Paulo Portas foi o mais duradouro líder do CDS, mas o seu “chamamento para a política” aconteceu noutro partido, no PSD. Ou melhor, no PPD — “um nome muito bonito”, que Portas usa “carinhosamente”. Aos 12 anos, inscreveu-se na JSD por “devoção” a Sá Carneiro; aos 14, começou a trocar cartas com o fundador do partido; aos 17, mesmo tendo-o conhecido “escassamente”, ia à sede do governo para por vezes falar uns minutos com o então primeiro-ministro; e aos 18, com a morte de Sá Carneiro, começou a “atenuar” os seus laços com o PSD.
Quarenta anos depois de Camarate, Paulo Portas fala longamente sobre a “radicalidade estratégica” de Sá Carneiro e como ela, depois de um caminho “dificílimo”, o levou à vitória com a AD. A conversa — no programa Sob Escuta, da Rádio Observador — começa com uma carta que o líder do PSD lhe enviou em 1977, quando “era um miúdo”.
[Veja aqui a entrevista completa a Paulo Portas]
Vou ler-lhe uns pequenos excertos de uma carta que Francisco Sá Carneiro enviou em 1977 a um jovem militante da JSD, de 15 anos: “Só a falta de tempo me tem impedido de escrever-lhe mais cedo para lhe dizer quanto tenho apreciado as suas cartas. Há nelas uma lucidez de apreciação e a expressão de uma autêntica linha social-democrata que me dão também satisfação e alegria. O tempo que já passou veio demonstrar a razão que assistia àqueles que, como nós, se não deixaram iludir por argumentos de ocasião, mesmo que vindos de Belém. Um dia espero podermos falar pessoalmente”. Isto diz-lhe alguma coisa?
É possível que diga. Quando a revolução aconteceu eu tinha 11 anos e, apesar de fazer parte de uma família com tradição política muito variada, o que Francisco Sá Carneiro representou para mim foi, de forma metafórica, o chamamento da política. E nessa altura dava-se muito tempo à militância, apesar de eu não ter sequer idade para me transformar em militante de coisa nenhuma, nem sequer de uma juventude partidária. Mas as pessoas posicionaram-se politicamente muito depressa porque os factos eram muito impetuosos. As revoluções são grandes consumidoras de bom senso e o bom senso consome-se depressa. A percepção da ameaça e do risco que tive com aquela idade era muito medida pelo que via a acontecer à minha volta, começando pela minha família. Eu estava a ver tudo ficar do avesso.
E também pelo que via na televisão…
… televisão que era uma só e a preto e branco.
Ficou muito impressionado quando viu pela televisão o célebre discurso de Vasco Gonçalves — e depois havia Sá Carneiro, que o levou a inscrever-se na JSD logo que pôde, aos 12 anos.
Logo que pude. Discuti isso muitas vezes com o meu irmão Miguel, porque porventura o momento em que cada um de nós desperta para a questão política é muito relevante para estabelecer o nosso perfil. Nós vínhamos de uma família com a mesma educação, cuja raiz era uma formação católica, mas o que precipita o empenhamento político no caso do meu irmão terá sido a restrição das liberdades que ele achava que não era aceitável, no meu caso foi o risco de uma nova restrição de liberdades que eu não queria ver. Lembro-me das ocupações de terras, que no caso da minha família paterna foram duras…
… na zona de Vila Viçosa…
… no Alentejo em geral. E lembro-me das ocupações de fábricas. O meu avô era um engenheiro de minas com uma magnífica empresa, muito bem gerida e com enorme responsabilidade social — foi com ele que eu aprendi o que é trabalhar. Lembro-me também das nacionalizações, da colectivização e dos exílios forçados, que eu nunca tinha visto acontecer, incluindo na minha família. Eu gostava de viver num país europeu, gostava de viajar e gostava de poder continuar a viajar, gostava de poder conhecer outros mundos e outras culturas. Além disso, vinha de uma educação nos Jesuítas, portanto tinha sensibilidade para a questão da liberdade de educação — lembro-me de muito novo, com o António Pires de Lima, ter organizado um debate sobre liberdade de educação. Eu tinha esse tipo de percepções — umas na economia, outras na agricultura, outras no caos. Nunca achei que do caos viesse grande produtividade. Em Portugal normalmente os regimes caem porque não há quem os defenda, já aconteceu assim com a monarquia e a 25 de Abril de 1974 havia quase uma unanimidade a favor de uma evolução. O problema foi o dia seguinte e foi o processo revolucionário. Desde esse momento, e depois por formação intelectual, sempre achei que só há revoluções quando não há reformas e que as revoluções têm sempre um custo — é que partem do princípio de que a História começou ali e de que não existe nada antes, o que é manifestamente não verdade.
Mas o que é que levou um miúdo de 12 anos a convencer-se que Francisco Sá Carneiro é que era a pessoa que podia impedir isso?
É uma grande pergunta porque ele, se olharmos a critérios modernos, não era sequer um orador excepcional — mas tinha uma radicalidade estratégica que era a única forma de dar ao país um equilíbrio que ele estava a perder. A memória que eu tenho é que Sá Carneiro era uma pessoa capaz de dizer “O caminho é por ali, não é por aqui, e eu não faço compromissos quanto ao sentido essencial do caminho”. E foi isso que a mim me mobilizou. Também acontece que o PPD — uso a expressão carinhosamente, porque é um nome muito bonito, que depois seria mudado em função de contingências tácticas — nasceu no início de Maio, o CDS só nasceria em Julho.
Essa diferença de tempo foi fatal.
Foi determinante para saber quem liderava que espaço. Lembro-me de um dos irmãos do meu pai: quem lhe disse para ir fundar, com mais outras pessoas dos chamados grupos de casais da Igreja, o PPD no Alentejo foi o senhor arcebispo. Que disse: “É preciso que se movimentem, é preciso que se mobilizem, é preciso que se empenhem, porque é preciso construir um partido que possa receber gente moderada e gente de bom senso”. O CDS nasceu tarde, desse ponto de vista, mas também tem a sua razão de ser. Mas não queria deixar de responder à pergunta mais difícil que você fez, que é: qual era a fonte do carisma dele? Era inspirador, sim. Não fazia parte daqueles que tinham o carisma do verbo, ou um verbo exaltado — não era o estilo dele, era seco. Nem era daqueles que só receberam o carisma pela graça do Estado, que é uma outra possibilidade de o ir buscar. Ele era a única legitimidade democrática ativa do centro para a direita em Portugal. Ele e a Ala Liberal.
Tinha essa memória da Ala Liberal, lembra-se de o seu avô falar sobre esse período?
Lembro-me de muitas discussões em casa porque o meu avô era um homem do Estado Novo e os meus tios e pai eram ou de uma nascente oposição católica ou de uma nascente oposição mais progressista — e isso levava a controvérsias à mesa, sempre respeitadas e respeitadoras, mas levava a controvérsias. Por isso, eu não comecei a ouvir falar de política só depois do 25 de Abril. Fosse como fosse, o ponto sobre a Ala Liberal é muito importante. Em Espanha sempre houve direita democrática anti-franquista, era aquela que se juntava à volta do conde de Barcelona e da restauranção monárquica, num sentido de monarquia constitucional europeia. Em França, quem fez a oposição à ocupação nazi, além do Partido Comunista, foi o general De Gaulle, que era um conservador moderno. Em Inglaterra, para não ir mais longe, quem liderou o esforço de guerra contra o totalitarismo foi um conservador, foi Churchill. Em Itália, quem reconstruiu o país depois da guerra foi a Democracia Cristã, que tinha sido protegida pelo Vaticano quase pessoa a pessoa durante o fascismo italiano.
Cá não tínhamos isso.
Não tínhamos essa tradição. E quem a tinha, quem garantia ao país a existência de um patriotismo liberal e democrático era Francisco Sá Carneiro e quem o acompanhou na Ala Liberal. Acho que esse é o momento fundador do que veio a ser o PPD e do que veio a ser a AD. No fundo, a AD era uma espécie de Ala Liberal popular e democrática.
Durante aqueles anos, Sá Carneiro teve que resolver uma série de problemas no partido, até chegar à AD, e é interessante porque a dada altura o Paulo Portas começa a escrever-lhe cartas e nessas cartas vai tocando nesses pontos.
É preciso pôr em contexto da idade. Mas a revolução obrigou todas as pessoas, fosse em que quadrante fosse, a uma sobredose de empenhamento. Era muito frequente ir a comícios no meio do Norte, ir a congressos…
Um dos problemas que Sá Carneiro teve logo no início foi uma vertigem em algumas alas do PPD pelo PS.
O primeiro grande momento fundador é a Ala Liberal — e, se não tem sido a Ala Liberal, a vida do centro-direita em Portugal teria sido muito mais difícil. Era preciso ter quem pudesse apresentar-se ao país com garantias — não passadas por terceiros mas pelo seu próprio testemunho — de que acreditavam num Portugal democrático e europeu. O segundo momento fundador é o nascimento do PPD. Se reparar bem, é uma obra para 40 anos e seguramente para muitos mais porque o PPD foi sempre uma de duas coisas no regime democrático: ou chefe de governo ou chefe de oposição. Ora, liderar o Governo ou liderar a oposição são os pólos decisivos do funcionamento de um regime democrático.
Mas para isso primeiro foi preciso libertar-se da tutela do PS.
Sá Carneiro foi o homem que liderou uma coisa de que o país precisava como de pão para a boca, que era a certeza de que Portugal era governável sem a esquerda e com uma Constituição mudada. E isso é a fundação da AD.
Numa das cartas que escreveu a Sá Carneiro falava da “existência de ‘esquerdistas inteligentes’ no PSD que mais não são do que submarinos do PS”…
É capaz disso. Sabe que a gente quando tem essas idades tem militâncias um pedacinho fanatizadas, se quiser…
… mas isto era real, havia muita gente que achava que o PSD devia estar junto do PS.
O PPD era um partido muito grande, como ainda hoje, sempre teve tensões. Mas era preciso perceber o que era Portugal em 1975. Em Portugal estava tudo puxado para a esquerda, até os nomes dos partidos. O CDS chamava-se “Centro” e devia representar a direita democrática; o PSD era liberal, basicamente, e chamava-se “social-democrata”… Os nomes dos partidos só começavam a acertar a partir daí. E todo o país foi puxado violentamente no sentido da revolução. Mas o mainstream dos portugueses mediu-se na eleição para a Assembleia Constituinte, em que as forças revolucionárias foram magras e escassas; e em que as forças que queriam um país muito mais moderno, muito mais evoluído, muito mais constitucional, muito mais liberal, muito mais europeu, eram esmagadoramente maioritárias. Foi aí que se mediram as forças entre a legitimidade democrática e a legitimidade revolucionária. Se não fosse o voto popular…. Nós estivemos muito perto de ficar entregues a uma ditadura comunista. As pessoas hoje não têm noção disso, acham isso quase um facto exótico do passado, mas o Conselho da Revolução queria governar o país independentemente da vontade do povo. E queria que o povo fosse radicalmente para um lado, contra a vontade da maioria. Sá Carneiro teve sempre uma preocupação: ele, ao fazer a AD com Freitas do Amaral, Gonçalo Ribeiro Telles e os Reformadores — eu sublinho este “e” — colocou-se numa posição central do sistema político. Ele unificou o centro e a direita por acordo e por compromisso e teve a preocupação de ter à esquerda dele um quarto pilar que vinha de gente que tinha colaborado com o PS mas queria reformar o país…
… António Barreto…
… Francisco Sousa Tavares, Medeiros Ferreira…
Até porque para o PSD aceitar essa aliança com o CDS…
… ele teve primeiro que a propor ao PS. Francisco Sá Carneiro unificou o centro e a direita democráticos em Portugal, onde havia dois partidos fortes, o PPD e o CDS. Trouxe uma velha tradição monárquica democrática, e também ecológica, para essa AD, que era à época o PPM de Gonçalo Ribiro Telles. E depois foi buscar um pilar à sua esquerda que eram os Reformadores. Era isto a AD. Era uma constelação muito grande que ele chefiava naturalmente porque acho que conseguiu ter uma coisa essencial em política: todos aceitavam a liderança dele como a melhor. Agora: foi um caminho dificílimo para chegar aí. Com muitas dissidências, muitas rupturas. Como o país estava completamente desequilibrado – entre democracia e revolução, para o lado da revolução; e entre direita e esquerda, para o lado da esquerda e da esquerda da esquerda — ele tinha que usar aquilo a que eu chamo uma radicalidade estratégica para equilibrar o país. Ele nunca teria conseguido fazer a AD como movimento triunfante se não tem tido essa capacidade de dizer “Mesmo que eu perca muita gente que está comigo, mesmo que o partido não queira, acho que o caminho é por aqui e não por ali. E não vou fazer concessões”. Porventura, a concessão mais larga que ele terá feito, não sei com que grau de reserva tática, foi o voto da Constituição. No meu caso, foi o que me aproximou mais do CDS como formação política, embora eu nunca me tenha distanciado do líder em que acreditava, chamado Francisco Sá Carneiro. Eu conheci-o muito escassamente, como há de imaginar. Eu era um miúdo — um ativista, dir-se-ia hoje.
Na altura da AD, o grande adversário político de Francisco Sá Carneiro era o general Eanes.
Era o Conselho da Revolução. É uma coisa que os jovens de hoje nem sabem já que existiu. O país era governado por uma entidade não eleita chamada Conselho da Revolução, que entendia que era superior a qualquer outra lei.
Sim, mas o general Eanes servia de aglutinador disso tudo e era visto como um dos grande adversários.
Em certo sentido, é um desencontro histórico. Porque o PPD faz parte do grupo de partidos democráticos que apoiou Eanes em 1976. Apoiam Eanes para se libertarem da tutela imediata do Conselho da Revolução.
Mas Eanes simbolizava a permanência dos militares na vida política portuguesa.
Hoje em dia, olhando para o general Eanes, obviamente ele nunca foi um esquerdista. Outra coisa é saber se era ainda tributário dessa legitimidade militar.
Mas, tentando não olhar para o general Eanes com os olhos de hoje…
… sim, foi a última batalha de Francisco Sá Carneiro. Mas, como dizia o Vasco Pulido Valente com muita ironia , havia uma divergência entre a estratégia e a táctica entre 1979 e 1980. Sá Carneiro tinha sido um belíssimo primeiro-ministro, tinha ganho, aí sim, a graça de Estado, tinha destruído todas as teorias que o queriam radicalizar, diabolizar, tinha provado ser um primeiro-ministro europeu entre os melhores naquele curto espaço de tempo, fez um governo com bastante qualidade e depois quis convencer o país de que não era possível governar com o general Eanes como Presidente. Ora, ele tinha governado com o general Eanes como Presidente e, apesar do general Eanes, tinha sido um bom primeiro-ministro.
Mas esta animosidade com Eanes já vinha de trás. Aliás, o próprio Paulo Portas escreveu uma célebre carta ao Jornal Novo chamada “As Três Traições”, quando tinha 15 anos, e por causa disso o general Eanes processou-o.
E depois tudo isso ficou apaziguado naturalmente porque eu não tinha imputabilidade, não tinha idade.
Mas chegou a ser ouvido em tribunal.
Sim, sim, sim.
E há uma nota que deixa a Sá Carneiro quando um dia foi vê-lo quando ele era primeiro-ministro em que faz questão de escrever: “Eu não tenho simpatia pelo general Ramalho Eanes. Solenemente o declara e deixa um abraço pela visita frustrada, Paulo Portas (jovem quase maior)” — estava quase a fazer 18 anos na altura.
Os meus pais deviam estar bastante preocupados com essas idas frequentes às sedes do partido, porque eu devia estar a estudar. Sobre Eanes: o candidato da AD não ganhou as eleições presidenciais de 1980. E, se Sá Carneiro não tivesse morrido, isso ia colocar um problema para o qual nenhum de nós tem resposta. Porque o país queria Sá Carneiro como primeiro-ministro, queria a AD como governo, mas também queria o general Eanes como Presidente. E o que é que Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral fariam se tivessem sido mal sucedidos nas eleições presidenciais?
Sá Carneiro tinha alguns planos: o mais imediato era deixar de ser primeiro-ministro.
O que confirmava a chamada radicalidade estratégica. Mas não era um problema de intransigência, ao contrário do que se dizia. Havia sempre tentativas de o diabolizar, havia sucessivos assassinatos de carácter. E ele sempre sobreviveu a isso. Com grande secura, com grande elegância. Ele tinha muita fidalguia na forma de fazer política e isso também fazia parte do seu carisma.
Uma das principais polémicas, durante o governo da AD, foi aquela célebre questão da dívida ou da suposta dívida ao Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa.
Ainda hoje, quando vou ao Alentejo por causa da família do meu lado paterno, vejo escrito nas paredes “Barreto e Portas para a forca”. O Portas era o meu tio Carlos, que estava a ajudar o António Barreto a fazer a contra-reforma agrária, as devoluções de terras. Tenho uma noção testemunhal do difícil que tudo isso foi, do papel que tinha a GNR, da importância que teve Francisco Sousa Tavares nos artigos que escrevia na Capital para defender que o país tivesse direito a que houvesse respeito pela propriedade privada. E ainda há algumas coisas no Alentejo com “Paga o que deves”, relativas a Sá Carneiro. Tudo isso era, dir-se-ia hoje, um fake com promotores bastante organizados — não havia dúvida nenhuma de que o PCP queria atacar Sá Carneiro por aí. Mas ele sempre sobreviveu a isso. Sá Carneiro era o contrário de um populista, era um homem que fazia opções difíceis, não imediatamente compreensíveis por muitos. Não andava à procura de likes. Tinha uma ideia sobre o seu caminho: quem quisesse ir com ele ia, quem não quisesse ir com ele não ia. E ou saía ele ou saíam outros. Mas ele estava certo: o país nunca teria chegado à alternância democrática, agregada por um lado no PS e por outro no centro-direita, na AD, se não fosse Sá Carneiro
Quando se deu a polémica da dívida, Sá Carneiro esteve muito hesitante sobre como reagir…
… Imagine se fosse hoje…
… E depois colocou um processo em tribunal e a dada altura apresentou os documentos com a sua defesa ao juiz, mas antes disso passou-os a um jornalista, que foi o Paulo Portas — passou-os a si, para escrever uma notícia no jornal Tempo.
Não era certamente ele que passava… Eu decidi muito cedo estudar e trabalhar, porque queria a minha própria autonomia — é uma velha tradição da minha família, nós não ficávamos à espera dos 21 anos, nem dos 18 anos. E se cada um tinha projetos de vida tinha que os construir. Houve um concurso qualquer para estagiário — ainda se escrevia em máquinas de escrever antigas e lembro-me de o meu avô me ter dado a primeira— e eu fui estagiar no Tempo. Mas todas as tentativas de diabolizar Sá Carneiro eram fruto daquela presunção de superioridade moral que muitas vezes a esquerda tem em Portugal. O facto de a esquerda diabolizar muitas vezes os seus adversários, em todo o caso, não autoriza que se estabeleçam correlações entre esses adversários, porque são pessoas muito diferentes. E o ataque a Sá Carneiro era absolutamente infundado, era uma demonização e uma diabolização que uma certa esquerda fazia porque, no essencial, foram Mário Soares, Sá Carneiro e a Igreja Católica que evitaram que Portugal fosse um país comunista em 1975 e 1976. É tão simples quanto isto. Nunca se esqueça que Sá Carneiro tentou ter sempre alguma cumplicidade, pelo menos tática, com Mário Soares, porque ambos apoiaram Eanes, presumo que ambos acabaram por se arrepender mais tarde, por razões diferentes. Sá Carneiro, antes de propor a AD propôs o Bloco Central a Mário Soares — é um pequeno facto esquecido. Ele obriga Mário Soares a dizer-lhe não e ganha espaço para poder fazer…
… Acha que na realidade ele não queria…
… Eu acho que ele queria a AD.
A proposta era Mário Soares candidatar-se a Presidente da República e Sá Carneiro a primeiro-ministro.
Nós hoje tomamos a vida por muito fácil, mas estava muita coisa em risco naquele momento. Nós tínhamos uma Constituição que era completamente coletivista, tínhamos o Conselho da Revolução a dizer o que se podia e não podia fazer, o ministro da Defesa era quase um subordinado do Conselho da Revolução… Nós não éramos, a nenhum título, um país europeu e democrático. Isso teve que se fazer com apoio popular e com muita radicalidade estratégica, tanto de Mário Soares como de Sá Carneiro. E ele ocupou uma parte significativa do centro político em Portugal, tendo unificado o centro e a direita.
Sobre essa unificação do centro e da direita: nesta fase final, em 1980, quando já se começa a perceber que as eleições presidenciais vão ser perdidas, Sá Carneiro chega a ter pelo menos uma conversa com Diogo Freitas do Amaral sobre a possibilidade de não só deixar o governo mas deixar também o PSD — ele achava que o PSD não lhe perdoaria…
… deixar o poder. Imagine o que é dizer a um partido de poder: “Nestas circunstâncias, não”.
Sá Carneiro e Freitas do Amaral chegaram a falar na possibilidade de fazer um novo partido.
Não sei o suficiente sobre isso, mas acredito que possa ter sido assim e houve muitas pessoas próximas que diziam que sim. Uma coisa que Fraga Iribarne conseguiu em Espanha foi que a organização da democracia andasse à volta de um grande partido liberal e conservador e de um grande partido socialista e social-democrata. Em Portugal, isso não aconteceu porque em vez de uma transição tivemos uma revolução. Em princípio, devia ter havido um único partido liberal e conservador, de grande espectro, uma espécie de grande casa comum, se não tem acontecido a separação entre primeiro o PPD e o CDS mais tarde. Estas coisas dependem muito do factor humano. Acho que entre Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral a química era tão boa, o sentido de causa comum era tão forte, que talvez no momento seguinte viesse a haver um grande partido, com muita diversidade, com muitas sensibilidades, mas que fosse um grande partido no centro-direita entre Sá Carneiro, Freitas do Amaral e muitos outros. Não aconteceu, mas admito que fosse possível. Hoje em dia dir-se-ia que unificar significa perder franjas, mas à época não era assim — o país ou era democrático ou era revolucionário, ou era europeu ou era uma coisa que acabaria numa espécie de sovietização. Não era nada menos do que isto que estava em causa. Foi o risco de o meu país ser um país comunista que me levou a ter uma vocação política — disso não tenho dúvida nenhuma.
E porque é que Sá Carneiro, com todas essas qualidades que hoje em dia são unânimes…
… Nunca se esqueça que em Portugal as medalhas de mérito são normalmente atribuídas quando as pessoas já não correm o risco de incomodar ninguém.
Mas porque é que ele foi tão incómodo para o próprio PSD? Porque é que teve tantas cisões, tanta gente a sair?
Porque há uma certa parte de Portugal que tem dificuldade em dizer “não” e ele sabia dizer “não”. Além disso, a construção faz-se muitas vezes com desconstrução — é preciso voltar a pôr os contadores a zero, recomeçar, fazer outra vez o caminho. Mas a verdade é que ele alargou enormemente o seu espaço. A primeira votação da AD é absolutamente inesperada para a esquerda, porque a esquerda idealizava um país que não existia, e idealizava uma espécie de direito divino a governar o país independentemente da sua vontade. Francisco Sá Carneiro trouxe para o centro-direita a legitimidade da Ala Liberal e, por isso, nunca foi credível a acusação de que ele queria fazer uma involução — porque o que ele tinha sido, com outros, era o rosto da evolução dentro do marcelismo para uma democracia. Já viu a enorme vantagem que isto significou? Nenhum ataque a Sá Carneiro dizendo “Este senhor quer voltar ao Antigo Regime” era credível. Porque ele tinha rompido com o Antigo Regime. Depois, ter feito um partido que até hoje é um dos pólos do sistema. E a seguir ter unificado o centro e a direita. Em certo sentido, ele é um líder político breve porque ele não teve muitos anos — morre no momento mais alto da sua vida política. A mim, deixa-me triste que as instituições públicas portuguesas não se tenham empenhado o suficiente para saber como eles morreram. Mas, em qualquer caso, é uma grande carreira política. Ele é fundador do patriotismo liberal e democrático moderno em Portugal, de que muita gente é, nem que seja um grão de areia ou uma gota no oceano, tributária. Nós beneficiámos disso. Se não tivesse sido essa causa e essa luta teria sido difícil.
Em relação a Camarate: se, na altura, se tivesse chegado à conclusão rapidamente de que tinha sido um atentado, politicamente, o país tinha aguentado?
A descoberta da verdade — se é possível descobri-la — sobre como é que morre um primeiro-ministro e um ministro da Defesa e mais um conjunto de pessoas que os acompanhavam, não é uma consideração táctica — é dever de um Estado decente procurar saber como é que aconteceu. Da mesma maneira que sabemos que ainda hoje não há certezas ou evidências, por exemplo, sobre a morte de Olof Palme, em Estocolmo, numa noite em que ele tinha ido ao cinema e é morto. Não há nenhuma dúvida, em todo o caso, de que foi um atentado. E há muita evidência de que Camarate foi um atentado, sobretudo sustentado por muito trabalho de muitas comissões parlamentares de inquérito e de um conjunto de bravos que nunca se resignou com teses excessivamente fáceis, que pretendiam arquivar o assunto como um acidente — ou dizendo que, se não foi um acidente, não lhe toquemos. Acho que isso nunca beneficia.
E para si, o que é que mudou na sua cabeça com a morte de Sá Carneiro?
Eu, como era Sá Carneirista — e até, em certos momentos, devotamente Sá Carneirista — a perda de Sá Carneiro acabou por significar uma rarefação da minha ligação ao PPD. O meu chamamento para a política foi Sá Carneiro. Quando Sá Carneiro morreu isso acabou por produzir uma consequência porque eu gostava do PPD — e ainda hoje gosto, falo disso com muito carinho —, sabia que o PSD era um partido complicado, a morte de Sá Carneiro atenuou os meus laços com o PPD. Mas não atenuou a força do PPD, como sabemos — o PPD chegaria a uma maioria absoluta monopartidária uns anos depois.
Com Cavaco Silva…
… que já estava no governo de Sá Carneiro. Esse é outro aspecto muito interessante: olhar para a composição do governo de Sá Carneiro. Ele tinha pessoas de uma elevadíssima qualidade intelectual, profissional, cívica. Suponho que não gostava de pessoas que lhe dissessem que não eram políticos, mesmo estando num governo — o que é uma contradição nos seus termos.
Mas mesmo aí, no Governo da AD, também teve problemas com os ministros. A dada altura, por exemplo, Cavaco Silva queria sair.
Em todo o caso, se olhar bem, é gente de altíssima qualidade. E foi um governo que mobilizou imensa esperança no país. Nós tínhamos a economia destruída, completamente virada do avesso. Tínhamos que reabilitar a confiança, tínhamos que nos aproximar do perímetro europeu, tínhamos que ir buscar investimento, tínhamos que garantir aos investidores que em Portugal a propriedade privada era respeitada… Ninguém imagina o trabalho ciclópico que eles tiveram.
Era outro país.
Sim, era outro país. E corremos o risco de que fosse definitivamente outro país, curiosamente com a cooperação de um dos mais preclaros secretários de Estado dos Estados Unidos, Kissinger, por comparação com um embaixador americano em Portugal que foi um grande aliado de Mário Soares e de Sá Carneiro, chamado Carlucci. Porque a certa altura os americanos acharam que Portugal era um caso perdido, ia ser um país comunista e serviria de vacina para os demais membros da NATO. Eu agradeço essas teses intelectuais, mas agradeço também que o meu país não seja cobaia disso. Nenhum de nós estaria aqui se as coisas têm corrido de outra maneira. Não tenha nenhuma ilusão sobre o que teria acontecido em 1980 se em vez de triunfar Sá Carneiro tivesse triunfado o Conselho da Revolução. Provavelmente, uns estariam exilados, outros seriam presos, outros seriam dissidentes, silenciados ou silenciosos. Teria sido um horror, mesmo contando com a brandura de costumes portuguesa. Teria sido um horror se os democratas que lideravam os principais partidos não tivessem sido corajosos e bravos — porque era necessária muita bravura naquele tempo, as pessoas não fazem a mais pequena ideia hoje do que isso foi. Foi mesmo um risco muito grande.