Não estavam a planear nenhum ataque terrorista em Portugal. A diretora da Unidade Nacional Contraterrorismo (UNCT) da Polícia Judiciária é perentória nesta garantia. “Nada disso. Nunca detetámos nenhuma atividade ilícita desta natureza em Portugal”, assegura em declarações ao Observador. Chegaram ao abrigo de um programa de recolocação de refugiados e a um deles foi negado esse estatuto. Então, o que faziam cá, e há quatro anos, dois irmãos iraquianos com ligações ao Estado Islâmico?
De 32 e 34 anos, viviam numa casa num concelho nos arredores de capital, embora já se tivessem “movimentado por alguns sítios” da Área Metropolitana de Lisboa. Com eles não morava mais nenhum familiar: viviam só os dois. Iam trabalhando aqui e ali, em “atividades esporádicas” e “não muito definitivas”. Restaurantes e call centers foram algumas delas. Não procuravam esconder-se. No fundo, “tinham uma vida normal”, resume Manuela dos Santos, a responsável pela Unidade Nacional Contraterrorismo da PJ.
Só que essa “vida normal” era vigiada há quatro anos pela PJ. E foi graças a essa monitorização que os investigadores descobriram recentemente que estes dois irmãos planeavam sair de Portugal. “A decisão foi avançar para eles porque, ultimamente, observámos algumas movimentações de que podiam ausentar-se de território nacional”, explica ao Observador Manuela dos Santos. Essa eventual saída de Portugal precipitou as detenções, mas a verdade é que a PJ já tencionava detê-los. “Essas movimentações fizeram-nos querer avançar mais cedo”, remata a diretora da UNCT.
Dois iraquianos com ligações ao Daesh detidos em Lisboa ficam em prisão preventiva
Os irmãos foram detidos na quarta-feira, na casa onde ambos viviam, numa operação que contou até com a participação da magistrada do Ministério Público responsável pelo processo. “A Unidade Nacional Contraterrorismo da Polícia Judiciária deteve, no dia de ontem, dois cidadãos estrangeiros pela indiciada prática de crimes de adesão e apoio a organização terrorista internacional, de terrorismo internacional, e contra a humanidade”, lê-se no comunicado da PJ emitido um dia depois, esta quinta-feira.
Mas a detenção foi o culminar de uma investigação que começou em Portugal em 2017. Esse inquérito foi aberto meses depois de os dois terem chegado, no âmbito do programa de reinstalação da União Europeia, infiltrados num grupo de requerentes de proteção humanitária.
Irmãos não tinham “lugar de relevo” nas estruturas do Daesh. São responsáveis por alguns “espancamentos” no Iraque
Vindos do Iraque, via Grécia, os dois irmãos entraram em Portugal em 2017, no âmbito do programa da União Europeia para a recolocação de refugiados. “Eles integraram essas bolsas [de requerentes de proteção humanitária] e vieram nesses movimentos”, conta ao Observador Manuela dos Santos. À data, “não havia suspeita” de ligações ao Daesh. “Não havia informação nenhuma que permitisse fazer algum tipo de avaliação”, garante a diretora da UNCT ao Observador. Por isso, foram acolhidos por Portugal.
Mas, meses depois de chegarem, ainda nesse ano, a PJ recebeu informações vindas de pessoas que tinham tido algum tipo de contacto com os suspeitos. Essas informações “apontava para a eventual pertença destes indivíduos ao Estado Islâmico, no Iraque”, diz a responsável da Judiciária ao Observador. O jornal Expresso adianta que houve denúncias ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que colaborou na investigação, feitas por iraquianos de Mossul — alguns deles também refugiados — e de vítimas acolhidas em Portugal.
A PJ começou a investigar e descobriu que os dois irmãos “integraram as estruturas do Estado Islâmico em 2015”, nomeadamente em Mossul. Não há, para já, indícios de que tivessem algum “lugar de relevo na estrutura do Daesh”: “Eram operacionais”. No ano seguinte, em 2016, “terão saído de lá”. “E em 2017 aparecem em Portugal”, resume Manuela dos Santos. “As provas recolhidas indiciam que estes dois indivíduos assumiram distintas posições na estrutura do ISIS/Daesh”, adiantava já o comunicado da PJ.
A investigação já identificou algumas ações violentas concretas dos suspeitos, características deste grupo terrorista. Por exemplo, espancamentos que foram levados a cabo pelos dois irmãos no Iraque. No entanto, o principal foco da investigação é a ligação de ambos ao Daesh. “Temos ações concretas [de agressões] já identificadas, mas não são essas que relevam para este fim. Só o facto de aderirem à organização terrorista já é sinalizado nos termos da nossa lei contra terrorista”, explica ao Observador a diretora da UNCT.
Portugal negou estatuto de refugiado a um dos irmãos. Lei prevê recusa caso sejam “perigo para a segurança interna”
Quatro anos passaram desde que os irmãos foram sinalizados em 2017, mas só quatro anos depois foram detidos — uma detenção que estavam prevista, mas que foi precipitada pelo facto de se suspeitar que os suspeitos fossem sair do país. Porquê a demora? “Precisavámos da confirmação das autoridades iraquianas sobre algumas coisas”, começa por explicar Manuela dos Santos, lembrando que “isto aconteceu numa altura o Iraque era um país desmembrado”. No entanto, uma maior aproximação às autoridades iraquianas nos últimos tempos permitiu à PJ “reunir alguma prova” para “consolidar as suspeitas de que integraram as estruturas do Estado Islâmico”.
Durante esse período, os dois irmãos foram sendo vigiados pelas autoridades portuguesas. Enquanto isso, o processo de pedido de asilo foi decorrendo, mas em relação a um deles o estatuto de refugiado nunca foi atribuído. Ao Observador, a PJ não revela porquê, mas garante que a recusa não está relacionada com a investigação, nem com eventual atividade criminosa levada a cabo pelos suspeitos, quer em Portugal, quer no Iraque ou noutros país.
As razões podem ser várias. A Lei do Asilo prevê que a proteção internacional possa ser “revogada” quando existam suspeitas da prática de “crimes contra a paz, crimes de guerra ou crimes contra a humanidade” e “crimes dolosos de direito comum puníveis com pena de prisão superior a três anos, fora do território nacional, antes de ter sido admitido como refugiado”. Quando se descubra que o requerente “tenha deturpado ou omitido factos, incluindo a utilização de documentos falsos, decisivos para beneficiar do direito de asilo ou de proteção subsidiária”. Ou ainda caso represente “perigo para a segurança interna”.
Em declarações à Rádio Observador, José Manuel Anes, especialista em criminalidade organizada e fundador do Observatório de Segurança, defende que os portugueses devem “continuar a ser solidários e [estar] de braços abertos com os migrantes e, sobretudo, os refugiados”, mas manter a “vigilância”. “Temos de estar confiantes na competência dos nossos serviços de informações e das nossas polícias contraterroristas. Portanto, acho que, particularmente em Portugal, a situação é melhor. Não há probabilidade zero [de atentados terroristas], mas Portugal, face a outros países da Europa, está muito melhor”, defendeu o especialista.
E se o Iraque pedir a extradição? É provável que Portugal recuse
Sendo este um inquérito que nasce da cooperação judiciária internacional com o Iraque e que, acima de tudo, se baseia em alegadas práticas criminais que terão ocorrido em território iraquiano, e não existindo qualquer suspeita de crimes de adesão e apoio a organização terrorista que tenham ocorrido em território nacional, coloca-se a questão de saber se Portugal tem jurisdição penal para perseguir criminalmente os dois suspeitos.
No entender da investigação, a resposta é claramente positiva. Portugal subscreveu as convenções das Nações Unidas que autorizam a Justiça nacional a investigar, acusar, julgar e condenar qualquer cidadão que tenha praticado determinado conjunto de crimes que tenham sido idealizados e praticados em qualquer outro país. Crimes contra a humanidade, adesão e apoio a organização terrorista internacional ou corrupção no comércio internacional são alguns dos ilícitos criminais que a jurisdição portuguesa admite como tendo competência para punir — independentemente de terem ocorrido em território nacional ou estrangeiro. Representam uma espécie de crimes internacionais que, como tal, podem ser punidos por Portugal.
Aliás, a cooperação judiciária requerida a Portugal partiu de uma equipa especial das Nações Unidas, conhecida pela sigla UNITAD — United Nations Investigative Team to Promote Accountability for Crimes Committed by Da’esh/ISIL, o que pode ser traduzido para Equipa Especial de Investigação das Nações Unidas para os Crimes Praticados pelo Estado Islâmico/Da’esh. Trata-se de uma equipa criada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2017, a pedido do Governo iraquiano, que tem um objetivo central: ajudar a Justiça iraquiana a investigar crimes de guerra, crimes contra a humanidade e de genocídio praticados pelo Estado Islâmico/Da’esh.
Esta equipa é liderada por Karim Khan, advogado britânico especialista em Direito Internacional que foi nomeado para o cargo pelo secretário-geral António Guterres e que começou a trabalhar em 2018.
Outra questão que se coloca prende-se com um quase inevitável pedido de extradição dos suspeitos agora detidos por parte do Iraque, onde também corre uma investigação contra os dois irmãos, que são também alvo de mandados de detenção. E aqui a questão, apesar de complexa, tem uma resposta igualmente simples: para que o Governo português possa autorizar a extradição, o Iraque terá de assumir que nunca sancionará os mesmos com penas que não estão previstas no Código Penal português. Entre essas sanções estão, obviamente, a pena de morte ou a prisão perpétua — medidas que foram abolidas da lei nacional há largos anos. Ou até mesmo penas de prisão claramente superiores ao limite máximo previsto pela lei penal portuguesa.
Ou seja, apesar de os crimes que estão a ser investigados nos autos terem alegadamente ocorrido no Iraque, e apesar dos suspeitos serem cidadãos iraquianos, Portugal tem por regra só aceitar pedidos de extradição no caso do Estado requerente assumir o compromisso de que aplicará penas consentâneas com a lei penal portuguesa.