O jardim da Gulbenkian é um prato. “Ainda hoje estive a provar uma planta que não tenho a certeza do que é. Anda ali ver”, diz Paula Côrte-Real, responsável pelo serviço educativo deste jardim, pouco depois de encontrar Fernanda Botelho, especialista em plantas medicinais e aromáticas.
A tal planta está no prado em frente ao Edifício Sede, de caras para quem entra pela Avenida De Berna, em Lisboa. Tem uma rama alta, pode parecer endro a alguns, mas o endro não é espontâneo, avisa Fernanda. Uma nova prova é inevitável, Fernanda arranca um pedacinho das folhas e mete-as na boca depois de as voltar a cheirar, mas o sabor não esclarece, parece uma mistura de salsa a espigar ou cenoura brava. O melhor é passar cá daqui a umas semanas e fazer-lhe o reconhecimento quando estiver em flor. Por agora, seguimos a refeição — perdão, a visita.
Provar o Jardim da Fundação Calouste Gulbenkian é uma das propostas do Festival Jardins Abertos, que regressa a Lisboa, nos fins de semana de 20 e 21, 27 e 28 de Maio. Nesta edição de primavera, a alimentação toma conta da programação, entre visitas guiadas, oficinas e programas pensados para famílias com crianças, e é uma oportunidade para aproximar os urbanitas da natureza, pensar a cidade como terreno de produção de alimentos e reclamar a palavra que está na boca de tantos chefs da alta cozinha: o que lhe diz o foraging?
Uma das visitas guiadas dos Jardins Abertos é a de Fernanda Botelho, no dia 28 de maio. O início está marcado para a entrada icónica da Gulbenkian, que imita uma das paisagens portuguesas, o prado. Na sua requalificação no início dos anos 2000, este jardim privado foi pensado pelo arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles como uma síntese de alguns ecossistemas portugueses, “há zonas de clareira, de orla e mata”, exemplifica Paula Côrte-Real, e tudo isto resulta nos diferentes recantos, às vezes de ambientes opostos, e numa grande variedade de espécies comestíveis e medicinais em todo o jardim. A melhor zona para se refeiçoar talvez seja, precisamente, este prado da entrada.
Olhos no chão
As boninas, todos os dias tratadas por margaridas, são as que saltam ao olho leigo no relvado. Podem comer-se, tanto a folha como a flor, mas há espécies muito mais interessantes aqui. Fernanda Botelho baixa-se e aponta para umas folhas em forma de coração, são violetas, boas expetorantes se tomadas em infusões e as mais fáceis de encontrar nas caixinhas de flores comestíveis que se vendem em tantos supermercados e em pratos de cada vez mais restaurantes. “As flores são para as abelhas, não são para fazer saladas, como vejo muita gente fazer”, avisa Fernanda assim que se toca no tema.
O próprio ato de estar na Gulbenkian a provar plantas é polémico. “Não se deve vir colher as plantas de jardins públicos e privados”, apressa-se Fernanda Botelho, “além de poderem ter urina ou dejetos de animais, não devemos vir ‘roubar’ ao jardim”.
Estas visitas querem funcionar como um livro onde se aprende a ler as plantas para identificá-las mais tarde em estado selvagem, no campo. “Aí sim, podemos apanhá-las, sobretudo as invasoras”, frisa Fernanda. Não obstante, continua-se esta prova que, sendo assim, não tomará nunca contornos de banquete, ficámos ao corrente. Bem próxima da relva, Fernanda passa sabiamente a mão por umas ervas ligeiramente maiores — aqui está a ignorância, as “ervas ligeiramente maiores” são afinal folhas de morangueiro e, à sua sombras rasteira, crescem morangos selvagens. Não sabem a grande coisa, são baguinhas cheias de água, mas mostram como a biodiversidade de um relvado pode ir longe.
“Isto é um prado biodiverso. Estas espécies foram aqui plantadas, mas entretanto já se espalharam de forma espontânea. Um relvado sem biodiversidade não serve para nada”, diz Fernanda Botelho que há 10 anos faz visitas guiadas pelas plantas da Gulbenkian. A cada visita, mais curiosos aprendem a distinguir as folhas de um relvado e, quando se ganha esta consciência, não se pisa um jardim da mesma maneira.
O chamamento da natureza nas cidades
“De ano para ano recebemos mais pessoas no jardim”, conta Paula, “e a maioria do trabalho da equipa de manutenção é corrigir o que estragam: abrem caminhos, partem ramos. Já tivemos bolbos aqui no prado e as pessoas pisaram sem olhar para onde estão a andar. É importante que as pessoas percebam a necessidade de usar os caminhos [de pedra], quando piso folhas numa zona de bosque, posso estar a pisar as larvas de pirilampo [a nascer protegidas pelas folhas]”.
Por outro lado, conhecer o que há de comestível à nossa mão, de graça e em estado selvagem — por oposição ao grupo limitado de vegetais produzidos em regimes intensivos e vendidos empacotados — cria uma ligação à natureza que cada vez mais gente deseja. Tomás Tojo é o diretor do festival Jardins Abertos e nota que, a cada edição, a curiosidade pelo que dos jardins se pode comer veio crescendo. “Existe um movimento da população que vive nas cidades, que pode até ser de nicho, mas que está a empurrar o capitalismo a refletir sobre isto: tudo o que consumimos vem da natureza — a alimentação, a cosmética, o vestuário. Então como é que vamos fazer da natureza o nosso debate contemporâneo”, lança Tomás Tojo.
O projeto deste festival vai além de mostrar os campos selvagens como fonte de alimento. Há visitas à Horta Comunitária do Alto da Eira, da Associação Regador, à Raíz Vertical Farms, uma startup de agricultura urbana ou à Bela Flor Respira, uma agrofloresta urbana em Campolide. “Queremos discutir a sustentabilidade da comida na cidade. Quais são os impactos do transporte da comida para as cidades? Qual o impacto de produzir comida nas cidades? Há formas mais comunitária de chegar a soluções, que se calhar são mais características das aldeias por haver aí uma maior proximidade, mas os centros urbanos têm uma enorme vantagem: são sítios onde vive muita gente, o potencial de partilha de recursos é enorme”, atira Tomás Tojo.
O diretor do Jardins Abertos faz a salvaguarda: “se calhar parecemos uns hippies… mas a relação com as plantas ou a importância das abelhas para a polinização são coisas que sempre soubemos, mas fomos esquecendo”.
O que sempre soubemos
A murta já foi mais usada na cozinha nacional, especialmente nos assados, que agora muitas vezes se contentam com as folhas de louro seco. Este arbusto mediterrânico é uma das sebes de ajuda a delimitar o prado da Gulbenkian, juntamente com o pilriteiro, “a planta do coração, ótima para a ansiedade e problemas de circulação”, diz Fernanda Botelho enquanto procura as suas bagas, minúsculas maçãs vermelhas que, com paciência, até dão um bom doce.
A cozinha nacional, como todas as cozinhas populares, está bem habituada a conhecer as ervas aromáticas selvagens — o alecrim e as dezenas de variedades de hortelãs e tomilhos que também despontam pela Gulbenkian e nos canteiros das cidades. Habituou-se, gerações atrás de gerações, a “ir aos espargos” e, sobretudo como produto de épocas de fome, a fazer sopas de beldroegas e esparregados de urtigas, que merecem uma Confraria em Fornos de Algodres, na Beira Alta.
Também não é estranho, àqueles que têm (ou tiveram, ainda que vagamente) vivências de aldeia, a personagem do vizinho que sabe escolher cogumelos. Se vive numa aldeia e nunca foi convidado para ir apanhar míscaros ou participar numa arrozada coletiva, talvez não seja alguém tão estimado como imaginou.
Em algum momento a cidade separou os seus habitantes do reconhecimento destes e de outros alimentos selvagens e habituou-os ao on demand de qualquer produto. Afinal, morangos a 14 de fevereiro fazem parte do Borda d’Água urbano. Nada disto tem o sabor da sustentabilidade, palavra de entrou há mais de uma década nas altas cozinhas da Europa e que hoje está na boca de muitos novos restaurantes, bistros e bares mais democráticos. Da sustentabilidade ao foraging, isto é, ao forrageio, à recoleção, à chinchada, foi um passo lógico.
Foraging, o desporto dos chefs
Andar pelos campos à procura de preciosidades — como quem vai aos espargos, aos míscaros ou aos caracóis, para entrar num assunto caro às hortas lisboetas por esta altura do ano — tornou-se prática habitual entre os chefs do “novo nórdico”, momento de revolução e promoção da cozinha nórdica que definiu os últimos tempos da cozinha de autor.
Um dos rostos desta prática foi o Noma, o restaurante de René Redzepi que recentemente anunciou o encerramento ao admitir o falhanço em cumprir os seus ideais éticos. Nomeado consecutivamente o melhor do mundo, este fine dining em Copenhaga, Dinamarca, foi um dos restaurantes de alta cozinha que se deixou fascinar pela exploração de florestas, prados e qualquer ambiente natural que pudesse emprestar uma planta de sabor simultaneamente reconhecível e esquecido, incomparável e surpreendente. Assim, estes restaurantes afirmam práticas mais sustentáveis, como o respeito pela sazonalidade e o “quilómetro zero”, ou seja, a utilização de produtos da sua zona.
Em Portugal, a prática não é estranha a alguns chefs, especialmente aqueles celebrados pelo Guia Michelin. Alexandre Silva, do Loco (1 estrela) fala frequentemente sobre as plantas comestíveis que apanha no Monsanto; na Fortaleza do Guincho (1 estrela) Gil Fernandes faz um icónico gelado com pinhas e as aromáticas agulhas de pinheiro colhidas perto do restaurante. Podemos mesmo levar o cenário à cocketelaria: Constança Cordeiro, dona dos bares Toca da Raposa e Uni, em Lisboa, faz do campo o seu laboratório e usa todo o tipo de flores comestíveis, folhas de figueira selvagem, de cedro, funcho selvagem ou gerânios nas suas infusões e destilados.
“Acho perigosa a moda do foraging”, diz Fernanda. “Corremos o risco da sobre-colheita. O melhor é as pessoas apanharem as sementes e plantarem nos seus jardins.” Para Fernanda Botelho, colher com moderação é uma das regras de ouro para o forrageio, até porque a colheita interrompe o ciclo da planta. Há também que evitar beiras de estrada e outros locais que possam ter solos contaminados e, claro, conhecer as plantas, ir com um guia e aproveitar aplicações de telemóvel que ajudam a identificar plantas.
Não é boa ideia provar qualquer coisa indiscriminadamente, “mas tive uma professora que dizia que na ponta da língua se pode provar tudo. Depois cospe-se”, conta Fernanda enquanto prova este jardim com confiança. “As plantas dão sinais de que são venenosas. Se provares um bocadinho de um jarro, começas logo a sentir a língua presa e, se engolires, ficas com a glote inchada”. Um exemplo para nunca confirmar.
Mais interessante do que alface
Ao entrar pelos caminhos de sombras da Gulbenkian, depois de passar por umas romãzeiras ornamentais em flor, Fernanda e Paula vão notando as árvores: vários carvalhos, todos eles com bolotas comestíveis, nos últimos tempos a serem redescobertas gastronomicamente; um pouco à frente “a azinheira dá as bolotas mais doces” e, dali a nada, está-se numa clareira cheia de roseiras de cheiro intenso. Destas, Fernanda Botelho não prova nada, para não as destruir, mas aconselha que se coloquem pétalas de rosas bem cheirosas em mel, por exemplo, para lhe extrair todas as propriedades antidepressivas. “É por isto que a rosa é a flor associada ao amor. Cheirar ou provar uma rosa abre-nos o coração”, diz.
Colher na natureza vai além das questões ambientais: se a rosa oferece este instante de felicidade, outras dão variedade de cor, cheiros e sabores inigualáveis. “As plantas espontâneas têm todos os sabores: há plantas picantes, como as capuchinhas, há as amargas, como o dente de leão ou o trevo [a flor são as famosas azedas], os funchos são doces e ao pé do mar há plantas salgadas. Se apanharmos estas plantas fazemos uma salada muito mais saborosa do que se comprarmos alface”, resume Fernanda.
Além disto há a textura. Chegou a hora de provar a folha da tileira, cujo cheiro doce é inconfundível durante a floração. Cria uma goma na boca, é a mucilagem que funciona como protetora do estômago. É como se tivéssemos um quiabo muito cozinhado a largar fios viscosos enquanto mastigamos. É uma desvantagem não sentirmos o molho da moamba, que tantas vezes vem com o quiabo — mas não exigimos tanto da natureza.