Discurso do Presidente da República ao País
Portugueses, duas palavras: uma sobre o passado, outra sobre o futuro. Apesar de alguns muitos bons números da nossa economia, e de apoios a famílias e empresas, esses grandes números ainda não chegaram à vida dos portugueses, eles esperam e precisam de mais e melhor. Esperam e precisam de um poder político que resolva mais e melhor os seus problemas. Isso exige capacidade, confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade, autoridade. E a autoridade para existir, ser confiável, ser credível, ser respeitada, tem de ser responsável. Onde não há responsabilidade, na política, como na administração, não há autoridade, respeito, credibilidade”.
O Presidente da República começa por fazer uma crítica à ação governativa tout court — mesmo excluindo os “casos e casinhos” — dizendo que não se deixa convencer com os bons registos de redução da dívida e do défice que Fernado Medina mostra na lapela, nem com os milhares de milhões de apoios, já que não estão a chegar à vida das pessoas. É uma crítica que vai para além dos acontecimentos dos últimos dias e repete uma exegência presidencial repetida desde que há maioria absoluta: é preciso mais e melhor.
Um governante sabe que, ao aceitar sê-lo, aceita ser responsável por aquilo que faz e não faz. E também por aquilo fazem e não fazem aqueles que escolhe. E nos quais é suposto mandar. Como pode um ministro não ser responsável por um colaborador que escolhera manter na sua equipa mais próxima? No seu gabinete? A acompanhar, ainda que para efeitos de informação um dossier sensível como o TAP, onde os portugueses já meteram milhões de euros. E merecer tanta confiança que podia assistir a reuniões privadas, preparando outras reuniões, essas públicas, na Assembleia da República.”
Para o chefe de Estado é claro: João Galamba não é responsável apenas pelos seus atos, mas também pelos atos de quem nomeou (o adjunto Frederico Pinheiro, acusado de agressões a outros membros do gabinete e de outros atos violentos). O Presidente da República é rigoroso e não ignora que foi o antecessor Pedro Nuno Santos a escolher Frederico Pinheiro, mas destaca que Galamba se tornou responsável pelos seus atos ao mantê-lo na “sua equipa mais próxima”. O chefe de Estado não esquece também que o adjunto foi um peão de João Galamba na célebre “reunião secreta”, em que terão sidas combinadas questões entre o grupo parlamentar do PS e a CEO da TAP. A reunião tem sido transversalmente criticada e Marcelo culpa Galamba por esse ato.
Como pode esse ministro não ser responsável por situações rocambolescas, muito bizarras, inadmissíveis ou deploráveis — as palavras não são minhas — suscitadas por esse colaborador, levando a apelar aos serviços mais sensíveis de proteção da segurança nacional, que, aliás, por definição, estão ao serviço do Estado e não de Governos. Como pode esse ministro não ser responsável por argumentar em público sobre aquilo que afirmara o seu subordinado, revelando pormenores do funcionamento interno e incluindo referências a outros membros do Governo. A responsabilidade política e administrativa é essencial para que os portugueses acreditem naqueles e naquelas que os governam?
Marcelo Rebelo de Sousa faz uma crítica direta à posição de António Costa, não compreendendo como “pode um ministro” manter-se depois de várias situações cómico-trágicas. E utiliza até um recurso semântico para o fazer: classifica as ações como “deploráveis”. E logo acrescenta: “As palavras não são minhas”. São, claro, de António Costa, que as utilizou na conferência de imprensa em que decidiu não aceitar o pedido de demissão de João Galamba e às quais Marcelo já tinha feito referência na nota que enviou logo de seguida a essa posição. O Presidente da República deixou também um aviso sério de que o SIS (“os serviços mais sensíveis da proteção da segurança nacional”) não é para ser utilizado como um braço armado do Governo, pois está ao serviço do Estado e não do Executivo de António Costa. A carapuça também serve ao ministro das Infraestruturas. Marcelo mostra ainda o seu choque com a falta de sentido de Estado e de cuidado de Galamba ao referir detalhes como o facto de António Costa ir a conduzir quando lhe ligou, ter falado com dois secretários de Estado que dependem do primeiro-ministro e ainda com a ministra da Justiça. Tudo razões mais que suficientes, segundo Marcelo, para Galamba não ter condições para continuar.
Não se resolve apenas pedindo desculpa pelo sucedido. Responsabilidade é mais do que pedir desculpa, virar a página e esquecer. É pagar por aquilo que se faz ou se deixou de fazer. Não se afasta por razões de consciência pessoal de quem aprecia essa responsabilidade, por muito responsáveis que sejam. É uma realidade objetiva. Implica olhar para os custos objetivos daquilo que aconteceu na credibilidade, na confiabilidade, na autoridade do ministro, do Governo e do Estado.”
Para Marcelo, a cabeça de Galamba tinha de rolar para garantir manter a credibilidade do Governo e do Estado. A frase do Presidente vai ao encontro do que António Costa disse à chegada à Portela no dia antes de falar (e segurar) João Galamba: que “há uma outra dimensão que tem a ver com o que tem de ser a atitude do Governo na governação que tem de ser exemplar na credibilidade das instituições e que foi afetado”. Costa não foi pela bitola que definiu (deu “primazia à consciência”) e isso Marcelo não perdoa. Acusa, por isso, o primeiro-ministro de estar a governar com emoção e não com razão, privilegiando uma impressão pessoal em vez de uma realidade objetiva. Para Marcelo, Costa deixou de ser o político pragmático que conhece desde os tempos em que era seu aluno estando perdido em avaliações subjetivas (leia-se, emotivas).
Não se mistura política com a justiça. Não se apaga, dizendo que já passou. Não passou. Nunca passa. Reaparece. Todos os dias, todos os meses, todos os anos. Porque tem de existir para que os portugueses se não convençam que ninguém responde por nada, nem manda em nada. Ou melhor: acabam por só responder, eventualmente, os mais pequenos, mesmo se, porventura, eles tivessem atuado de forma errada.”
O Presidente mostra uma ultra preocupação com a leitura que os portugueses fazem desta situação. Em particular, a ideia de que a corda parte sempre para o mais fraco — neste caso, o adjunto Frederico Pinheiro. Marcelo Rebelo de Sousa dá também o benefício da dúvida a Frederico Pinheiro quando diz que “porventura” agiu de “forma errada” (isto mesmo depois de algumas evidências, como as agressões às antigas colegas de gabinete). Além disso, entende a decisão de Costa como um empurrar de lixo para baixo do tapete. Mesmo que a vingança se sirva fria e a reflexão tenha sido feita com recurso a gelados da Santini, Marcelo contraria o lema imortalizado pelo filme de animação Frozen: “Não passou, nunca passa”.
Foi por tudo isto que entendi que o ministro das Infraestruturas deveria ter sido exonerado. E que ocorreu uma divergência de fundo com o primeiro-ministro. Não sobre a pessoa, as suas qualidades pessoais, até o seu desempenho. Mas sobre uma realidade, a meu ver, muito mais importante: a responsabilidade, a confiabilidade, a credibilidade, a autoridade do ministro, do Governo e do Estado. No passado, com maior ou menor distância temporal, foi sempre possível acertar agulhas. Desta vez, não. Foi pena. Não por razões pessoais ou de disputa entre cargos, que a Constituição distingue muito bem entre si em termos de peso institucional, absoluto e relativo. Mas por razões de interesse nacional.
Marcelo diz textualmente o que repetira minutos antes: que Galamba devia ter saído — assim garante que todos os portugueses percebam de forma direta. Ao mesmo tempo, classifica este ato como uma “divergência de fundo” inédita. É a primeira vez que Marcelo verbaliza que está no pior momento da relação com Costa. É uma espécie de fim do “Bloco Central de Palácios” cunhado no início pelo atual ministro da Cultura. O Presidente da República lembra que, com mais ou menos dificuldade, acabou sempre por se entender com Costa. Mesmo com delay democrático, Costa acabou por corresponder aos anseios do Presidente no passado: Constança Urbano de Sousa e Eduardo Cabrita saíram mais tarde do Governo (e Gomes Cravinho da Defesa) do que Marcelo pretendia, mas saíram. Agora não. E Marcelo tem “pena”. Ao mesmo tempo que faz um aviso: a primeira figura do Estado, de acordo com a Constituição, é o Presidente. O chefe de Estado pode, no limite (“na exceção”) mandar o Governo abaixo — já o contrário não se verifica.
E agora uma palavra sobre o futuro. Vai o Presidente da República retirar do caso ilações? Ou seja: conclusões imediatas ou a prazo? Sim. Duas conclusões se retiram e que, aliás, se completam entre si. Primeira conclusão: tudo visto e ponderado, continuar a preferir a garantia da estabilidade institucional, não fazer aquilo que por aí andam como cenários, implicando imediata ou direta e indiretamente o apelo ao voto popular antecipado. Os portugueses dispensam esses sobressaltos, essas paragens, esses compassos de espera num tempo como este, em que o que querem é ver os governantes a resolverem os seus problemas do dia a dia. Os preços dos bens alimentares. O funcionamento das escolas. A rapidez na justiça. O preço da aquisição da habitação.”
O Presidente resiste à tentação de dissolver a Assembleia da República, mas avisa nas entrelinhas que este não é um seguro até ao fim da legislatura. Diz que os sobressaltos não são desejáveis, “num tempo como este“, em que a conjuntura é difícil — o que significa que a decisão podia (e poderá no futuro), ser diferente num tempo que não seja este.
Como Presidente da República, escolhi há mais de sete anos tudo fazer para garantir a estabilidade constitucional. E penso ter conseguido. Vindo de um hemisfério político da direita, conviver esses mais de sete anos com Governos de outro hemisfério político, o da esquerda. Sem conflitos institucionais sensíveis. Comigo não contem para criar esses conflitos. Ou para deixar crescer tentativas toadas ou concertadas para enfraquecer a função presidencial, envolvendo-a em alegados conflitos institucionais. Até porque todos sabemos bem como foram e como acabaram esses conflitos no passado. Não haverá, pois, da minha parte vontade de juntar problemas aos problemas que, neste momento, os portugueses já têm.”
O chefe de Estado faz questão de dizer que, mesmo vindo da direita, foi sempre cooperante e um parceiro de governos de esquerda, todos eles liderados por António Costa. Até aqui, regista Marcelo, não tinha havido nenhum conflito “sensível” entre ambos. Isso mudou. Ao mesmo tempo que garante (numa leitura literal) que não começará a ser uma espécie de líder de oposição em Belém, deixa uma ameaça de forma velada, lembrando como acabaram os “conflitos no passado” entre Belém em São Bento. É uma referência à oposição permanente de Mário Soares à última maioria de Cavaco Silva (que levaria o PS ao poder e o PSD a uma secura de sete anos de poder), ao conflito Eanes-Soares (que levou a bancada do PS a mínimos históricos provocados pelo PRD) ou mesmo ao conflito Sampaio-Santana (que conduziu à primeira maioria absoluta do PS e afastou o PSD seis anos do poder). Numa leitura mais fina, depois da referência a “um tempo como este”, Marcelo volta a dizer que não quer problemas “neste momento”. O que não significa que afaste vir a criá-los mais tarde.
Segunda conclusão: o que sucedeu terá outros efeitos no futuro. Terei de estar ainda mais atento à questão da responsabilidade política e administrativa dos que mandam. Porque até agora eu julgava que sobre essa matéria existia, com mais ou menos distância temporal, acordo no essencial. Viu-se que não. Que há uma diferença de fundo. Assim, para prevenir o aparecimento e o avolumar de fatores imparáveis e indesejáveis de conflito, terei de estar ainda mais atento e mais interveniente no dia a dia, para evitar o recurso de poderes de exercício excecional, que a Constituição me confere e dos quais não posso abdicar.”
Marcelo Rebelo de Sousa vai estar mais presente na supervisão ao papel do Governo. Vai ser um Presidente (ainda mais) interventivo e não terá problemas em ir para a estrada como ator político (pode fazê-lo, por exemplo, com mais etapas do “Portugal Próximo”, o equivalente às Presidências Abertas de Mário Soares). Se o Presidente quiser, tem palco mediático e capital político para ser um segundo líder da oposição. Além disso, faz questão de lembrar mais uma vez: é ele que tem acesso ao botão vermelho para acionar a “bomba atómica” da democracia portuguesa, a dissolução da Assembleia da República. Fica claro que mantém, a partir de agora, a mão na corda da guilhotina. Se Marcelo sempre disse que queria ser um “Presidente à Soares”, agora pode sê-lo também na dimensão de oposição a São Bento.
Para esse efeito, importa ir, ao longo destes mais de dois anos, sinalizando de modo mais intenso tudo aquilo que possa afastar os portugueses dos poderes públicos. No fundo, aquilo que signifique maior deterioração das instituições. Criação ou agravamento de fraquezas na democracia. E na confiança que nela, deve continuar a existir na esmagadora maioria dos portugueses. Isso não pode perder porque, uma vez perdida, é irreversível.”
A intervenção toma aqui mesmo uma forma de ameaça de crítica permanente — quase de governante-sombra. É que Marcelo Rebelo de Sousa promete falar (e agora de forma “mais intensa”) sempre que considerar que a ação do Governo está a debilitar a imagem das instituições. O facto de o Presidente falar na “maior deterioração das instituições”, também não é inocente. Se um dia quiser usar o grande poder constitucional que tem (a dissolução), terá de alegar que está em causa o regular funcionamento das instituições.
São estas as lições do Presidente, de um momento em que a responsabilidade dos governantes não foi assumida, como deveria ter sido com a exoneração do ministro das Infraestruturas. Primeira lição: continuar a ser, como até hoje, garantia de estabilidade do relacionamento institucional com todos os órgãos do poder político a começar nos órgãos de soberania. Segunda lição: ter sempre presente, como último fusível de segurança política, que é o Presidente da República no nosso sistema constituicional, que deve assegurar, de forma ainda mais intensa, que aqueles que governam, cuidam mesmo da sua responsabilidade, da confiabilidade, da credibilidade, da autoridade, tentando que pontuais, mas decisivas correções de percurso, poupem aquilo que ninguém deseja, a começar por mim: interrupções desse percurso. Porque, aí chegados, já será tarde para deixar de agir em conformidade.”
O Presidente da República coloca o semi-presidencialismo a negrito, lembrando mais uma vez que é ele o topo da hierarquia do Estado. “O último fusível”, o último reduto. Coloca depois, uma espada junto à cabeça de António Costa, avisando que se — das próximas vezes — não corresponder a “decisivas correções de percurso” (como agora fez com o não-afastamento de João Galamba), forçará o Presidente a recorrer ao que não quer: a “interrupções” desse percurso. Para Marcelo é claro: ainda há cooperação institucional, mas acabou aquilo que Marcelo gosta de chamar de “solidariedade institucional”.