Tentar mudar a fralda ao mais pequeno, não pára de espernear, agarrar-lhe as pernas com mais força, começa a chorar, a irmã faz birra, não se veste, insistir para que se despache, diz que não gosta mais de ti, o mais pequeno está a atirar bocados da comida ao chão, o dia ainda nem começou. Estamos fartos disto tudo.
O último livro do sueco Jonas Hassen Khemiri acaba de ser editado em Portugal e fala das tensões de uma estrutura familiar composta por um pai que é também avô, que tem uma filha e um filho que é também pai – o miúdo de fraldas e uma miúda de quatro anos. Uma segunda filha aparecerá a meio para ensombrar a história, assim como a mãe que é também avó e diz não ter mais de os aturar.
Vencedor do prémio Médicis Étranger e finalista do National Book Award, A Cláusula Familiar é um livro que acompanha dez dias na vida destas pessoas. Denso, contido, um relato do quotidiano cujas angústias e alegrias são prensadas até à última gota, Hassen Khemiri falou com o Observador sobre o seu sexto romance, por videochamada, a partir da Biblioteca Pública de Nova Iorque, de onde se destacava a lombada de um livro a dizer “Warhol”, às riscas laranja, verde e amarelo.
Porque é que as personagens não têm nomes?
Normalmente, quando escrevo, dispendo muito tempo a escrever frases que reconheço e, de repente, aparece uma frase que se torna num mistério para mim. Uma frase que me faz querer atirar para o lixo todas as frases anteriores. A frase com o mistério é a frase que começa o livro. É como tenho escrito os meus romances até agora. Com este livro, tinha um projeto maior no qual estava a trabalhar e, por frustração, caiu – sentia que aquele livro não tinha o tipo certo de vida. Abri um novo documento e escrevi a frase que é a primeira frase deste livro: “Um avô que é pai volta ao país que nunca deixou.”
Pode elaborar sobre o mistério da frase?
Essa frase criou um mistério em mim porque é muito difícil regressar a um país que nunca se deixou. Fiquei curioso com este pai, que era tanto pai como avô. E tinha também já escritas umas 20 páginas acerca desta família. A resposta honesta e simples é que estas personagens continuavam a recusar nomes. Elas continuavam a dizer que não eram apenas os seus nomes. Podemos perguntar: o que é um nome? É um ponto de referência que nos capta? Um nome pode tornar-se num invólucro? Coloca fronteiras que decidem quem somos e quem não somos? Este livro é muito acerca do retrato íntimo de uma família cujas personagens tentam mudar constantemente. A pergunta é: é possível mudar, dentro da estrutura familiar? Se sim, como é que se faz? A família é um sistema de co-dependência e, no momento em que alguém muda – como o filho que quer mudar a sua relação com o pai, o pai que quer mudar a sua com os seus filhos, a mãe que é irmã e quer trazer de volta o filho –, todos os outros têm de adaptar-se. De certa forma, seguimos esta família perfeitamente normal, deveras caótica, durante dez dias, em que estão desesperadamente a tentar mudar enquanto se mantêm ligados ao amor que têm uns pelos outros. Se não se amassem, as coisas seriam mais fáceis.
O amor é um sentimento, irracional e imprevisível. Qual é o papel do amor, na estrutura familiar?
Neste livro, acho que as personagens falam linguagens diferentes de amor. Algumas pessoas desta família estão convencidas de que mostrar amor é gastar dinheiro, outras estão convencidas de que mostrar amor é dispender tempo – e essas são duas maneiras completamente diferentes de ver uma relação. Por exemplo, o filho que é também pai luta imenso para ser pai: o seu modo de mostrar amor aos filhos é estar 100% presente na vida deles, porque ele foi abandonado pelo seu pai. Mas o que acontece se acharmos que 100% de presença é a definição de amor? E, de todas as vezes que sentirmos aborrecimento, quisermos ir embora, todas essas emoções diferentes, que são parte da paternidade, transformam-se em culpa. O que é interessante, porque de repente há um confronto entre o ideal de quem devias ser e o que na realidade sentes. Uma das coisas que sabia que queria neste livro era captar o quão complicado é fazer parte de um sistema familiar, se tivermos estes ideais fortes acerca de quem deveríamos ser. O filho que é um pai tem imenso medo de não ser perfeito, tem imenso medo das suas próprias emoções. O que acontece quando tenta bloquear certas emoções? Ele clama ser o melhor pai do mundo, e o mais presente, mas na verdade, uma vez que não é honesto com as suas emoções, é ele quem no livro acaba por explodir.
Não acaba bem.
Quando estava a escrever o livro, uma das tentações enquanto escritor era querer que tudo acabasse bem. Na verdade, no final dos dez dias, não houve muito que à superfície tenha acontecido. Muita da ficção manteve-se, mas o que de facto aconteceu, falando em amor, foi que as três personagens principais – filha, filho e pai – compreenderam-se uns aos outros um pouco melhor, talvez uns 2% melhor. Não que não irão continuar a discutir, mas compreender-se-ão um pouco melhor. Acho que reside aí a semente para uma mudança maior no futuro.
Existe o confronto entre o ideal e o real, mas existe também aquilo que é do foro da personalidade e o que é da ordem do chamado fosso geracional e contexto.
Estou a trabalhar no meu sétimo livro e, desde o primeiro romance, tenho escrevido sobre este fascínio pela forma como as estruturas familiares funcionam. Especialmente o que acontece quando alguém dessa estrutura desaparece de repente. E acho que tem razão: é uma questão de gerações, têm vidas muito diferentes – os adultos, as crianças e o pai que é também avô têm realidades económicas muito diferentes. O pai que é também avô acha que sacrificou tudo pelos filhos, o que significa que lhe estarão sempre em dívida. Quando se escreve acerca de algo simples como: quem vai pagar um café a quem, num dia normal? É muito interessante. São três ou quatro dólares, não interessa. Mas, numa família, de repente, essa escolha… o pai e o filho têm constantemente essa discussão. O filho diz ao pai que deve ser ele a pagar o café mas, na verdade, o que ele quer é que o pai cuide dele. A tradução de “nem foste capaz de me pagar o café” é “porque é que não és capaz de me amar”. Para o pai é o inverso: dar a possibilidade ao filho de lhe oferecer o café é um sinal de “agora és um adulto”, “tornaste-te adulto e tens o direito de tomar conta de mim”. Acho muito interessante escrever sobre famílias porque essas pequenas coisas nunca são pequenas coisas, ficam carregadas com o peso da história. Quando estava a escrever A Cláusula Familiar, sabia que, a dado ponto, alguma coisa iria surgir do passado que as personagens principais tinham tentado esquecer. O que acontece é que o pai deixou a filha que teve antes destes dois filhos e essa filha morreu. O pai lida com a culpa, “talvez o meu desaparecimento tenha causado a morte daquela filha”. Enquanto escrevia, sabia que, a dada altura, aquela filha regressaria. E regressa, a meio do livro. Não tem um corpo, mas regressa. Quase que rasga o livro com a sua raiva por ter sido deixada para trás. Apesar de ser um fantasma, é ela a única que parece preocupar-se com o pai. Esses são os momentos em que mais gosto de ser escritor.
Se a filha que morreu é quem realmente toma conta do pai, o que faz, então, o filho?
É uma pergunta interessante: podemos tomar conta de alguém que está constantemente à espera de algo em troca? Não sei se o elemento transacional da relação é assim tão forte. Não tenho a certeza de que possamos chamar a isso de “tomar conta”. Tanto na relação do filho com o pai como da [outra] filha com o pai, há esta grande demanda: como é que tomamos realmente conta uns dos outros? Se o pai tivesse sido um pai presente, teria sido muito mais fácil para os miúdos agora adultos tomarem conta dele.
Mesmo que seja reconhecimento o que o filho espera?
Pergunto-me se seria alguma vez suficiente. Não tenho a certeza disso. Quando comecei a escrever o livro, tinha mais empatia para com o filho. Reconheço muitas destas personagens na minha própria família. Sou mais parecido com o filho. Enquanto escrevia, comecei, quase involuntariamente, a sentir empatia pelo pai. Um dos temas do romance é: aonde pertencemos? Onde nos sentimos em casa? Estou a fazer esta entrevista a partir de Nova Iorque, na Biblioteca Pública. Estou a usufruir de uma bolsa atribuída pelo Cullman Center. Estou sentado numa sala da Biblioteca Pública, na Rua 42 com a 5ª Avenida, e sinto-me tão em casa neste sítio… Adoro este edifício, adoro trabalhar aqui. Que sentimento é este? No livro: “voltar a um país que nunca deixou”. O pai está continuamente à procura, está continuamente em busca de formas de transformar os sítios onde está para se sentir mais em casa. Ele tem truques para que as pessoas não olhem para ele enquanto estranho. Ele volta a Estocolmo, uma cidade na qual viveu muitos anos, e a primeira coisa que faz é ir a um posto de informação turística arranjar uma sacola. Assim, as pessoas veem-no como turista – não é um estranho, é um visitante. Este tipo de estratégias que temos, que transformam a realidade à nossa volta, está sempre a surgir nos meus livros.
O reconhecimento que o filho espera do pai enquanto filho espera tê-lo também no papel de pai, quando, por exemplo, brinca com a filha e olha à volta para ver quem repara. Está constantemente a querer ser diferente do pai, mas sê-lo-á, verdadeiramente?
Esta é uma questão muito interessante. Quando escrevi este livro, vivia em Estocolmo. Sentava-me na cozinha com alguns amigos e todos partilhávamos as experiências de ter um ou dois pais que eram ausentes, que não estavam presentes. Todos nós tínhamos filhos pequenos e todos nos apercebemos de que tínhamos listas mentais longas das coisas que os nossos pais nos faziam e nós não queríamos fazer agora também. O que achámos fascinante, ao falar disto, foi que, apesar de tentarmos fazer o oposto do que fizeram os nossos pais, estávamos ainda na sombra deles. Se estás constantemente a reagir contra algo, serás realmente livre? Não me parece que sejas livre, estás apenas num estado reativo contínuo. Uma das coisas que o filho está a tentar fazer é libertar-se. Não corre muito bem. Mas ele tem a ambição de ser libertar: ele não quer ser como o pai. Dei um longo passeio com uma amiga na Suécia, quando tinha acabado de ser pai. E disse-lhe: “que tipo de pai quero ser?” E lembro-me de ela me dizer: “Jonas, consegues imaginar algo pior do que ter um pai perfeito?” Cresceres com alguém que tem sempre tudo controlado, que nunca tem de pedir desculpa, vai levar-te a horas incontáveis de terapia. Muito de se ser pai é também fazer asneira, é dizer “desculpa”.
No livro, fala também muito do preconceito com que os suecos tratam os imigrantes. A sociedade sueca é muito preconceituosa? Está a ficar pior?
Não sei. Se fosse político, poderia responder a isso com números e curvas. Uma das belezas de escrever romances é que podermos apontar para as coisas de uma forma mais subtil. Escrevi vários textos políticos, onde falei sobre a Suécia contemporânea. Mas o meu objetivo nunca foi descrever a Suécia nesses termos – se está a ficar melhor, se está a ficar pior. Essa dicotomia não existe. Já nos textos políticos tenho quase uma comichão, a escrever. Quando vejo que há apenas duas narrativas, quero escrever algo que torne as coisas um pouquinho mais complicadas. Por exemplo, em 2013, escrevi uma carta aberta ao ministro da Justiça sueco acerca do tratamento policial junto dos cidadãos suecos. Era apenas uma carta, em que tentava questionar toda esta ideia de quem é que faz e não faz parte da chamada identidade nacional. Tornou-se no segundo texto mais partilhado nas redes sociais na História da Suécia. Porquê? Não foi porque todos os imigrantes o partilharam, foi porque muitas pessoas na Suécia – e em outros países – se associaram ao sentimento de que não eram percecionados como parte de uma identidade nacional errónea. O que tento é captar essas nuances. Por exemplo, neste livro, tento captar como as personagens se relacionam com este sentimento – que nunca é verbalizado; na verdade, não sabemos a cor da pele destas personagens.
O que aprendeu com este livro? E que poderá utilizar no seu próximo romance?
Uma coisa de que me apercebi quando escrevia o livro foi que esperava que a personagem da mãe [ex-mulher do pai que é também avô] interviesse e fosse uma espécie de ONU, numa guerra. Mediar, ser um Kofi Annan. Mas, quando a mãe entra em cena, não tem qualquer interesse em intervir. Diz: “pus a minha vida em pausa por vocês durante 15 anos, agora quero uma Tjejkväll”, aquilo que na Suécia chamamos de uma noite só de raparigas. Achei isso interessante. No livro estão todos a lutar pela sua liberdade e por mudança e a única que sai desta confusão é a mãe. Traça os limites: “não quer dizer que não vos ame, mas tenho coisas para fazer, sítios a que ir”. Fui inspirado pela sua forma de ser clara. Essa clareza tem sido quase um tema de brincadeira entre mim e a minha mulher. Alguém me disse: “pagam-te para teres clareza”. Há algo nos limites clarividentes da mãe que passou para o novo livro que estou a escrever. É um romance muito longo, escrito num estilo completamente diferente. Nunca me diverti tanto a escrever um livro como este.
É sobre o quê?
É um romance muito longo acerca de três irmãs.
Tem data de publicação prevista?
À partida, sairá no Outono, na Suécia.
Andamos cheios de ansiedade, devido aos tempos em que tivemos. Para o público português será diferente ler este relato da vida quotidiana tão realista agora do que quando foi publicado em 2018, na Suécia. Teria escrito diferente, depois do contexto da pandemia e da guerra?
Como escritor, nunca sabemos em que mundo o livro se vai lançar. Um amigo meu teve recentemente dois rapazes gémeos. Ele queria o livro e eu disse-lhe “lê-o daqui a cinco anos”. Mas leu-o e ficou excitado por saber que não estava sozinho no tipo de sentimentos que estava a experienciar. Com a pandemia, passámos por um isolamento muito longo. E há um elemento claustrofóbico no livro: estamos dentro das vidas destas personagens. Quando estava de licença de paternidade, lembro-me de pensar: “tomar conta dos meus filhos é importante, mas não é dramático”. Se quisesse escrever uma coisa dramática, teria de inventar algo em que a vida estivesse em jogo. Mas, numa manhã perfeitamente normal, escrevi sobre uma manhã perfeitamente normal, nada fora do ordinário. Quando escrevi o que aconteceu, transformou-se em drama. Todos aqueles pequenos pormenores – com as fraldas, etc. – foram escritos de uma perspectiva de sobrevivente, eu enquanto escritor. Foi também interessante perceber o que era realmente necessário para haver bastante drama. Bombas, armas, guerra, armas, foram na verdade contidos em imensa energia e imensa vida apenas a escrever a sobre uma terça-feira normal passada com dois miúdos. Foi a minha lição. Pensamos que é necessário muito para haver grande drama, mas na verdade só é preciso mudar os óculos, mudar a perspetiva. Aquela terça-feira de manhã pôde conter imensa dor e alegria. Não admira que possamos estar cansados à hora de almoço.
Escrever é possibilitar-se a si próprio mudar de perspetiva?
Porque é que me sento todos os dias, escrevo palavras e as coloco em ordens diferentes? Não é completamente claro para mim porque é que a vida tem sentido, mas, no momento em que me ponho a escrever, torna-se claro. É uma boa ferramenta para encontrar sentido. Muitos amigos meus têm outras estratégias de encontrar sentido – através do desporto, da religião –, para mim escrever palavras e colocá-las numa certa ordem é a minha forma. E espero que continue a ser até que não consiga mais fazê-lo.