espaço público que é a negação desta regra clássica; criou-se uma atmosfera intelectual que despreza a evidência empírica. É como se a realidade fosse uma mera extensão privada de cada pessoa. Cada pessoa cria o seu próprio mundo, como se não existissem constrangimentos materiais à expressão linguística do livre arbítrio. Pior: é como se as palavras não tivessem significado material e moral lá em baixo na realidade. É por isso que o típico intelectual pós-moderno como Zizek analisa o cristianismo através dos ovos Kinder, procurando dessacralizar a Bíblia com esse engraçadismo linguístico. É por isso que o mesmo Zizek tenta desvalorizar as mortes do totalitarismo estalinista, brincando com a própria palavra “totalitarismo” (Did Somebody Say Totalitarianism?). É como se não tivessem morrido milhões de pessoas no Gulag, é como se o Arquipélago do Gulag de Soljenitsin não fosse reportagem, mas sim ficção.

Se aboliu a verdade enquanto conceito empírico, o pós-modernismo também destruir a verdade enquanto conceito moral. Aliás, é essa a essência do chamado “politicamente correcto” ou “comunitarismo” (também conhecido por “multiculturalismo”). Estas duas modas intelectuais hegemónicas no Ocidente dependem da vigência do pós-verdade e da destruição do Direito Natural, isto é, dependem da destruição da ideia de que existe uma moral eterna, intemporal e aplicável a todos os homens de todas as culturas e épocas. De forma reaccionária, esta esquerda comunitarista diz que não existe uma moral jusnaturalista com jurisprudência sobre as diversas culturas; cada cultura é autónoma e define por si só a sua verdade em circuito fechado; não há direito natural, tudo é relativo. É por esta razão que não se pode criticar muçulmanos, negros ou ciganos a partir de um conceito universal de decência. Diz-se que esse conceito universal de decência é na verdade uma visão “racista” ou “eurocêntrica”.

A liberdade do cidadão não é livre arbítrio do consumidor

A direita não se pode ficar a rir, porque também tem culpa neste cartório, sobretudo a direita que sacralizou o mercado. Porquê? Um livro de Walter Lippmann com mais de meio século, The Public Philosophy, ajuda na resposta. Seguindo uma lógica conservadora ou liberal clássica, Lippmann recordou em 1956 uma lição antiga: antes de sermos consumidores de um mercado, nós somos cidadãos de uma república; o mercado pode e deve ser o centro da economia, mas não pode nem deve ser o centro da república. O mercado é somente um instrumento económico, só decide o que é mais rentável e produtivo; não pode nem deve decidir o que está certo ou errado ao nível da res publica. Uma coisa é dizer que o mercado é o melhor mecanismo de produção e distribuição de riqueza (um debate fechado); outra coisa é deixar para a amoralidade do mercado decisões morais que devem ser tomadas pelo cidadão e pela política. O mercado não é nem moral nem imoral, é amoral; é só um instrumento material, não é um projecto moral. O que é excelente, diga-se.

Walter Lippmann

O erro do marxismo foi submeter a economia à moral (ou vice-versa), transformando o Partido numa idolatria infalível; o Bem e a Justiça resultavam da decisão do Partido. Ora, depois de 1989, uma certa direita libertária ou anarco-capitalista quis elevar o capitalismo a este nível de infabilidade moral; sacralizou o mercado da mesma forma que os marxistas haviam sacralizado o Partido, assumindo que o capitalismo é automaticamente benigno: se o mercado vai num certo sentido, então é porque esse sentido é Bom e Justo em si mesmo. Ou seja, esta direita assumiu que o mercado é o fim da história, o elemento que dispensa os debates políticos e morais. Isto nunca fez sentido; agora no contexto do pós-verdade faz ainda menos sentido e é cada vez mais uma ameaça ao espaço público e a liberdade da república. A figura secundária do consumidor está a destruir a figura central do cidadão.

O consumidor não tem uma responsabilidade pública, é um ser completamente privado, o seu livre arbítrio só tem um limite – a sua conta bancária. Já o cidadão tem uma responsabilidade pública, o seu livre arbítrio tem vários limites. São estes limites que temos de reconvocar. Nós não somos seres completamente privados, temos responsabilidades públicas, partilhamos um chão comum com milhões de outros cidadãos. E este chão comum começa num espaço público assente em regras e valores partilhados por todos. Uma república formada apenas por consumidores é uma república que vai destruir a sua própria liberdade, porque confunde “liberdade” com “livre arbítrio”. O consumidor vive nos seus instintos, nas suas preferências interiores, nos seus gostos. E gostos não se discutem.

As regras não são uma limitação da liberdade, são elas próprias a essência da liberdade. No rol destas regras, encontra-se o respeito pela realidade empírica que não depende de opiniões. O problema é que temos cada vez mais indivíduos imunes a esta regra, porque consomem informação da mesma forma que consomem calças, carros e brinquedos.

Mas falar e actuar no espaço público não é uma mera questão de gosto, não é uma mera expressão do livre arbítrio privado. Como dizia Hannah Arendt, a liberdade republicana nasce numa interacção entre cidadãos regida por regras que são superiores à mera opinião privada de cada um. Ou seja, a liberdade não está no coração do homem, está na interacção de dois cidadãos num chão comum. Só assim pode haver liberdade. Convém portanto ressuscitar uma tradição mais antiga e conservadora de liberalismo, uma tradição que nos dizia que o cidadão não é um mero consumidor, pois a razão e a moral não são produtos comerciais para compra ou venda; uma tradição que nos dizia que a liberdade do cidadão é criada pelas regras do espaço público. As regras não são uma limitação da liberdade, são elas próprias a essência da liberdade. No rol destas regras, encontra-se o respeito pela realidade empírica que não depende de opiniões. O problema é que temos cada vez mais indivíduos imunes a esta regra, porque consomem informação da mesma forma que consomem calças, carros e brinquedos; só consomem a pseudo-informação que confirma à partida os seus gostos. A internet transformou a informação num mercado negro. As pessoas clicam nos links que confirmam os seus preconceitos, clicam nas páginas que agradam à sua sensibilidade de consumidor, fazem like naquilo que lhes dá prazer. Só que o gosto e prazer do consumidor são o preconceito e a ignorância do cidadão. O algoritmo do Facebook trata do resto.

As duas pulsões (o pós-modernismo de esquerda e a divinização do mercado da direita) acabam por se juntar numa única corrente: o igualitarismo democrático que está a corroer as ideia de República, de Liberdade, de Verdade. Estamos a dois passados do abismo da democracia pura. Cada indivíduo, armado com o seu smarthphone, é hoje em dia uma pseudo-verdade separada de tudo o resto, não admitindo a existência de nenhuma verdade superior ao seu próprio subjectivismo. Isto tem duas consequências. Em primeiro lugar, desenvolveu-se esta ideia falaciosa: se todas as pessoas são iguais, então todas as opiniões são iguais; dizer-se o contrário é incorrer no pecado do “elitismo”. Esta falácia resulta de uma confusão entre moral e capacidades: sim, graças a Deus, as pessoas são todas iguais do ponto de vista moral e legal, mas não são iguais ao nível das capacidades. Há uns mais fortes do que outros, há uns mais inteligentes do que outros e, acima de tudo, há uns que estudam mais do que os outros – e este estudo cria a autoridade do saber que está por cima da mera opinião. Mas, como diz Tom Nichols em The Death of Expertise, vivemos numa era que despreza a autoridade do conhecimento e do estudo. Nas faculdades, um aluno de primeiro ano acha que a sua opinião é tão válida como o catedrático com décadas de estudo, e sente-se ofendido quando o catedrático o coloca no seu devido lugar. Em segundo lugar, este igualitarismo democrático cria um ambiente onde não existem valores superiores ao “eu”. Nada existe por cima do “eu acho”, nem Deus, nem as regras da liberdade (a república), nem a família, nem a ciência, nem o saber. Por outras palavras, este clima de pós-verdade é a perfeita consumação do pecado original – a ideia de que o homem é completamente autónomo e que sua verdade é feita por si próprio num circuito fechado; é o homem que determina os critérios morais que avaliam a conduta moral do homem. Como dizia Chesterton, os manicómios estão cheios de homens que se julgam autónomos.

Cristianismo como pó

O cristianismo é importante não só porque tem o conceito certo para descrever o vício do pós-verdade (pecado original), mas também porque é na tradição bíblica que vamos encontrar o antídoto para esta doença intelectual. O cristianismo é realista e transcendente ao mesmo tempo, e esta dupla face é necessária para enfrentar as duas variáveis do pós-verdade, o pós-verdade que nega a verdade empírica e o pós-verdade que nega a verdade transcendente.

O cristianismo é realista e transcendente ao mesmo tempo

O Papa Francisco costuma dizer que “a realidade é superior à ideia”. Isto quer dizer que não pode existir um cristianismo abstracto e afastado da realidade. Ser cristão implica estar rente ao chão, no meio do pó, do sangue, das feridas, do pus, da doença, da morte. O cristianismo não é um cómodo sistema de ideias platónicas que não tocam na realidade humana; o cristianismo não é teórico, é biográfico ou autobiográfico. O Verbo encarnou no homem e nasceu no meio do pó e do esterco. Costumo levar as minhas filhas a quintas cheias de animais. Quando elas se começam a queixar do mau cheiro, digo-lhes sempre que Ele nasceu ali, no meio do mau cheiro, dois palmos acima do estrume. A fofura do presépio moderninho esconde esta dureza original. A outro nível, muitos jovens vêm falar comigo sobre grandes tratados teológicos ou filosóficos, querem discutir as grandes ideias, as grandes palavras que nos esmagam com o peso majestático da maiúscula. Começo sempre por lhes dizer o seguinte: “meus caros, têm de ler romances ou biografias, é aí que vão encontrar os dilemas morais que constroem o cristão por dentro”. Nós não amamos o Cristianismo, amamos Cristo. Não amamos a Humanidade, amamos homens concretos. É por isso que o pensamento hebraica e bíblico, ao invés do grego, é feita de histórias, narrativas e parábolas, recusando as grandes ideias abstractas.

Estes pés cristãos bem assentes no pó são importantes porque o pós-verdade começa por atacar a verdade enquanto evidência empírica. São às centenas os exemplos desta disfunção. Vou isolar apenas os que me parecem mais evidentes. Por exemplo, perante as perguntas “acha que vive num período violento ou pacífico?” e “acha que tem mais paz ou mais violência do que gerações anteriores?”, a maioria das pessoas diz que vive num período violento, mais violento do que períodos passados – um erro quilométrico. Como muitos autores como Steven Pinker já demonstraram, esta narrativa negra não faz sentido. Nós vivemos num dos períodos mais calmos de sempre. Nem sabemos a sorte que temos. Mas o 11 de Setembro não fez 3000 mortos? Mas os americanos não perderam 3000 homens na guerra do Iraque? Sim, é verdade. Mas perderam 58 mil pessoas no Vietname e 750 mil na guerra civil. Só no dia D (invasão da Normandia), os americanos perderam mais de 6 mil homens. Mas então não há o terroristas islamita? Claro que sim. Sucede que o IRA, os Baader Meinhof, as FP 25 de Abril, Brigadas Vermelhas, a ETA mataram mais pessoas do que os actuais terroristas islamitas. Acham que é preciso recuar mais no tempo ou já perceberam o ponto?

Perante a pergunta “a pobreza aumentou ou diminuir nas últimas décadas?”, a maioria das pessoas diz que a miséria aumentou. Outro erro grave. Não é uma questão de opinião, é uma questão de facto. Numa geração, a globalização cortou para metade a pobreza à escala global.

Seja qual for a época de comparação, não há ponto de comparação entre o nosso período histórico marcado pela ordem e outros períodos históricos marcados pela desordem e por algo que nós conseguimos congelar até prova em contrário: não há guerra ou tensão pré-bélica entre as grandes potências do sistema. Então porque é existe este enorme erro de percepção? Os canais de informação 24 sobre 24 horas e a internet criam esta miopia através de uma desinformação narcísica que se desenrola da seguinte forma ao longo do dia: logo pela manhã, o cadáver de um garoto morto na Síria passa em todos os canais de tv; ao almoço, o cadáver continua a passar, gerando uma sensação de fim do mundo; à tarde, essa sensação é transposta para o twitter e facebook: as pessoas pegam na foto do garoto e fazem posts ou tweets lacrimejantes e narcísicos, gerando uma competição xaroposa ao nível da Miss Mundo – “o mundo vai de mal a pior”, “teremos salvação?”, “choro pelos mortos da Síria”, “je suis não sei quê”, etc., etc. Cria-se assim uma narrativa internética e apocalíptica sem qualquer relação com a realidade. Síria? O que é específico da Síria em 2017 é a sua raridade. No passado existiam várias Sírias ao mesmo tempo. Portugal foi uma Síria na primeira metade do século XIX. Não, o mundo não tem sido horrível para nós, tem sido até bastante maravilhoso.

Perante a pergunta “a pobreza aumentou ou diminuir nas últimas décadas?”, a maioria das pessoas diz que a miséria aumentou. Outro erro grave. Não é uma questão de opinião, é uma questão de facto. Numa geração, a globalização cortou para metade a pobreza à escala global. Em 1990, a pobreza extrema atingia 1.9 biliões de pessoas. Em 2015, os miseráveis dos miseráveis eram 836 milhões. Em 1990, 47% da população dos países mais pobres vivia com menos de um dólar por dia. Hoje em dia, esse número ronda os 14%. Em 1990, 12,7 milhões de crianças até aos cinco morriam por ano no chamado terceiro mundo. Agora morrem 6 milhões. Ainda é grave? Sim. Mas repare-se que ocorreu uma melhoria de 50%. Em 1990, morriam 380 mulheres por 100 mil partos nos países em vias de desenvolvimento. Em 2000, morriam 300; hoje o número está nas 210. Passa-se o mesmo com doenças. A pólio e a malária estão a desaparecer devido a campanhas de vacinação. No entanto, aqui no ocidente pinta-se o mundo com cores negras, quase apocalípticas. Hans Rosling, grande intelectual sueco que faleceu há pouco, passou os últimos anos a desmontar esta percepção errada.

Perante a pergunta “a pobreza aumentou ou diminuir nas últimas décadas?”, a maioria das pessoas diz que a miséria aumentou. Outro erro grave

À pergunta “o mundo melhorou ou piorou nos últimos anos?”, só 23% dos suecos e 5% dos americanos deram a resposta certa. 39% dos suecos e 66% dos americanos garantiram que o mundo tinha piorado. O curioso é que Rosling fazia a mesma pergunta a um grupo de macacos. Desta forma irónica, Rosling mostrava que a resposta aleatória dos macacos (33%) estava mais próxima da verdade do que a resposta consciente de suecos e americanos. As pessoas não querem ver a realidade tal como ela é, não querem uma janela, querem um retrato, ou melhor, um auto-retrato; não querem uma janela analítica sobre o mundo, querem um retrato desse mundo pintado de acordo com as suas preferências. Se acham que a globalização é terrível, então recusam aceitar os factos que mostram que essa globalização retirou milhões da miséria mais abjecta.

Repare-se agora em três casos de negação de factos científicos: o aquecimento global, os alimentos geneticamente modificados e as vacinas. Muitas pessoas à direita continuam a negar as evidências do aquecimento global, porque dizem que é apenas uma falácia pós-marxista contra o capitalismo. Compreendo a fúria. De facto, o ambientalismo radical usa o ambiente como uma nova arma contra o capitalismo (o urso polar substitui o proletariado). Mas este radicalismo verde não invalida os dados (sobretudo os da paleo-climatologia) que indicam a presença da mão humana neste aquecimento. À esquerda, muitas pessoas ligadas a este ambientalismo radical mantêm a opinião de que os alimentos geneticamente modificados são pestíferos. Sucede que não há qualquer indício empírico e científico que comprove esse preconceito. As uvas sem grainha semi-criadas pela nossa engenharia são tão saudáveis como as uvas normais. Passa-se o mesmo com o aberrante fenómeno dos pais que recusam vacinar os filhos, alegando que as vacinas são venenos químicos criados por uma enorme teoria da conspiração médica que visa apenas alimentar as farmacêuticas. Perante o achismo do “eu não quero vacinar o meu filho”, séculos de ciência são transformados numa corrente reaccionária que não respeita a opinião das pessoas que acham que a medicina moderna é uma conspiração química.

Fala-se muito na crise do jornalismo e há muitas críticas a fazer aos jornais, sem dúvida, mas o problema começa logo num problema que está fora do alcance dos jornais: boa parte das pessoas muito simplesmente não quer ser informada; recusa a informação que nega as suas narrativas e teorias da conspiração. Aquilo que começou como uma utopia de informação e conhecimento (a net) acabou por se transformar numa distopia obscurantista, irracional, anti-ciência.

O cristianismo propriamente dito

A par da verdade enquanto conceito empírico, temos de considerar a verdade enquanto conceito moral, enquanto ética transcendente, universal e atemporal que não depende de nada relativo, que não depende da imanência humana e histórica, isto é, não depende de Estados, nações ou partidos, não depende de culturas, tradições ou folclores, não depende de avanços tecnológicos e, acima de tudo, não depende da vontade ou opinião pessoal de cada um. Perante o “não matarás” ou perante o “amai o próximo”, a minha opinião conta exactamente para quê? É uma irrelevância. O cristianismo ensina-nos que há sempre algo superior à nossa própria opinião; existe uma verdade transcendente que está situada numa esfera superior à nossa mera imanência subjectiva. E temos sempre de filtrar a nossa opinião através dessa peneira intemporal.

Entre o povo mariano que enche Fátima, encontramos muitas pessoas que dizem “Nossa Senhora é que é”; são pessoas que transformam o marianismo num culto à parte, quase pagão e sem relação com a Santíssima Trindade. Isto não faz sentido. Maria é um caminho para Jesus, não é um fim em si mesmo.

Mas, antes de olharmos para o mundo exterior, convém olharmos de novo para o espaço católico. Porque esta questão do pós-verdade na moral também afecta católicos, quer numa versão sofisticada, quer numa versão humilde. Estas duas versões acabam por desenvolver um catolicismo subjectivo à la carte. É como se fossem a um alfaiate teológico encomendar um catolicismo feito à medida, que deixa no chão bocados de tecido bíblico que não interessam.

Entre o povo mariano que enche Fátima, encontramos muitas pessoas que dizem “Nossa Senhora é que é”; são pessoas que transformam o marianismo num culto à parte, quase pagão e sem relação com a Santíssima Trindade. Isto não faz sentido. Maria é um caminho para Jesus, não é um fim em si mesmo. Devemos rezar com Maria, não para Maria. Não se trata de snobismo perante o povo humilde, trata-se de respeitar a verdade bíblica.

Entre os católicos mais sofisticados, ouve-se muitas vezes “não sou bem uma católica ortodoxa, sou heterodoxa”, “sou católico mais ou menos, não praticante”. Quer isto dizer o quê? Que cometem o pecado oposto ao dos fariseus — o pecado dos saduceus. Se os fariseus são legalistas e acabam por perder o rasto da misericórdia, os saduceus são relativistas e entram num subjectivismo à Pelágio que acaba por negar Deus, impondo à Bíblia o livre arbítrio do homem (o pecado original); os saduceus estão e não estão na fé, não têm coragem para ir até ao fim, escolhem umas partes, negam outras, que são consideradas “pessimistas”, “reaccionárias”, “pouco modernas”, etc. Um exemplo clássico deste saduceu cool é o seguinte: aprecia a luminosidade do 11.º mandamento (misericórdia) mas rejeita a doutrina do pecado original. É demasiado negra, diz. Ao recusar o pessimismo do pecado original, este católico-saduceu recusa ver-se a si mesmo como um ser caído e imperfeito; este católico-que-se-diz-moderno esquece que o cristianismo não é uma troca de peluches, é uma guerra pessoal contra nós próprios. A Bíblia diz “odeia-te”, força-nos a reconhecer erros, leva-nos a filtrar e civilizar o nosso ego. Sem este pessimismo validado por Santo Agostinho, o cristianismo corre o risco de ser um livro de auto-ajuda.

O santuário de Fátima

A par da recusa do pecado original, este catolicismo de alfaiate trendy recusa a própria existência dos diferentes pecados. Sim, muitos católicos partilham uma das marcas do ar do tempo: encara-se o pecado não como um mal objectivo, mas com uma ameaça à liberdade ou uma negação da própria natureza de cada um. Como diz Tiago Cavaco em Seis Sermões contra preguiça, a preguiça deixou de ser preguiça e passou a ser uma espécie de traço de personalidade. A ira deixou de ser ira e passou a ser outro traço de personalidade; aceita-se que aquele pessoa tem “mau feitio” que não consegue controlar. A luxúria deixou de ser luxúria e passou a ser “poliamor”, “liberdade sexual” ou “novos costumes”. A mentira deixou de ser mentira e passou a ser “narrativa”. O pecado, que é imoral, passou a ser amoral, porque faz parte da natureza das pessoas como a cor do cabelo ou o comprimento das pernas; o pecado passou a ser neutro moralmente como o diâmetro do nariz ou a espessura dos lábios.

Arrumada a casa, passemos para o exterior da igreja. Claro que este ponto da verdade enquanto moral também implica um confronto com o mundo. E aqui devo confessar uma coisa: não compreendo como é que se pode pensar sem a presença de uma verdade eterna e transcendente que não dependa das imanências relativas e históricas. É por isso que costumo invocar o Direito Natural ou jusnaturalismo, que é uma outra forma de falar de Deus sem assustar as pessoas. Se quiserem, o Direito Natural é a razão prática retirada de uma razão pura (Deus). De Cícero a Burke, de São Paulo aos pais fundadores dos EUA, passando por Kant, o Direito Natural diz-nos que todos os homens nascem iguais e detentores de direitos inalienáveis que nenhum poder político ou cultural pode negar. A fonte do direito não é a política e o direito positivo, mas sim uma ideia de justiça transcendente. O direito positivo não cria direitos, só pode reconhecer direitos já preexistentes. Mais: sem Direito Natural, nós não teríamos um ângulo de crítica ético sobre os diferentes poderes de facto. Sem a presença do Direito Natural, teríamos de aceitar à partida a validade moral de qualquer tradição cultural ou de qualquer decreto-lei. Querem exemplos? Num mundo sem a luz do Direito Natural, Richard Nixon teria razão quando disse “se o presidente o faz, então está certo”. Esta frase de Nixon representa a sacralização do decreto-lei e do poder positivo, representa um mundo onde Poder e Moral são sinónimos. Claro que não são. A assinatura de um político ou um juiz não legitima de imediato uma lei. Legitimidade e Legalidade não são sinónimos. Uma lei pode ser legítima, mas também pode ser ilegítima. Aliás, o facto de termos a liberdade e o ângulo ético para dizer “essa lei é ilegítima” até pode ser visto como o pilar número do Ocidente.

Com ou sem tradição, com ou sem cultura, forçar uma adolescente a casar com um homem mais velho não é uma “especificidade cultural”, é uma barbárie intolerável que viola os direitos humanos.

Sem Direito Natural, teríamos de aceitar enquanto “especificidade cultural” fenómenos como os “crimes de honra” ou como os “casamentos forçados” das comunidades muçulmanos. Sem Direito Natural, tudo passaria a ser relativo à história, à cultura, à tradição, logo teríamos de dizer que um “casamento forçado” faz parte da “cultura deles” e teríamos de reconhecer que essa e outras práticas não podem ser criticadas porque não existe um critério moral e universal acima da cultura de cada povo. Nesta lógica reaccionária partilhada por nacionalistas de direita e pelo politicamente correcto de esquerda, cada comunidade tem a sua própria bolha de pós-verdade. Maurras, o antepassado de Le Pen, é igual a Edward Said, o antepassado dos politicamente correctos. Ambos destruíram o jusnaturalismo; ambos impuseram o relativismo da história como único critério de avaliação da acção humana. Ora, se esta perspectiva de Maurras e Said estivesse correcta, se tivéssemos de seguir esta sacralização da tradição cultural expressa através de uma maioria democrática, a escravatura nunca teria sido atacado por Lincoln, porque a vil instituição era legítima aos olhos da tradição e da democracia dos estados confederados; da mesma forma, a segregação não teria sido atacada por Lyndon Johnson, porque era legítima aos olhos da cultura e da democracia dos estados sulistas. Se seguíssemos esta perspectiva, as mulheres brancas nunca poderiam ter conquistado o direito de voto, porque a tradição dizia que as mulheres deviam ficar em casa. Curiosamente, quando se fala hoje em dia das mulheres muçulmanas a viver na Europa, o ar do tempo diz que elas estão condenadas à submissão, “porque é a culturas delas e deles, porque é assim na cultura muçulmana”. Isto não é aceitável. Com ou sem tradição, com ou sem cultura, forçar uma adolescente a casar com um homem mais velho não é uma “especificidade cultural”, é uma barbárie intolerável que viola os direitos humanos.

A ideia de que existe uma noção de bem universal e independente do poder político e do poder cultural também se aplica ao poder da tecnologia. Tal como a imanência político-jurídica e tal como a imanência cultural, a imanência tecnológica não decide por si só a legitimidade de uma acção ou de uma invenção. A ciência, como vimos, é soberana no campo empírico, mas perde essa soberania no campo moral. Tal como o mercado, a ciência labora apenas no campo da possibilidade material, não entra no campo das legitimidade moral. Por exemplo, a ciência não decide a moralidade do aborto ou da eutanásia. A ciência só responde a duas perguntas: é possível fazer o aborto? Se for possível, quais são as formas mais indolores? A pergunta central (devemos fazer um aborto?) não cabe à ciência, porque a ciência é amoral por definição. Antes de entrar no laboratório, o cientista até pode ser o mais preocupado e catolicíssimo dos cidadãos, mas ele sabe que o seu trabalho científico dentro do laboratório tem sempre uma linguagem amoral.

Temos o direito de recorrer à eugenia para criar ex nihilo os nossos filhos? Temos o direito de criar filhos sem a doença x, y e z? E se podemos evitar geneticamente uma doença, isso também quer dizer que podemos aumentar à socapa a inteligência desse feto?

E o nosso problema começa aqui: a sociedade em geral está moralmente despida perante as novidades científicas e tecnológicas. Aceita-se qualquer geringonça sem questionamento moral, é como se a tecnologia tivesse em si mesmo uma moral benigna: se é tecnológico, se é novo, então é bom. O Bem e a Técnica fundem-se; confunde-se a possibilidade tecnológica com a legitimidade moral. O resultado desta idolatria da técnica é uma atmosfera amoral. Os exemplos são inúmeros. Por exemplo, decidiu-se que a encriptação dos telemóveis está acima do próprio estado de direito; mesmo que assim o exija em nome do bem comum, um juiz não pode ter acesso ao interior encriptado de um iphone. Como é que pode existir um espaço tecnológico que é uma bolha de pós-verdade à prova de um mandato judicial?

A amoralidade volta a ser evidente nas questões da nanotecnologia e da biotecnologia, que estão projectando um futuro pós-humano que deve ser questionado. Temos o direito de introduzir nano-chips no nosso cérebro, elevando assim as nossas capacidade mentais para níveis pós-humanos? Temos o direito de entrar neste caminho cyborg que nos funde com a máquina? Temos o direito de recorrer à eugenia para criar ex nihilo os nossos filhos? Temos o direito de criar filhos sem a doença x, y e z? E se podemos evitar geneticamente uma doença, isso também quer dizer que podemos aumentar à socapa a inteligência desse feto? Temos o direito de criar um fígado ou coração para trocarmos de órgãos como se estivéssemos a trocar de pneus? Terei eu direito a criar um clone que funcione como a minha oficina de órgãos substitutos? Temos o direito de ressuscitar espécies animais extintas como os mamutes? Não, não se trata de uma adaptação manhosa do Jurassic Park. É uma hipótese real: em breve será possível recriarmos ex nihilo uma espécie animal há muito extinta. Será possível. Mas será legítimo? Essa é uma pergunta que ciência não pode responder. Essa pergunta entra no perímetro da Igreja, não da ciência.

Realista e transcendente

Quer pela sua dimensão realista, quer pela sua dimensão transcendente, a tradição cristã é o grande antídoto contra o pós-verdade, que começa, como vimos, dentro da própria Igreja. Há um pós-verdade fariseu e um pós-verdade saduceu; ambos são prejudiciais, ambos danificam a capacidade da igreja para actuar sobre o mundo exterior. E esse mundo exterior precisa, mais do que nunca, de uma injecção de cristianismo. Tal como diz Pierre Manent, este momento de pós-verdade no ocidente só pode ser combatido com um regresso às origens bíblicas. Kant não chega, Tocqueville não chega. Burke não chega. Lincoln não chega. Camus não chega. Tolstoi não chega. É preciso ir à fonte. É preciso ir a Dante. É preciso ir a Santo Agostinho. É preciso ir à Bíblia. Só nessa fonte vamos encontrar as verdades necessárias para vencermos este combate intelectual. E, como dizia São Paulo, “apoiado nelas, combate o bom combate, conservando a fé e a consciência” (1 Tm 1, 18-19).

Dante, num retrato de Sandro Botticelli, 1495

Este bom combate tem duas frentes. Contra aqueles que recusam reconhecer a existência de factos empíricos, insofismáveis, mensuráveis e independentes da nossa vontade subjectiva, há que impor o realismo e a humildade de uma fé que começou na manjedoura. O cristão não é um místico etéreo, é um soldado que está rente ao chão, colado ao solo e aos factos, sobretudo àqueles que podem ser desagradáveis para as nossas ideias pré-concebidas. Contra aqueles que recusam reconhecer a existência de uma moral universal, transcendente, intemporal e com jurisprudência sobre a imanência da lei, da política, da cultura, da tradição e da tecnológica, há que defender a razão pura (Deus) e, acima de tudo, a razão prática (Direito Natural). Como dizia Leo Strauss, se tudo é relativo, se não há direito natural, então o canibalismo é uma mera questão de gosto.

Texto retirado da palestra proferida no “Fé e Cultura” organizado pelo CUMN (Coimbra), 1 de Abril

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