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Manuel Pinto Soares/FPE

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Entrámos na gruta portuguesa mais parecida com a da Tailândia. Como seria o resgate se fosse cá?

Na gruta portuguesa igual a Tham Luang, especialistas criticam a operação tailandesa e dizem que teriam retirado os rapazes 6 dias mais cedo. Por cá já houve um acidente, mas não há planos de resgate.

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Há quase 30 anos, num verão dos anos oitenta, um guia de escuteiros levou um grupo de crianças com idades entre os 11 e os 13 anos para dentro da gruta do Almonda, a maior em Portugal. Nenhum deles levava arnês, nem bloqueadores, nem sequer capacetes. Um dos rapazes caiu porque se apoiou numa rocha menos estável, bateu com a cabeça e morreu imediatamente. A partir desse dia, as visitas àquele local passaram a ser mais controladas. Muito mais controladas. Se até então as férias levavam centenas de curiosos até lá, depois as entradas para o interior do complexo passaram a ser condicionadas. Agora só quem tem formação em espeleologia ou estiver acompanhado por quem a tenha é que se pode aventurar por ali adentro.

Recordar este episódio traz imediatamente à memória o que se passou recentemente na Tailândia. Porque ele se passou na gruta portuguesa mais parecida com aquela em que os doze jovens jogadores de futebol e o seu treinador de 25 anos ficaram presos durante dezassete dias em Chiang Rai, no norte tailandês, junto à fronteira com o Laos e Myanmar. Só que o caso tailandês teve um final mais feliz: fez esta sexta-feira um mês que todos foram resgatadas com sucesso depois de longos dias de angústia seguidos pelo mundo inteiro.

[Veja no vídeo as imagens do interior da gruta portuguesa mais parecida com a da Tailândia]

Em que tanto se parecem Tham Luang e Almonda, separadas por mais de 10 mil quilómetros? Foi o que fomos ver.

Manuel Soares, Pedro Pinto, Kimmy Silva, Laura Neves, Marta Ferreira e João Neves. Foto tirada depois de regressar da gruta na casa que guarda o buraco de acesso. Créditos: Manuel Pinto Soares/ FPE

Manuel Pinto Soares/FPE

Primeiro, a preparação

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Desde os anos 90 que começou a exploração arqueológica na região da gruta do Almonda. Ainda em 2014 foi encontrado um crânio com 400 mil anos na rede cársica da nascente, o mais antigo alguma vez identificado no país e um dos poucos da Europa.

Estudar a topografia é essencial. Ser acompanhado por profissionais também. Connosco está uma equipa de quatro pessoas: João Neves (ex-presidente da Federação Portuguesa de Espeleologia) e Laura Neves (ex-diretora da Comissão de Ensino da Federação). São ambos espeleólogos e foram dos primeiros a explorar a gruta durante os anos 80. Já Pedro Pinto é um dos especialistas em espeleosocorro em Portugal e Manuel Soares é responsável pelo departamento de mergulho em gruta da Federação Portuguesa de Espeleologia. Serão eles a levar-nos ao longo dos quatro quilómetros que vamos percorrer no interior da gruta, vestidos com camisolas polares, casacos térmicos e galochas.

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A topografia que João Neves estendeu no chão da loja Submate, em Lisboa, de onde partimos em direção à gruta perto de Torres Novas, mostra um complexo serpenteante que escava os calcários junto à Serra de Aire e Candeeiros ao longo de 17 quilómetros. Essa é a maior distância que alguma vez foi explorada, mas os espeleólogos acreditam que ela possa ter mais de 70 quilómetros de comprimento. O caminho pelo qual vamos entrar é um corta-mato que nos permite escapar aos corredores esguios e estreitos junto à nascente do rio Almonda: é lá que descemos a pique para dentro da gruta com recurso a cordas e arneses que nos apertavam as pernas e desfraldavam as camisolas.

A gruta de Tham Luang é menos serpenteante, mais horizontal e segue ao longo da base da cordilheira Doi Nang Non: tem 10,3 quilómetros de comprimento e uma profundidade de 85 metros (embora esteja a 800 do cume da montanha). Enquanto a entrada para a gruta do Almonda é muito estreita, a câmara que serve de entrada a Tham Luang tem 80 metros de comprimento. Mas ambas partilham o facto de terem túneis muito estreitos — o mais apertado em Tham Luang tem o comprimento da entrada da gruta do Almonda.

Segundo a topografia, Andámos quatro quilómetros dentro da gruta do Almonda e chegámos a uma profundidade máxima de 100 metros. Na Tailândia o grupo foi encontrado a quatro quilómetros da entrada e a 800 metros do cume da montanha.

Segundo a topografia que João Neves nos mostrou, andámos um máximo de 0,4 quilómetros dentro da gruta do Almonda e chegámos a uma profundidade máxima de 100 metros. Não arriscámos ir mais longe nem caminhar mais para dentro porque podíamos encontrar zonas submersas e não tínhamos material de mergulho connosco. A essa distância do solo entrámos numa galeria que no inverno costuma estar completamente cheia de água, mas que em pleno verão se resume a argila lamacenta que nos cobre os pés quase na totalidade.

A caminhada dentro da gruta do Almonda. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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Para entrar dentro da gruta é preciso aceder-se por uma pequena casa de cimento improvisada no meio do mato que cobre o vale e que guarda o buraco feito artificialmente para entrar no complexo. Está muito calor lá dentro: é meio-dia e o sol fustiga o vale junto à serra a esta hora. Quem descobriu aquela localização foi o casal Neves: “Um dia estávamos a explorar zonas desconhecidas da gruta e quando olhámos para cima percebemos que conseguíamos ver algumas raízes de árvores e caracóis. Percebemos que estávamos bastante próximos da superfície porque as raízes da vegetação que existe aqui não é muito profunda. Por isso, quando voltámos ao solo, juntámos outros espeleólogos e com explosivos abrimos este buraco”, conta João Neves enquanto endireita o arnês à volta das pernas e sacode as aranhas que nos sobem pelas pernas.

Foi por essa entrada, que não tem mais do que 60 centímetros de largura mas que já foi alargado no passado, que tivemos de entrar para aceder à gruta do Almonda. Assim que as nossas pernas entram no buraco uma lufada de vento refresca-nos a pele: se cá em cima as temperaturas rondam os 30ºC, lá em baixo não ultrapassam os 17ºC. À nossa volta começam a surgir espaços mais largos onde a luz das lanternas desvendam cristais incrustados nas paredes que brilham como diamantes. Eram ainda mais brilhantes antes, quando a gruta era virgem e apenas João e Laura se aventuravam por aquelas bandas. Depois o toque das pessoas tem polido demais as rochas e retiraram parte dessa luminosidade.

O estreito buraco que usámos para aceder à gruta. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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Na Tailândia também foi tomada em conta a opção de abrir um buraco artificial para resgatar as crianças e o treinador: durante longos dias vários helicópteros sobrevoaram a cordilheira de Doi Nang Non em busca de entradas alternativas para a entrar na gruta, enquanto uma equipa de resgate se dedicava a fazer furos na rocha calcária na tentativa de libertar alguma da água acumulada nas passagens bloqueadas. Só que os helicópteros não conseguiram encontrar outras entradas viáveis.

Mais de cem furos foram feitos na tentativa de libertar a água da chuva, que em algumas partes chegou a ter cinco metros de profundidade e a aumentar 15 centímetros por hora — mas o esforço foi inglório, mesmo apoiado por materiais mais sofisticados enviados pelo Departamento de Águas Subterrâneas da Tailândia e pelas barragens improvisadas à superfície, construídas para evitar a entrada de mais chuva. Uma equipa foi destacada especialmente para, também no solo, procurar fendas que pudessem permitir aos exploradores acederem às partes mais profundas da gruta com equipamentos geológicos e câmaras. A PTTEP, uma empresa de exploração de petróleo na Tailândia, enviou uma frota de drones para constituir um esquema tridimensional das cavernas e um sonar para desenhar em computador um mapa das partes submersas da gruta. Nada disso resultou.

A topografia da gruta do Almonda. A cor de laranja está assinalada a região que percorremos.

Aqui em baixo está um esquema da gruta na Tailândia.

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A entrada para a gruta

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Sifão é o nome dado aos espeleólogos para as regiões no interior de uma gruta que estão permanentemente inundadas de água.

A entrada que usámos é a mais estreita da gruta na atualidade. Antes de ter sido construída a pedido dos espeleólogos havia outras duas outras ainda mais estreitas: a Garganta da Formiga e O Psiquiatra. Ambas tiveram de ser alargadas, recorda Laura Neves: “Tiveram de ser aumentadas por causa de umas filmagens que se fizeram nos anos oitenta para um programa do António Hipólio que se chamava ‘O Mar e a Terra’ na RTP. Para poderem passar as câmaras e todo o equipamento alargou-se a passagem. E a nós deu jeito porque assim também podiam passar as garrafas de mergulho”.

A Garganta da Formiga fica escondida atrás de um monte junto à nascente do rio Almonda, um lago de água fresca e cristalina de cores turquesa que serve de habitat para um tapete de algas e musgos verdejantes e que foi represada pela nova fábrica da Renova: “Dá acesso a uma região extremamente labiríntica. Depois chega-se a uma galeria muito grande e tem um sifão relativamente comprido. A gruta até 1980 só era conhecida até aí e mesmo depois de 1985 ainda se continuaram a explorar bastantes galerias nessa região. Não era muito. E só não se explorava mais porque havia as tais regiões permanentemente inundadas e era preciso mergulhar. Não havia ninguém para o fazer. Foi quando nós começámos a mergulhar. Passámos esse sifão e então conseguimos descobrir o resto que é conhecido até hoje”, conta João Neves.

Nas escadas que dão acesso à casa de cimento que usámos para aceder à gruta. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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Se a gruta do Almonda tem essas regiões permanentemente inundadas porque são alimentadas pelo rio que corre dentro dela, já Tham Luang é seca durante grande parte do ano. As galerias e os corredores dessa gruta na Tailândia só ficam cheias de água na época das monções, que ocorrem quando há uma grande diferença de temperaturas entre o ar acima do mar e o ar acima das regiões continentais mais próximas. As rochas que compõem o solo não têm uma grande capacidade térmica em comparação com a água do mar, que suporta temperaturas muito maiores. Isso faz com que a quantidade de calor que é absorvida e acumulada na água do mar nas estações quentes seja muito maior à que é acumulada em terra. Como o ar está em movimento, o mais quente que existe sobre a terra sobe por estar mais denso: isso cria uma zona de baixa pressão atmosférica e levanta vento vindo do mar para terra que arrasta o ar mais rico em humidade. Esse ar arrefece e condensa, chegando depois à precipitação sob a forma de chuva.

No caso particular da Tailândia, as épocas das chuvas começam em junho e só acabam em outubro, embora sejam mais fortes a partir de agosto. Estas monções resultam das massas terrestres do subcontinente indiano e do sudeste asiático, que aquecem mais rápido do que a água do oceano Pacífico. Isso cria um fluxo de ar mais frio e carregado de humidade que estaciona por cima da Tailândia. Por isso a gruta de Tham Luang está proibida a visita de meio julho a outubro.

A apertada entrada por onde entramos leva-nos a uma profundidade de 50 metros através de um caminho a pique. A topografia de Tham Luang é diferente: a gruta é quase sempre horizontal, por isso não há troços verticais.

Voltando a Torres Novas e ao Almonda, a apertada entrada artificial por onde entramos leva-nos a uma profundidade de 50 metros através de um caminho a pique. Aqui aprendemos a primeira regra: temos sempre de arranjar quatro pontos de apoio, de preferência as duas mãos e os dois pés, e três deles têm de estar perfeitamente estáveis e apoiados nas rochas enquanto o quarto procura por um novo lugar para descer. Se nos desequilibrarmos, aquele bloqueador é a nossa salvação: agarra-se à corda e impede que deslizemos ao longo dela à mercê da força de gravidade. A nós acudiu pelo menos uma vez. E mesmo assim terminámos a jornada com um cotovelo inchado e uma nódoa negra gigante na parte traseira do corpo, se é que nos entendem.

No percurso a pique que dá acesso à gruta, o mesmo que usámos para regressar à superfície. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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Esta forma de entrar na gruta do Almonda contrasta em muito com a forma como se entra para Tham Luang: como a gruta tailandesa não tem muitas subidas e descidas ela pode ser explorada quase inteiramente sem recurso a técnicas de rappel ou de escalada. Além disso, o primeiro quilómetro é aberto ao público para visitas guiadas entre novembro e junho, por isso tem instalações luminosas e passadiços ao longo desse percurso. Depois de passar esse quilómetro, que fecha durante a época das monções, os rapazes tiveram de passar zonas muitos estreitas, por isso provavelmente foram obrigados a gatinhar e rastejar ao longo dessas passagens. Pelo caminho também encontraram estalactites e estalagmites brilhantes, tal como nós dentro da gruta do Almonda.

O que une e o que separa Tham Luang e a gruta do Almonda

A gruta do Almonda, assim como a gruta de Tham Luang, foi escavada ao longo de milhões de anos no interior de um maciço de calcário que está ali desde o Jurássico, quando os dinossauros ainda caminhavam sobre a Terra. Duas coisas contribuem para formações como esta gruta, que é também o segundo maior reservatório de água de Portugal.

Por um lado, a própria água da chuva: “O calcário é solúvel em água da chuva, que é já por si um bocadinho ácida. Quando cai no chão e se encontra com as plantas a água torna-se ainda mais ácida porque se mistura com os ácidos orgânicos que existem nos solos“. E por outro lado, o comportamento da rocha: “O calcário é muito quebradiço. Quando há movimentos tectónicos, os estratos de calcário partem e formam-se fraturas. A água passa por essas fissuras do calcário, começa a dissolver e vai abrindo galerias. Quando se abre uma via para a entrada da água, ela vai preferencialmente escoar por aí e vai alargando e dissolvendo cada vez mais até fazer coisas muito grandes. Forma uma espécie de um rio subterrâneo no meio do calcário. Quando acaba a zona calcária, esse rio sai cá para fora e faz a nascente de um rio”, descrevem os dois espeleólogos.

A gruta do Almonda tem, no entanto, uma particularidade, um fenómeno que prossegue pacientemente há muitos milénios: “Onde nós estamos agora é a bacia sedimentar do Tejo. O Tejo ao longo dos milénios andou a serpentear por estes terrenos e a deixar depósitos, que são muito mais recentes do que o calcário da serra. Só que, com os movimentos tectónicos, a serra está a avançar para cima da bacia sedimentar do Tejo. Então o calcário encontra a bacia sedimentar e começa a cavalgá-la. Aqueles calcários estão a tentar vir para cima desta zona e por isso aquele lábio levanta. É o bordo do maciço a tentar subir para aqui mas levanta porque encontra resistência”, descreve o espeleólogo natural de Aveiro.

Andar no interior da Gruta do Almonda não é tarefa fácil: "A gruta tem precisamente a mesma coisa que existia na gruta da Tailândia na altura do acidente. Tem zonas completa e permanentemente inundadas até ao teto. A gruta da Tailândia só tem um regime ligeiramente diferente porque durante a época seca no país não deve ter regiões inundadas".
João Neves, espeleólogo

Andar no interior da Gruta do Almonda não é tarefa fácil: “A gruta tem precisamente a mesma coisa que existia na gruta da Tailândia na altura do acidente. Tem zonas completa e permanentemente inundadas até ao teto. Essas regiões são exploradas em mergulho, o que torna as coisas um pouco mais complexas. A gruta da Tailândia só tem um regime ligeiramente diferente porque durante a época seca no país não deve ter regiões permanentemente inundadas. Esta aqui do Almonda tem sifões desses, o que faz dela ainda mais difícil de explorar comparando com a de Tham Luang”, explica ao Observador João Neves enquanto mastiga uma sandes mista dentro da galeria onde parámos para almoçar. Em alguns desses sítios a velocidade e a força da água na gruta do Almonda é tão grande como na época das monções em Tham Luang: vem acelerada após subir uma rampa onde se acumula na duna gigantesca.

A paragem na galeria Praça de Touros para almoçar. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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Apesar de todas as semelhanças, logo nos primeiros metros de percurso podem notar-se as principais diferenças entre a gruta de Tham Luang e a gruta do Almonda. Em primeiro lugar porque a entrada para a gruta tailandesa é muito mais larga: a primeira parte do complexo é feito por uma galeria que tem 80 metros de comprimento e que tem o chão pavimentado porque está preparado para receber turistas fora da época das monções. Só ao fim de algumas metros é que as passagens se tornam muito mais estreitas, tão estreitas como esta por onde passámos logo para entrar, e lamacentas.

Além disso, explicam os espeleólogos, se a topografia das duas grutas é muito parecida, a orientação delas não o é: enquanto a gruta do Almonda é mais vertical porque avança em profundidade pelo vale junto à Serra de Aire e Candeeiros, a gruta de Tham Luang é mais horizontal e avança por baixo e ao longo de  Doi Nang Non, a cordilheira montanhosa na fronteira com Myanmar.

Como os últimos 50 centímetros de uma corda salvaram os rapazes da gruta. Os detalhes de um resgate quase impossível

Há outra diferença entre os dois complexos, acrescenta Laura Neves: “A gruta da Tailândia é num grande maciço calcário tropical. Nós aqui temos grutas mais pequenas porque temos um clima temperado. Chove mas só um bocadinho, faz calor mas só um bocadinho, temos humidade  mas só um bocadinho. Nas zonas tropicais, porque há a época das chuvas onde chove intensamente, há muita humidade e há muita floresta, existem grutas gigantescas para aqueles lados. Lá, quando o calcário começa a dissolver fá-lo com muita força e rapidez. Algumas das maiores entradas do mundo são para aquela zona”. Isso faz com que as grutas tailandesas sejam quase sempre secas durante a maior parte do ano. A gruta do Almonda, no entanto, tem regiões que só podem ser estudadas se os mergulhadores se aventurarem dentro das galerias que estão submersas todo o ano e há milhões de anos.

No fundo da gruta

A 50 metros de profundidade, já livres do arnês que nos enrolava as pernas e nos mantinha ligados às cordas, chegamos finalmente à galeria da Praça de Touros. Chama-se assim porque parece uma arena: é redonda e tem balcões que se assemelham a camarotes por cima das nossas cabeças. Foi aqui que parámos para almoçar. Faz muito eco cá dentro. No topo há uma linha negra que circunda a caverna a toda a volta e a pelo menos cinco metros de altura a partir do solo: é a essa altura que a água da chuva chega quando inunda a caverna durante o inverno, alimentada pelos poços que dão acesso a outra galeria, a de Copacabana: “Toda a água que cai na Serra de Aire e Candeeiros é escoada para dentro deste complexo. A gruta do Almonda começa na base da serra e prossegue por debaixo do Vale do Tejo”, explica-nos a Laura Neves. Isso pode corresponder a mais de 100 hectómetros cúbicos de água por ano, segundo o estudo Sistemas Aquíferos de Portugal Continental. Cinco metros também é a profundidade de uma das galerias que os tailandeses tiveram de atravessar com técnicas de mergulho durante o resgate.

Na galeria Praça de Touros há uma linha escura que mostra onde a água chega durante o inverno. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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A Praça de Touros tem o dobro do tamanho da galeria onde os jovens tailandeses ficaram presos. Lá dentro estão sempre 17ºC: “Todas aquelas galerias estão muito estáveis. Tiveram tempo para evoluir e evoluem sempre no sentido da estabilidade”, explica João Neves. E Laura elabora: “A gruta respira. Se estiver mais calor lá fora do que cá dentro o ar entra, caso contrário o ar sai. Só pela forma como elas respiram já dá para ver se é uma gruta muito grande ou se é uma toca de coelho”. Enquanto nos estivemos a mexer, as camisolas polares davam-nos muito calor — era como passear de camisola de gola alta num belo dia de primavera — mas assim que nos sentámos em cima de uma rocha para matar a fome com sandes e nozes, a nossa temperatura começou imediatamente a baixar.

A Praça de Touros tem o dobro do tamanho da galeria onde os jovens tailandeses ficaram presos. Lá dentro estão sempre 17ºC. Cá em baixo todas as sensações parecem exacerbadas. Uma hora parecem dez minutos. Se fizermos silêncio absoluto e desligarmos todas as luzes, como pedimos que acontecesse, a mente teima em pregar-nos partidas.

A t-shirt que trazemos debaixo das camisolas e do casaco impermeável, que nunca mais vai ser branca porque cedeu à cor da argila, está tão húmida que se cola à nossa pele. Cá em baixo todas as sensações parecem exacerbadas. Uma hora parecem dez minutos. Se fizermos silêncio absoluto e desligarmos todas as luzes, como pedimos que acontecesse, a mente teima em pregar-nos partidas: a galeria parece encolher-se.

Depois a imaginação apodera-se de nós e alimenta a ilusão de estarmos a ver as mesmas coisas que encontrámos pelo caminho, como se o cérebro teimasse em desfazer-se do escuro. E até o som das gotas de água a cair nas pedras adota o significado dos barulhos que normalmente ouvimos à superfície, como o de um cão a latir ou um pé a pisar galhos. É isto que acontece se estivermos sem qualquer luz nem barulho dentro de uma gruta durante dois minutos.

A descida para a Praça de Touros, a maior galeria onde estivemos. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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Na Tailândia, a equipa infantil de futebol teve de passar por isso durante quase mais de duas semanas. Durante grande parte desse tempo não tiveram acesso a comida, mas esse não era um problema muito significativo desde que tivessem água. “O corpo tolera bastante tempo a falta de comida. O nosso organismo tem reservas naturais que vai consumindo quando fica privado de alimentos, que são os tecidos adiposos. O estômago começa a contrair naturalmente para a quantidade de produtos que entram no sistema digestivo, depois o organismo passa a dosear mais os sucos que entram na cadeia digestiva e a seguir começa a consumir a gordura que todos temos guardada no corpo. Em situações mais extremas, o organismo até consome a gordura e depois consome também os músculos”, conta-nos um membro dos fuzileiros formado para reagir em situações extremas como esta.

A água, essa sim, seria sempre a salvação dos rapazes porque “0 nosso corpo é essencialmente composto por água, por isso se não a consumirmos estamos a comprometer as funções dos rins, do pâncreas, do fígado, do cérebro e dos pulmões, por exemplo. Sem comida, o organismo aguenta 20 a 25 dias, desde que tenha água. Caso contrário, a falta de água pode provocar algumas lesões para o organismo que podem culminar numa falência multiorgânica. Interessa sobretudo que eles tenham água e ar de qualidade, isto é, que não tenham níveis de saturação muito altos de dióxido de carbono”, explica o militar. Ali em baixo, a equipa de futebol tinha ainda outra vantagem:  “A água da chuva passa por processos simples de filtragem ao passar pelas rochas calcárias que compõem uma gruta. Ela passa pelas rochas, pelas areias, pelos aluviões e enquanto faz essa passagem acaba por se livrar das impurezas que possa ter, por isso é praticamente seguro dizer que a água que escorre pelas paredes de uma gruta é potável”, descreve o fuzileiro: não beber a água das correntes de água subterrâneas porque não são filtradas e podem estar poluídas; e, para beber a que escorre das paredes, ensopar uma peça de roupa (como a manga de um casaco, por exemplo) e depois torcê-la para soltar a água, de modo a que as impurezas fiquem presas nas fibras da roupa. Foi isso que o grupo fez.

Há ainda outro aspeto que pode ter auxiliado os rapazes enquanto estiveram na gruta entregues à escuridão e à água que escorria das paredes: a meditação. Ekapol Chanthawong, o treinador que acompanhava as doze crianças, tinha estado num templo a praticar para ser monge budista e admitiu que ensinou as técnicas de meditação aos rapazes na esperança que isso lhes ajudasse a conservar energia. Segundo Carlos Céu e Silva, psicólogo especialista em situações de luto e de depressão, “se a pessoa tem uma crença enraizada tende a adquirir uma noção de força que a leva a ultrapassar as contrariedades e as adversidades da vida”: “É como se essa crença funcionasse como uma capa invisível e protetora. A pessoa com fé acaba por criar uma ilusão alternativa que a faz ter a convicção de que poderá estar protegida de certas adversidades, sejam elas naturais ou outras”, explica o psicólogo ao Observador. Em situações de vida ou de morte, como a do grupo de rapazes no interior da gruta, isso traz duas vantagens em termos psicológicos: por um lado, ajuda a acreditar que se vai sobreviver, porque se tem uma proteção suplementar em relação às adversidades; por outro lado, se o destino for fatal, remete esse desfecho para a aceitação de um “apelo divino”. Mas também simboliza outra coisa: “Por aceitarem que parte do seu caminho está nas mãos de uma entidade que não dominam, as pessoas com fé acabam por nunca assumir um papel completamente autónomo da sua realidade“, explica o psicólogo ao Observador.

Tailândia. O budismo ajudou os rapazes a sobreviver na gruta?

Essa crença é justificada pelo próprio budismo, que não é uma religião mas sim “uma filosofia de vida”, explica ao Observador Manuela de Almeida, professora certificada de meditação e yoga e gerente do restaurante “Os Tibetanos”: “Todo o poder que existe está dentro do ser humano, por isso não há castigos divinos porque nós somos responsáveis pelas próprias ações. O potencial que cada pessoa tem está dentro dela própria”, elabora a professora. Quem pratica o budismo vive o momento presente e exercita a “capacidade de ver a situação com mais clareza e ter presença de espírito para encontrar a resposta mais adequada, sem estar dependente de medos.

Manuela de Almeida compara o interior de um ser humano a um sol que habita dentro de nós: “Normalmente regemo-nos pelas emoções que temos à superfície. Estamos demasiado dependentes delas. É como se o nosso sol estivesse encoberto por tempestades, por nuvens que não nos permitem ter acesso direto a ele. O que a meditação ajuda a fazer é acalmar essa camada exterior para perfurar a nossa camada interior e termos conhecimento pleno do que somos, do universo em si, da natureza humana no contexto do universo e do reconhecimento do que somos”, explica. Tudo isso será aumentado porque muitas das práticas budistas estão enraizadas na cultura tailandesa: “Está tudo ancorado na razão. O meu futuro é o meu presente porque aquilo que me acontece só depende das atitudes que tenho. Quem segue o budismo acredita que a responsabilidade das circunstâncias são exclusivamente dela e daquilo que já criou. A escolha é sempre nossa”, explica a professora. O que a meditação, um exercício que os rapazes e o treinador estavam a praticar quando os mergulhadores os encontraram, faz é sossegar quem a pratica e levá-la a olhar com mais clareza para a situação: ao acreditar que o mundo funciona numa perspetiva de ação e reação, os budistas aceitam que, se tiverem uma atitude positiva, vão atrair situações mais positivas”.

Vista para um dos estreitos corredores da gruta do Almonda. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

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O resgate na Tailândia “não tinha nada que saber”

João Neves não vai por aqui. Diz que é por sensações como as que vivemos na pele que não estranha o estado de tranquilidade em que os rapazes tailandeses foram encontrados quando foram detetados por um dos mergulhadores britânicos no local. E não acredita que a resposta esteja apenas nas práticas budistas ou no contexto cultural dos jovens. É apenas uma adaptação do organismo, diz.

“Se alguém for fechado num quarto onde não entra mesmo nenhuma luz, a primeira coisa que lhe acontece é que perde completamente a noção do tempo. Já não há segundos, nem minutos, nem horas. É a completa incógnita. Depois, essa privação sensorial acarreta um reduzir de metabolismo. É como se a pessoa estivesse a dormir. Sem luz eles nem sequer se põem a andar por lá, ficam logo quietos. Com a temperatura amena típica do ambiente tropical, tudo se passa como se a pessoa estivesse a dormir. O metabolismo entra em modo noturno. E é por isso que qualquer um de nós nessas condições aguenta oito dias sem comer”, explica.

Tailândia. Como sobrevivem os 12 rapazes numa gruta a mil metros de profundidade

No caso tailandês, encontrar os rapazes foi um golpe de sorte. Já com os mergulhadores britânicos ao lado da Marinha tailandesa, um deles, John Volanthen, quis melhorar as operações de exploração da gruta e esticar uma linha que servisse de guia ao longo das câmaras. Essa linha começou a ser esticada desde a terceira câmara, onde os mergulhadores deixavam os materiais de trabalho, porque a chuva tinha acalmado nos últimos dois dias e o consultor de tecnologias de informação quis aproveitar a descida do nível da água no interior para montar o fio. Ao fim de dois quilómetros, pouco depois de ter passado Pattaya Beach, John Volanthen percebeu que não tinha mais fio e veio à superfície da câmara para perceber onde é que a podia prender. Foi então que encontrou a equipa completa a olhar para ele, nove dias depois de terem entrado em Tham Luang.

Desde que os jovens foram encontrados até ao primeiro dia de resgate passaram-se seis dias. Os espeleólogos portugueses apontam vários erros às estratégias delineadas nesse período de tempo para resgatar e salvaguardar a integridade das crianças e do treinador apesar do sucesso da operação. João Neves é da opinião de que o resgate podia ter sido feito dois a três dias antes: “A partir de uma determinada altura, dois ou três dias antes do dia em que realmente começaram as operações de resgate, já teria sido possível começar a evacuação da gruta. Mas as autoridades tailandesas não o deixaram fazer. Por dois motivos: primeiro porque isto em termos de publicidade estava a render muito. A Tailândia esteve na boca do mundo. Depois porque eles tinham medo que, se alguma coisa corresse mal, as cabeças das chefias rolassem”. Para ele, o resgate só começou na altura em que começou por causa da morte do mergulhador tailandês: “A Marinha tailandesa acredita piamente que eles é que sabem da coisa. Quiseram assumir a liderança das operações. Mas quiseram mal porque fizeram asneira: enquanto não houve a morte daquele mergulhador tailandês não deixaram os espeleólogos tomar conta das operações”, critica.

"A partir de uma determinada altura, dois ou três dias antes do dia em que realmente começaram as operações de resgate, já teria sido possível começar a evacuação da gruta. Mas as autoridades tailandesas não o deixaram fazer. Por dois motivos: primeiro porque isto em termos de publicidade estava a render muito".
João Neves, espeleólogo

Para João Neves, esse atraso no resgate “não aconteceu por medo e porque a publicidade estava a render”. Mas não só: os espeleólogos insistem que os mergulhadores tailandeses não estavam bem equipados para trabalhar em gruta: “Os mergulhadores da Marinha não sabem mergulhar em gruta. Fiquei muito surpreendido que não tivesse havido mais mortes entre eles. Os equipamentos que eles usavam é aquilo que não se utiliza dentro da gruta. É suicídio. Eles tinham os materiais errados. Quando se faz mergulho em gruta, como não há superfície a que se possa subir para respirar, todo o equipamento tem de ser redundante: não se pode ir para lá com uma garrafa só e com um regulador. Levamos sempre duas garrafas e dois reguladores para o caso de haver avaria num deles. Isso não era o que se via nas imagens”, explica João Neves.

“Desatámos a gritar de alegria”. Um dos mergulhadores da Tailândia fala ao Observador

Nem sequer o facto de o resgate implicar ensinar as crianças a fazer mergulho torna as operações mais notáveis, na perspetiva de João Neves. Se Pedro Lage, instrutor especializado em mergulho em grutas e um dos únicos 20 em todo o mundo a ter visitado o navio naufragado Britannic acreditava que “seria um milagre conseguir ensinar os 13 a mergulhar o suficiente para saírem todos juntos”, João Neves acha que esse aspeto “é irrelevante”: “Não importa se sabiam nadar ou não. Eles com aquela máscara não se afogam nunca. Podem estrebuchar, pontapear, fazer o que quiserem: desde que a máscara não lhes saia da cara eles sobrevivem sempre”. Para Laura Neves, esse receio de pôr as crianças a mergulhar é infundado: “Se calhar o comandante daquilo tudo não sabia mergulhar, se calhar nem em mar, por isso devia achar que fazê-lo com crianças era muito perigoso”.

Além disso, o espeleólogo afirma que a estratégia de resgate utilizada pela equipa, que envolvia ensinar os rapazes a mergulhar nas zonas inundadas da gruta, nada tinham de revolucionário: “Esta prática de tirar pessoas de dentro de uma gruta inundada já tem mais de trinta anos. Não foi nada original, nem sequer foi nem de perto nem de longe a operação de resgate mais complicada que vimos em gruta. Já houve pessoas que ficaram dentro de grutas mais de três semanas porque tiveram de esperar que o nível da água baixasse ou que alguém lhes fosse buscar”, sublinha Laura Neves.

"Esta prática de tirar pessoas de dentro de uma gruta inundada já tem mais de trinta anos. Não foi nada original, nem sequer foi nem de perto nem de longe a operação de resgate mais complicada que vimos em gruta. Já houve pessoas que ficaram dentro de grutas mais de três semanas porque tiveram de esperar que o nível da água baixasse ou que alguém lhes fosse buscar".
Laura Neves, espeleóloga

Por esta altura estávamos a 75 metros de profundidade. Foi então que encontrámos uma grande duna gigantesca que dá acesso à galeria lamacenta que só inunda no verão e que denuncia a força da água: larga um monte de areias, cobre, pirite e, desde há uns meses, carvão dos incêndios do verão passado. Pedro Pinto aconselha-nos a não percorrer a direito aquela duna tão inclinada e alta, mas antes em ziguezague porque é assim que se faz na neve dos Himalaias para facilitar o caminho de regresso. Se a descer a caminhada parecia ficar feita em meia dúzia de passos, como se estivéssemos em território lunar, a subir a tarefa é mais dura: a lama que se acumulou nas galochas começou a solidificar e já nos pesa nos pés. A ideia de descer em ziguezagues foi sensata, mas ainda assim chegamos ao topo da galeria de tal maneira ofegantes que o ar que inspiramos pela boca nos seca a garganta. A sede era tanta que até brindámos com as garrafas de plástico que trazíamos às costas.

Dentro da galeria lamacenta que fica inundada durante o inverno. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

Manuel Pinto Soares/FPE

São experiências que os rapazes na Tailândia não tiveram. A gruta de Tham Luang é menos intrincada e nunca ultrapassa os 85 metros de profundidade, embora esteja a 800 do cume da montanha. Mas também eles tiveram de percorrer quatro quilómetros no interior de Tham Luang: o local onde foram encontrados sugere que os rapazes percorreram mais três quilómetros além dos mil metros iniciais, preparados para receber turistas. O grupo foi encontrado a uns metros da galeria chamada Pattaya Beach a uma profundidade de 800 metros a contar do cume da montanha, mas que estaria razoavelmente ao nível do solo. Entre eles e a entrada da gruta havia dois quilómetros de corredores e galerias completamente cobertos de água, alguns dos quais tinham cinco metros de profundidade. Essa água era de tal maneira turva que não deixaria qualquer margem de visão aos jovens.

Descida da grande duna de areia, pirite, cobre e carvão dos incêndios. É possível ver a descida em ziguezague para facilitar a subida. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

Manuel Pinto Soares/FPE

Como seria feito o resgate se acontecesse em Portugal?

Está tudo previsto nos livros da escola francesa há longas décadas e estes espeleólogos garantem que era a que seguiriam se tivessem de resgatar alguém da Gruta do Almonda nas mesmas condições em que os rapazes estavam no interior de Tham Luang: “A escola de espeleosocorro francesa é de longe a mais experiente, tanto que os seus princípios estão previstos na lei.

Lá acontece o seguinte: em caso de acidente, a Federação de Espeleologia é alertada. A Gendarmerie colabora, sim, mas quem manda é o chefe do espeleosocorro francês que é designado para aquele resgate. Primeiro, os espeleólogos descem à gruta e começam a equipar o caminho em função das condições da vítima. Com eles vai também um médico e um enfermeiro de espeleosocorro para assistirem imediatamente a vítima e informarem sobre o seu estado de saúde. Enquanto isso acontece, já temos outras equipas de explosivos a abrir as passagens mais estreitas. É preciso por corda no caminho todo para a maca vir ao longo dela em roldanas, por isso há equipas divididas ao longo do caminho para montar as cordas e estabelecer linhas de comunicação”, descreve Laura Neves.

João diz que fazer mergulho seria, ainda assim, “super complicado” em termos de logística: “Tem que entrar um determinado número de mergulhadores para passarem a primeira zona inundada. Depois parte desses mergulhadores deixam o equipamento ali e ajudam a transportar o equipamento dos que vão mergulhar o sifão seguinte. Ou seja, vamos ter, por exemplo, seis mergulhadores no primeiro sifão, quatro mergulhadores no seguinte e um desses quatro vai transportar o equipamento de dois que vão mergulhar no sifão a seguir”.

Para o fazer na Gruta do Almonda seria preciso o envolvimento de pelo menos 60 ou 70 pessoas: “Não diria que um resgate dentro da Gruta do Almonda nestas condições teria a mesma escala de grandeza que em Tham Luang, mas seria muito aproximado. A partir do momento em que eles conseguiram baixar suficientemente o nível da água, o resgate na Tailândia não tinha nada que saber. Foi muito, muitíssimo empolado. Os garotos podiam ter saído cinco ou quase seis dias antes do que saíram. Eu tinha-os tirado pelo menos seis dias antes, sem dúvida”.

"Não diria que um resgate dentro da Gruta do Almonda nestas condições teria a mesma escala de grandeza que em Tham Luang, mas seria muito aproximado. A partir do momento em que eles conseguiram baixar suficientemente o nível da água, o resgate na Tailândia não tinha nada que saber. Foi muito empolado. Eu tinha-os tirado pelo menos seis dias antes, sem dúvida".
João Neves, espeleólogo

Mas há uma coisa em que os espeleólogos concordam no plano delineado para resgatar os rapazes: abrir um buraco artificial em Tham Luang desde o cimo da montanha, a 800 metros de altura, até à câmara onde a equipa estava escondida não seria uma boa opção. Laura Neves explica que “para além de não haver materiais que abrissem 60 centímetros em calcário”, o necessário para fazer passar um corpo dentro de uma cápsula, essa estratégia “ia levar muito tempo”. Isso foi, aliás, o motivo que levou os especialistas tailandeses a abandonar essa ideia desde muito cedo, como recordou ao Observador o espeleólogo Francisco Rasteiro, presidente do Núcleo de Espeleologia da Costa Azul: “Fazer um furo é impensável porque o mais provável é que a gruta colapsasse”, afirma.

Numa galeria mais pequena próxima à duna que subimos. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

Manuel Pinto Soares/FPE

Sérgio Barbosa, vice-presidente da Federação de Espeleologia, concorda: “Escavar uma abertura poderia provocar desmoronamentos que esmagassem a câmara onde o grupo estava ou poderia abrir fendas por onde passasse água para dentro da câmara, inundando-a”. Além disso, furar o chão poderia demorar demasiado tempo: quando o grupo de 24 mineiros ficou preso no Chile, as operações de resgate demoraram cerca de 200 dias — entre seis e sete meses.

Seria assim em Tham Luang e também seria assim se o mesmo acontecesse agora na Gruta do Almonda: era preciso um mapa topográfico muito bom e exato para que essa estratégia pudesse ser adotada. E cá isso também não seria possível, diz Laura Neves: “Quando se está a fazer topografia há sempre um erro inerente. Tiramos a medida com fita métrica, por isso basta esticar um pouco mais para lá ou mais para cá e obtém-se uma medida com mais ou menos uns centímetros do que a realidade. Esta variação acumulada ao longo de vários quilómetros pode condicionar o desenho da gruta”. É o que pensa também Sérgio Barbosa, vice-presidente da Federação de Espeleologia: “É preciso ter um mapa topográfico muito bom da região, como havia quando os mineiros ficaram presos no Chile. O resto depende mais da rocha que está por baixo”.

Fazer um buraco artificial não seria opção, mas esperar — como chegou a estar em cima da mesa na Tailândia — também não, sublinha João Neves. Primeiro por causa da qualidade do ar: “Os garotos estiveram lá 17 dias. Eram treze. Enquanto eles lá estiveram sozinhos e às escuras não houve falta de oxigénio. Só começaram a acusar falta de oxigénio quando chegaram os socorristas e saturaram o ar. O principal problema ali era o dióxido de carbono. Mesmo que se leve oxigénio para dentro da gruta para repor os níveis, não estamos a remover dióxido de carbono, que é extremamente venenoso. Se a atmosfera dentro do sítio onde eles estavam não se renovava suficientemente rápido, era inviável eles ficarem lá quatro meses”.

Além disso, os níveis de água continuariam a aumentar e podiam comprometer a galeria onde os rapazes estavam: “A opção de esperar não era a mais segura porque ninguém sabia ao certo se o sítio onde eles estavam também não inundaria. Aquela não era uma galeria fóssil, portanto a água podia facilmente entrar”. A chuva não daria tréguas: “Com os volumes de água que caíam cá fora, aquilo ficava com uma corrente impossível de ser controlada, o que implicava que os mergulhadores nem sequer conseguiriam reabastecer o grupo com comida e outros bens durante longos dias, senão semanas. E no caso de alguém ficar seriamente doente, nessas condições também não poderia ser levado para fora da gruta. Isso nunca seria opção. Nem poderia ser a mais segura. Não havia outra forma de retirar os miúdos senão aquela que foi utilizada”.

Espeleólogos não foram ouvidos para delinear um plano de resgate

Se todas estas decisões tivessem de ser tomadas em Portugal, quem controlaria as rédeas da situação? A resposta é difícil de encontrar, garantem os espeleólogos enquanto recuperamos o fôlego após a longa caminhada pela galeria da duna. Embora as grutas sejam lugares públicos, elas estão perdidas “num vazio legal” e “não estão regulamentadas”, conta ao Observador o espeleólogo Pedro Pinto: “A sociedade civil organizou-se. Fizemos o nosso trabalho de casa e criámos todos os esquemas. Andamos há mais de dez anos a falar com instituições oficiais para haver um reconhecimento dos espeleólogos para esta situação estar regulamentada e até agora não se resolveu nada. O Estado continua parado e ainda não tomou decisão nenhuma. Enquanto isso durar temos de fazer tudo com fundos próprios”.

Os espeleólogos explicam como seria um resgate se tivesse de acontecer na gruta do Almonda durante uma pausa após subir a duna. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

Manuel Pinto Soares/FPE

Os primeiros esforços dos espeleólogos para estabelecerem regras de operação como os que existem em França são dos finais dos anos 80 e início dos anos 90, recorda Laura Neves: ” Nós éramos um grupo de quatro pessoas que almoçaram juntas todos os dias durante um ano para convencer os outros clubes de espeleólogos a legalizarem-se porque todos eram informais. Eu tratei da papelada para ir ao notário criar a Federação. Fizemos estatutos, uma escritura, um regulamento durante a primeira assembleia. Foi tudo muito democrático”.

Embora as grutas sejam lugares públicos, elas estão perdidas "num vazio legal" e "não estão regulamentadas", conta Pedro Pinto: "A sociedade civil organizou-se Andamos há mais de dez anos a falar com instituições oficiais para haver um reconhecimento dos espeleólogos para esta situação estar regulamentada. O Estado continua parado. Temos de fazer tudo com fundos próprios".
Pedro Pinto, espeleólogo

Pouco depois, deu-se aquele que podia ter sido o primeiro passo para articular os espeleólogos com as autoridades: “Em 1992 foi dada a primeira formação a três corporações de bombeiros aqui da zona da Serra de Aire e Candeeiros numa articulação de projetos de espeleosocorro em Portugal. E quem convidou a Federação a fazer essa formação foi precisamente o Serviço Nacional de Bombeiros na altura. Mas isso morreu: dei a formação a 18 bombeiros e depois ficou tudo em águas de bacalhau. Teria sido o primeiro passo desse protocolo operacional”, recorda Manuel Soares, um dos formadores à época. João Neves, que chegou a ser presidente dessa mesma Federação, garante que os bombeiros “estavam motivados” e que gostavam da espeleologia: “O procedimento na altura era treinar até três corporações na área do maciço de calcário. Assim que houvesse um alerta de acidente em gruta, saíam as equipas de espeleosocorro dos bombeiros para fazer a primeira intervenção para avaliação. Isso dava tempo para que os espeleólogos chegassem e tomassem conta da ocorrência. Esses fulanos estavam altamente motivados e gostavam dos buracos”.

A Praça de Touros tem um grande buraco onde ficam dois poços. É de lá que vem a água da chuva no inverno. Créditos: Manuel Pinto Soares/FPE

Manuel Pinto Soares/FPE

Depois desse passo, mais nenhum. Para Pedro Pinto, que se dedica ao espeleosocorro mas é informático de profissão, a culpa é da “falta de vontade política”: “Podemos pensar nas equipas mais profissionais e experientes, mas a primeira fase para a questão dos acidentes é a prevenção. O país era uma amálgama de clubes de espeleologia, mas tiveram de se juntar, criar uma federação, criar normas, um sistema de credenciação, uma comissão de ensino. Todos os espeleólogos credenciados estão listados dentro da Federação, mas isso não acontece de mais forma nenhuma senão com o tempo livre de cada um de nós”. E acrescenta:  “Há uma parte que é o Estado que tem de fazer: criar normas e fazer um reconhecimento de quem credencia os espeleólogos. Pensem nisto: nós entendemos as grutas como sendo semelhantes às estradas. São de domínio público, são de toda a gente, mas só anda nelas quem tem carta. Aqui, por maioria de razão, isso também tem de acontecer mas neste momento não existe em Portugal qualquer reconhecimento em Portugal do trabalho da Federação Portuguesa, nomeadamente na formação de espeleólogos”.

Os quatro espeleólogos que estão connosco dizem que quem deve procurar a Federação para estabelecer esses protocolos é a Proteção Civil: “Nós andamos a trabalhar para ter equipas que tenham o treino e a prática para fazer espeleosocorro. Falta estabelecer um protocolo de atuação entre os espeleólogos, que são quem tem o conhecimento das grutas, a prática técnica e os contactos internacionais, que se viu na Tailândia serem essenciais. Faria todo o sentido que a Proteção Civil olhasse para este assunto com mais seriedade”.

Em 1992 foi dada a primeira formação a três corporações de bombeiros da zona da Serra de Aire e Candeeiros numa articulação de projetos de espeleosocorro em Portugal. Qem convidou a Federação a fazer essa formação foi o Serviço Nacional de Bombeiros na altura. Foram formados 18 bombeiros e depois "ficou tudo em águas de bacalhau". 

Pedro Pinto sabe porque é que a Proteção Civil “não toma decisões” sobre os planos de atuação que seriam postos em prática caso outro resgate como o da Tailândia tivesse de existir numa gruta como a do Almonda: “Não têm acontecido acidentes. Temos um registo de acidentes baixíssimos, mas o nível de segurança fomos nós que o criámos. Basta que uma equipa de futebol se queria aventurar cá em baixo para isto se tornar urgente”. E todos os espeleólogos acreditam que é uma questão de tempo até que isso seja necessário: ali, na enorme gruta do Almonda, dentro de uma mina ou até dentro de um túnel de barragem: ” Há muitas outras situações onde, eventualmente num contexto de socorro e resgate, os espeleólogos poderiam intervir”.

Está na hora de subir à superfície. Virando costas à galeria onde parámos para descansar, ainda voltamos à Praça de Touros para recolher as malas que abandonámos e vestir uma vez que mais o equipamento para a viagem de regresso. O relógio acusa que são sete da tarde, mas isso é indiferente a esta profundidade. Lá em cima, no entanto, o sol ainda brilha.  O peso do corpo está contra nós, mas a fome dá-nos motivação para voltar ao cimo da terra. Foram sete horas de uma aventura que testemunhou os dezassete dias de angústia de um grupo de rapazes que sobreviveu às exigências de uma gruta contra todas as probabilidades.

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