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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Entrelinhas. Marcelo foi ao passado fazer as pazes com a história, Ferro declarou guerra ao presente

Marcelo, o descrispador, quer resolver as tensões que existem na sociedade sobre o passado colonial. Ferro alertou para os populismos e fake news. Ambos assumem que não há democracias perfeitas.

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Uma aula de História com lições para o futuro de um lado, uma mão cheia de avisos sobre o presente por outro. Marcelo Rebelo de Sousa e Eduardo Ferro Rodrigues, as duas principais figuras do Estado português, usaram as suas intervenções nas comemorações do 25 de Abril para alertar contra radicalismos e divisões na sociedade portuguesa, cada um à sua maneira. Marcelo olhou para o passado — que é muitas vezes difícil de julgar “olhando com os olhos de hoje” — e para a guerra colonial para dar uma lição: é preciso “dissecar tudo”, reconciliar o país com a sua História, recusar leituras extremistas e contextualizar as memórias (um apelo vindo de alguém que, como lembrou, é filho de um governante da ditadura e é presidente — reeleito — em democracia).

Ferro, que também aconselhou a uma revisitação da história colonial a começar pelo Parlamento, preferiu durante a maior do tempo fazer avisos concretos e mais imediatos, contra fake news, desinformação, “antidemocratas” e populistas — isto minutos antes de André Ventura ter desejado que houvesse ali, na tribuna cheia de cravos vermelhos, “cravos negros” de “luto pela democracia”. Mais em consonância com o que foi o tema dominante da sessão, Ferro aproveitou para falar de transparência, com um apelo final: combater a corrupção não pode significar fazer de todos os políticos “suspeitos à partida”. Um clima desses alimentaria os tais populismos e radicalizações que as duas figuras cimeiras do Estado querem evitar.

Marcelo nas entrelinhas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A discussão em torno dos brasões coloniais em Belém, da demolição do Padrão dos descobrimentos (proposta por um deputado do PS) ou em torno das homenagens Marcelino da Mata aumentaram o debate público em torno do passado colonial. Marcelo, o árbitro que se dedica a aliviar tensões, quis começar a resolver um conflito tão iminente como incontornável: a reconciliação de Portugal com o seu passado colonial. Há metade do país que olha esse passado de forma nostálgica e outra parte que não o compreende. São esses dois mundos que Marcelo quis unir. Com precaução.

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Não olhar o passado com os olhos de hoje

Passaram, há um mês, 60 anos sobre o início de um tempo que havia de anteceder e de determinar a data de hoje, aquela que aqui evocamos, 25 de Abril de 1974 (…) Olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do passado que as mais das vezes não nos é fácil de entender. Sabendo que outros ainda os olharão no futuro de forma diversa dos nossos olhos de hoje. Acreditando muitos, nos quais me incluo, que há no olhar de hoje uma densidade personalista, isto é de respeito da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos, na condenação da escravatura e do esclavagismo, na recusa do racismo e das demais xenofobias que se foi apurando e enriquecendo, representando um avanço cultural e civilizacional irreversível. Acreditando muitos, nos quais também me incluo, que o olhar de hoje não era nas mais das vezes o olhar desses outros tempos“.

O grande objetivo do discurso de Marcelo Rebelo de Sousa foi reconciliar o país com a sua história colonial. Numa altura em que, num extremo, se tenta glorificar um Portugal do passado todo poderoso do Minho a Timor e, noutro extremo, se defende a demolição de monumentos como o Padrão dos Descobrimentos, Marcelo tenta fazer vingar a visão mais fidedigna e equilibrada da história. Mesmo que essa visão tenha diferentes versões, estas podem não ser necessariamente inconciliáveis. Para o Presidente da República quem, na altura, combateu em África não era necessariamente racista e quem elogiou o regime não era necessariamente fascista. Olhando pelos olhos de hoje seria fácil tirar essas conclusões do passado colonial e julgar quem viveu esses tempos. Marcelo pede, por isso, que se tente contextualizar ao máximo as opções do passado, por mais chocantes que sejam pela bitola dos valores de hoje.

Contra a demolição da história

O que obriga a uma missão ingrata: julgar o passado pelos olhos de hoje, sem exigir, nalgumas situações, aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais, sobretudo se não adotados nas sociedades mais avançadas de então. (…) Este revisitar da história aconselha algumas precauções. A primeira é de não levarmos as consequências do olhar de hoje, sobre os olhares de há 8, 7, 6, 5 ,4, 3, 2 séculos ao ponto de passarmos de um culto acrítico triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história, para uma demolição global e igualmente acrítica de toda ela, mesmo que a que a vários títulos seja sublinhada noutras latitudes.

Mais uma vez o Presidente da República pede que não se julguem os portugueses que viveram no antigo regime pelos valores atuais, já que não se podia exigir que tivessem como referência os valores atuais. Isto embora não escamoteie e não esconda que considera que esse mesmo regime se tornou insustentável desde o assassínio de Humberto Delgado (em 1958) e que insistiu teimosamente (e contra os “conselhos da História”) numa guerra colonial que precipitou a sua queda. O Presidente da República avisa, no entanto, que também não se pode olhar para o período que antecedeu o 25 de Abril como se tivesse sido tudo mau e muito menos apagar da memória o que de mal foi feio. A “demolição global” desse período, avisa Marcelo, não é o caminho que mais protege a memória coletiva do país. E ler bem o passado, defende, é essencial para a forma como o país prepara o seu futuro.

Respeitar o lado dos colonizados

Segunda precaução: é de aprendermos a olhar para o passado com uns olhos que não são os nossos, os do antigo colonizador, mas os olhos dos colonizados. Tentando descobrir e compreender tanto quanto nos seja possível, como eles nos foram vendo e julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se tornaram mais intensas e duradouras e delas pode haver o correspondente e impressivo testemunho.

Marcelo Rebelo de Sousa defende que o Estado português não deve menorizar aquilo que é o sentimento dos povos dos países que saíram da descolonização. Lá fora existem diversos exemplos de países que pediram desculpa a povos que colonizaram. Em Portugal, houve sempre uma visão romântica de que os conseguiram a sua independência com o 25 de Abril olham para Portugal como um país irmão e amigo. Marcelo sabe que não é assim. Basta ler os editoriais do Jornal de Angola e outros sinais vindo das antigas colónias portuguesas para perceber que há um caminho de ajuste de contas com a história que ainda falta fazer. Marcelo sabe isso e pede aos portugueses para tentarem perceber o outro lado.

Portugal, essa democracia imperfeita

Tão complexa foi a mudança histórica neste dia que agora evocamos, na sua abertura para a Descolonização, para o Desenvolvimento, para a Liberdade, para a Democracia. Desenvolvimento, Liberdade e Democracia, sabemo-lo todos, sempre foram imperfeitos e por isso não plenos. Porque nunca tendo resolvido uma pobreza estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades pessoais e territoriais, e desistintucionalizações que aqui referi em 2016 e 2018, que a pandemia veio revelar e acentuar.

Marcelo não ignora a recente sondagem do ICS/ISCTE para o jornal Expresso que diz que só 10% dos portugueses acreditam viver numa democracia plena e que 40% veem grandes defeitos na democracia. Para o Presidente, a democracia é e será sempre imperfeita, pelo menos enquanto o país não conseguir resolver um problema de pobreza de dois milhões de portugueses, nem esbater as desigualdades entre vários estratos da população e entre o interior e o litoral. O combate às assimetrias do país é algo que tem estado presente em vários discursos do chefe de Estado, incluindo em cerimónias do 25 de Abril na AR.

Capitães de Abril terráqueos (que também estiveram em África)

Mas foi complexa essa mudança histórica em 1974. Fruto da resistência de muitas e muitos durante meio século, com os seus seguidores políticos sentados neste hemiciclo. Ela ganhou o seu tempo e o seu modo decisivos no gesto essencial dos capitães de abril, aqui qualificadamente representados pela Associação 25 de Abril e que saúdo, reconhecido, em nome de todos os portugueses. Esses capitães de Abril não vieram de outras galáxias, nem de outras nações, nem surgiram num ápice naquela madrugada para fazerem história. Transportavam consigo já a sua história, as suas comissões em África, uma, duas, três, alguns quatro anos seguidos nas nossas Forças Armadas, tendo de optar todos os dias entre cumprir ou questionar, entre acreditar num futuro querido ou que outros definiam ou não acreditar, entre aceitar ou a partir de certo instante, romper, tudo em situações em que a linha que separa o viver e morrer é muito ténue. Apesar dos princípios, das regras, dos ditames escritos por políticos e juristas em gabinetes, não são os cenários em que a coragem se soma à sobrevivência e à solidariedade na camaradagem. Pois foram estes homens, eles mesmos, não outros, os heróis daquela madrugada do 25 de Abril.”

O Presidente da República não se limitou a escolher um lado na guerra sobre quem são os verdadeiros e legítimos herdeiros do 25 de Abril. Nesse particular, Marcelo não tem dúvidas que os heróis daquele dia —  os que tiveram a coragem física (mais do que “os políticos e juristas em gabinetes” ) — foram os “capitães de Abril”. No entanto, o Presidente utiliza-os também para minimizar o ódio relativamente a quem combateu na Guerra Colonial. Isto porque, lembra Marcelo, os próprios capitães de Abril “não vieram de outra galáxia”. Eles próprios combateram na Guerra Colonial, pois era a isso que obrigava a sociedade em que estavam inseridos. Lição do professor Marcelo: não há o lado dos capitães e o lado dos ex-combatentes — porque em muitos casos eles são o mesmo lado.

Ramalho Eanes, o herói

Eis porque razão é tão justo galardoar os militares de Abril tendo merecido já uma homenagem muito especial aquele, de entre eles, que depois de ter estado no terreno veio a ser peça chave na mudança de regime e primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa e que sempre recusou o marechalato que merecia e merece o Presidente António Ramalho Eanes.”

Um dos heróis de Marcelo é António Ramalho Eanes, que não deixa de homenagear. E não é inocente, já que Eanes personifica muito do que acabara de descrever: combateu em África, ajudou não só à Revolução, como a estabilizar o processo democrático. Aqui, mesmo sem o fazer diretamente, Marcelo consegue tocar ao de leve nos anseios dos defensores do 25 de Novembro de 1975. Ramalho Eanes era o único ex-Presidente na sessão: Cavaco Silva alegou razões relacionadas com o cumprimento das regras sanitárias em pandemia; Jorge Sampaio não se deslocou por razões de saúde.

Estudar e dissecar tudo sem exageros

É prioritário  estudar o passado e nele dissecar tudo: o que houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessiva.

Mais uma vez, Marcelo defende um olhar equilibrado da história. Para isso é preciso estudar. Saber ao certo tudo o que se passou e, então, depois disso, cada um fazer a sua leitura. Pelo conhecimento que tem, quer de relatos históricos, quer do que viveu, o Presidente assume que a prioridade não passa por carregar na tinta do que de bom se passou, nem fazer o contrário com o que de mau se passou, mas sim assumir tudo.

Contra o aproveitamento político do assunto

Até por respeito, a todos estes e a todas estas, que se faça história e história da História, que se retire lições de uma e de outra sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria da democracia. Mas que se não transforme o que liberta em mera prisão de sentimentos, úteis para campanhas de certos instantes, mas não úteis para a compreensão do passado a pensar no passado e no futuro

Marcelo Rebelo de Sousa, naquilo que pode ser visto como uma advertência à direita e à esquerda, defende que não se deve utilizar o 25 de Abril, nem os acontecimentos do passado relacionados com a Revolução e o Antigo Regime, como arma de arremesso político. Hiperbolizar um determinado acontecimento ou desvalorizar outro com um objetivo partidário é, na leitura de Marcelo, pouco útil para olhar o passado de forma justa.

Marcelo, a história pessoal entre os dois mundos

Quem vos apela a isso mesmo é o filho de um governante na ditadura e no Império, que viveu na que apelida de sua segunda pátria ocaso tardio inexorável desse império, e viveu depois, como constituinte, o arranque do novo tempo democrática. Charneira como milhões de portugueses, entre duas histórias da mesma História e nem por exercer a função que exerce olvida ou apaga a história que testemunhou. Como nem por ter testemunhando essa história deixou de ser eleito e reeleito pelos portugueses em democracia. Democracia que ajudou a consagrar na Constituição que há 45 anos nos rege. Que o 25 de Abril viva sempre, como gesto libertador e refundador da história. Que saibamos fazer dessa nossa história lição de presente e de futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos injustificado”.

Marcelo Rebelo de Sousa não hesitou em utilizar a sua história pessoal como o exemplo de alguém que esteve sempre entre dois mundos. Foi filho do governador do Moçambique, nomeado pela cúpula do antigo regime, e além disso Marcello Caetano era nada mais nada menos que padrinho de casamento dos pais de Marcelo. Ao mesmo tempo, depois da Revolução, Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se numa das figuras de destaque do PPD, tendo sido eleito deputado na Assembleia Constituinte, ficando ligado à história do documento que serviu de suporte à atual democracia. Mesmo carregando estes dois legados, Marcelo foi reeleito por pessoas dos dois lados da barricada.

Ferro Rodrigues nas entrelinhas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ferro Rodrigues preferiu fazer avisos mais imediatos do que Marcelo e escolheu um tema em que insiste recorrentemente: o necessário combate aos populismos e aos “antidemocratas” para o qual convocou os “partidos democráticos”, num discurso sob o qual André Ventura pairou sempre, mesmo sem nunca ter sido mencionado. Os partidos anotaram pelo menos duas tarefas concretas no caderno de encargos traçado pelo presidente da Assembleia da República: deve começar pelo Parlamento a reflexão sobre a guerra colonial, para acabar com “discursos racistas e xenófobos”; e deve aperfeiçoar-se a legislação sobre corrupção, mas sem nunca lançar um manto de suspeição sobre todos os políticos.

Alerta contra a desinformação e as fake news

Uma das grandes virtudes da Democracia e da Liberdade é a de permitir a convivência entre todos os credos políticos, incluindo os antidemocratas. Nas redes sociais, os promotores de falsas notícias, de ódio, de desinformação, de calúnias, de mentiras, contam-se por muitas centenas, e atingem milhões de alvos. As caixas de comentários de alguns órgãos, ditos de comunicação social, são um esgoto a céu aberto. 

Os alertas do presidente da Assembleia da República sobre os perigos das fake news estão muito longe de ser novos. Este é, aliás, um dos temas que Ferro Rodrigues aborda com mais insistência, incluindo nos seus discursos nas sessões comemorativas do 25 de Abril. Desta vez, Ferro começou o discurso por sublinhar o papel que têm neste contexto as “os promotores de falsas notícias” e de “ódio” nas redes sociais, mas sobretudo nas “caixas de comentários de alguns órgãos ditos de comunicação social”, que não se coibiu de descrever como um “verdadeiro esgoto a céu aberto”. Em 2019, nas vésperas do 25 de Abril, Ferro já tinha expressado inclusivamente o seu apoio a mudanças legislativas para limitar este tipo de discurso nas redes sociais, mas deixava então outro alerta: não valeria apenas alimentar “ilusões” de que a solução passaria apenas por aí; seria preciso “enfrentar os problemas que estão na base da permeabilidade das pessoas às campanhas de desinformação, aos chamados ‘factos alternativos’” — um alerta que voltou a deixar, mais à frente, no discurso deste domingo.

A indireta aos populistas (onde está Ventura) nos que querem “retrocesso histórico”

Esta não é uma realidade apenas nacional. Muito pelo contrário. Basta olhar para o que se passa por essa Europa fora – até mesmo em países tão próximos, como Espanha, França ou Itália – para perceber que este movimento vai fazendo o seu caminho, e, aos poucos, enfraquencendo a Democracia, o Estado de Direito e a convicção por valores fundamentais que são os nossos. Veja-se, também,o que sucedeu nos Estados Unidos da América, com o inconcebível episódio da invasão do Capitólio, sede do Congresso, apoiada – ou, pelo menos, tolerada – ao mais alto nível. Onde, na Europa e no Mundo, pareciam florescer democracias, estas são ameaçadas, num retrocesso histórico que nos reaproxima da realidade sombria de um passado onde ninguém deveria querer voltar.

Os avisos de Ferro têm, também, a ver com o contexto internacional, que preocupa o presidente da Assembleia. No púlpito, Ferro referiu casos como Espanha, Itália e França e o assalto ao capitólio nos Estados Unidos — em resumo, um “retrocesso histórico” que nos reaproxima da “realidade sombria” de um passado de ditadura. É importante lembrar que Ferro tem, neste contexto, identificado André Ventura como o principal risco de que esse ‘saudosismo’ se instale em Portugal, tendo sido já vários os confrontos entre o presidente da Assembleia e o deputado único do Chega. No ano passado, em janeiro, Ferro fez uma declaração em que ironizou dizendo não querer insistir demasiado no tema para não parecer “um maluquinho dos populismos”, mas garantiu “temer que, efetivamente, alguma coisa de grave se possa vir a passar na Europa e noutros países, entre os quais Portugal”.

Outra vez Ventura: o combate contra o politicamente correto que esconde saudosismo

Não é fácil combater o discurso simplista dos antidemocratas. (…) Nesta batalha, que é a batalha pela nossa sobrevivência enquanto sociedade aberta, tolerante e inclusiva, cabe-nos a nós, democratas, um papel fundamental. Um combate em que todos somos poucos. Um combate em que os Partidos Democráticos são fundamentais. São eles parte da muralha que nos deve defender dos avanços da intolerância, da xenofobia, do ódio. Um combate  (…) onde a liberdade de expressão não se pode confundir com a expressão sem regras, a qual, fazendo mão do anonimato, mais não ambiciona que o insulto, a ofensa e a injúria. Onde o combate contra o chamado politicamente correto muitas vezes esconde o saudosismo pelos tempos de impunidade da violência doméstica, da supremacia racial, da homofobia, do desprezo pela dignidade e pela individualidade dos outros.

Neste excerto, Ferro regressa ao tema do “saudosismo” pela ditadura e pelas discriminações de minorias e é de novo impossível não lembrar discursos anteriores do presidente da Assembleia, que incluíram várias vezes alertas sobre populismos e por vezes, com mais clareza, sobre Ventura. Em 2019, ainda o líder do Chega não tinha sido eleito para o Parlamento, Ferro insurgia-se contra o “ódio” às minorias e ao parlamentarismo democrático e criticava “as novas vestes da extrema-direita”, sem querer “normalizar o que não é normalizável”: “É mesmo de extrema-direita que estamos a falar”, garantia então. No ano passado, criticava o recurso à “propaganda populista”, “sempre com o intuito de desacreditar os valores fundamentais do Estado de Direito democrático, minar a confiança nas instituições e, o fim último, destruir a democracia”. A solução, diz Ferro, passa pelos “partidos democráticos”, que devem funcionar como uma “muralha” (uma expressão que também utilizou em 2019, aplicada a Marcelo) para travar a intolerância — de novo, a linha que traça entre os partidos democráticos e não democráticos.

As feridas abertas da Guerra Colonial, alinhado com Marcelo

Nesta Sessão Solene, não poderia igualmente deixar de recordar as guerras coloniais que se iniciaram em 1961, há 60 anos, e a que a Revolução de Abril veio pôr um fim. Fazê-lo hoje é um imperativo – político, moral e de consciência. (…)  Sessenta anos volvidos, há ainda marcas bem presentes deste passado, como sejam os discursos xenófobo e racista em algumas franjas da sociedade ou algumas representações sociais do período colonial – sinal de feridas abertas, ou, melhor, de feridas ainda não completamente saradas. Ao Parlamento cabe um papel da maior relevância no longo caminho que há ainda a percorrer, revisitando este período à luz dos valores democráticos, discutindo a memória do colonialismo e, 47 anos depois, refletindo sobre a presença colonial em África.

Tem sido uma discussão recorrente: deve ou não o país revisitar e refletir sobre o seu passado, sobretudo no período colonial? Depois do debate público sobre as homenagens a Marcelino da Mata ou da sugestão de um deputado do PS, Ascenso Simões, de que se deveria demolir o Padrão dos Descobrimentos, Ferro entrou na discussão para dizer que recordar as guerras coloniais não só é preciso como é mesmo um “imperativo de consciência” e colocar-se do lado dos que acreditam que o discurso xenófobo e racista em Portugal encontra aí as suas raízes. Em sintonia com Marcelo, Ferro atribuiu ao órgão a que preside esse papel de revisitação e discussão sobre a memória do colonialismo.

Aperfeiçoar controlo a políticos, sem os tornar suspeitos

Os titulares de cargos públicos e políticos têm de participar e decidir para aperfeiçoar a legislação sobre eles próprios, tendo como base as alterações concretizadas em 2019. Mas atenção: não há donos da transparência, nem é aceitável nenhuma lógica que ponha os eleitos, os magistrados judiciais, os procuradores, como suspeitos à partida.

Parte dos discursos de Ferro sobre o populismo tem incluído a preocupação do presidente com o perigo de existir uma suspeição generalizada sobre os políticos (a 25 de Abril de 2019 recusava, numa legislatura muito marcada pelas notícias de aproveitamentos de subsídios e viagens por parte de deputados, “ataques de caráter” aos parlamentares). Desta vez, Ferro quis apoiar o “aperfeiçoamento” de legislação — presumivelmente as leis anticorrupção e mais concretamente o enriquecimento injustificado, que todos os partidos assumem querer finalmente criminalizar — mas sem deixar esquecer o trabalho que já foi feito na legislatura passada, na então nova Comissão da Transparência. E sobretudo deixou um aviso: apesar de esse trabalho ter de ser aperfeiçoado, “não há donos da transparência” e não se podem criar suspeitos à partida — um aviso importante, concretamente, para as propostas sobre enriquecimento injustificado, uma vez que dois diplomas sobre o tema foram travados pelo Tribunal Constitucional, em 2011 e 2015, precisamente por inverterem o ónus da prova.

Entre os capitães e o outro lado, Ferro escolhe os capitães

É esse País e essa Democracia que celebramos hoje com a mesma convicção e determinação com que, há 47 anos, com ela sonharam os Capitães de Abril, aqui representados pela Associação 25 de Abril, a quem endereço uma saudação muito, mas muito especial. Pais de uma Revolução que não tem proprietários, porque aos que participaram na libertação do País se seguiram várias gerações que ajudaram a construir o Portugal Democrático em que vivemos. Uma Revolução que tem autores: o Movimento das Forças Armadas e os milhares de portugueses que se bateram contra a Ditadura e a guerra durante longos anos.

Se a saudação aos militares é expectável em qualquer sessão que comemore o 25 de Abril, este ano as palavras de Ferro, que fez questão de lhes dirigir “uma saudação muito, mas muito especial”, merecem uma atenção redobrada. Há semanas que se arrasta a polémica sobre as comemorações deste ano no tradicional desfile da Avenida da Liberdade, em Lisboa, depois de a comissão que organiza as celebrações — e pela qual tem falado o capitão de Abril Vasco Lourenço — ter excluído o Iniciativa Liberal das mesmas, alegando que só os partidos com assento na comissão poderiam participar por causa das questões de sanitárias. A posição levou a uma série de críticas públicas, a um evento paralelo organizado pelo IL e, no final, a um recuo dos organizadores — mas a polémica já estava criada. Aqui, Ferro fez questão de frisar que se é verdade que a revolução “não tem proprietários” — e se há expressão que tem sido usada pelos liberais na sequência disto é que a liberdade “não tem donos” –, o 25 de Abril tem “autores”, nomeadamente o Movimento das Forças Armadas, assim como os milhares de portugueses que se bateram contra a Ditadura e a guerra.

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