Não é automobilista, mas tem lutado sempre pela pole position para conseguir vencer. Não é um animal, mas às vezes sente-se como um leão na selva. Um leão velho rodeado de felinos mais novos, que sonham ser reis. E dita a lei que não se pode deitar à sombra, caso contrário arrisca-se a ser comido pelos aspirantes à coroa.
José Fragata não é um homem das letras, mas recorre a metáforas para pintar o cenário da especialidade que escolheu e assim explicar o porquê de continuar a ir ao bloco, apesar dos 63 anos de idade, dos mais de 30 como cirurgião cardiotorácico e de um cargo de direção que lhe serviria de passaporte para bem longe da mesa de operações, se assim o quisesse.
No currículo acumula mais de 10 mil cirurgias, muitos casos de sucesso, mas também alguns erros. Nunca negligência. E se mais de 30 anos é tempo suficiente para aprender a manobrar corações sem grande dificuldade, não chega para aprender a lidar com a dor que fica sempre que um doente sai do bloco sem vida.
Em entrevista de vida, o diretor do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, abriu um pouco do próprio coração e falou-nos também dos tempos de criança, da liberdade com que cresceu, das vantagens e desvantagens de trabalhar com a mulher, do competitivo mundo da cirurgia cardiotorácica e dos passeios no veleiro, uma verdadeira lufada de ar fresco que lhe permite descomprimir e tentar compensar a “qualidade de vida miserável” que tem.
Ama o que faz, mas confessa-se cansado e já se vê a encostar o bisturi, até porque, à semelhança dos futebolistas, acha que deve sair antes de começar a cair. E dar lugar a outros. No dia em que despir a bata sentirá “pena”, mas também “alívio”, por tirar das costas o peso da responsabilidade de ter o coração dos outros nas mãos. E nesse dia será apenas avô e continuará a velejar “para onde haja vento”.
Vou abrir o jogo. Sei que nasceu em 1953, mas não consegui descobrir nada sobre a sua infância e adolescência. Portanto, começo por lhe perguntar onde nasceu e cresceu.
Nasci na outra margem do Tejo, ao pé do Barreiro, numa vila pequenina chamada Alhos Vedros e passei lá os meus primeiros cinco anos de vida. Depois, vim para Lisboa, onde terei estado dois ou três anos, exatamente onde agora é a Culturgest, que era uma empresa de cerâmica. Ainda lá está, aliás, uma chaminé e gostava de brincar na base daquela chaminé. O meu pai era diretor de manutenção da fábrica, e naquele tempo o diretor de manutenção vivia na fábrica. Era interno, residente. No nosso caso, a casa era anexa ao edifício, em frente ao Palácio Galveias. Portanto brinquei muito no Jardim do Campo Pequeno. Depois, o meu pai arranjou um emprego no Porto e a família deslocou-se para o Norte e fiz lá a minha segunda classe, até ao quinto ano do liceu.
Tem irmãos?
Tenho uma irmã que é enfermeira e é mais nova 11 anos. Fui filho único algum tempo, mas depois passou-me. [risos]
E como foi a sua infância? Que memórias guarda?
Sempre tive uma infância absolutamente livre, ligada a viagens, porque os meus avós maternos eram do Algarve, aliás a minha pronúncia é um bocadinho sulista por causa disso. E sempre tive uma vida muito ao ar livre, com praia, caça e pesca. Uma juventude com horizontes largos e um espírito de independência.
E sentiu muito a mudança para o Porto?
Senti imenso, de início. Mas devo dizer-lhe que me custou mais voltar do Porto para Lisboa do que ir, na altura, para o Porto. Estive nove anos no Porto, tenho lá muitos amigos, é uma cidade estupenda. Depois custou-me sair do Liceu no Porto, o D. Manuel, para o Camões, aqui em Lisboa, onde fiz os dois anos antes da Faculdade. O liceu D. Manuel era um liceu com alguma elite. Era um tempo em que as elites eram mais ou menos acarinhadas.
Quando fica claro para si que a Medicina era o caminho a seguir?
Olhe, não sei bem quando. Sei que tenho uma fotografia aos quatro anos de idade, no Colégio ABC, que acho que ainda lá está, ali ao pé da Casa da Moeda, em que eu, numa festa de Carnaval, estou mascarado de médico, com uma luz na cabeça e um estetoscópio e bata branca. Parece que essa ideia de ser médico terá começado muito cedo. A determinada altura a minha mãe teve uma doença crónica e eu acompanhei-a também muito de perto, até com os médicos. E até nas brincadeiras tratava dos animais. Quer dizer, matava os animais. E fazia judiarias a um bisavô, com 80 e tal anos, que tinha Alzheimer: tratava de supostas doenças do cabelo que acabavam sempre a despejar alguma água sobre a cabeça do senhor.
Mas que judiarias?
Judiarias boas, que acabavam com alguns borrifos na careca [risos]. Portanto, sempre houve uma inclinação para a Medicina.
Nunca por pressão dos pais?
Não. O meu pai era engenheiro. Nem havia outros médicos na família, sequer.
Estava precisamente a frequentar o Ensino Superior quando se deu o 25 de Abril. Como viveu o período da Revolução?
De forma relativamente próxima, porque um familiar meu fazia parte do movimento das Forças Armadas. Portanto soube meia dúzia de horas antes de ter acontecido. Nós não acreditámos, achámos que era mais uma nova intentona, mas depois percebemos, a partir das seis ou cinco da manhã, o que estava em marcha e o resto é conhecido. Nesse dia já não fui às aulas.
Mas como foi o dia 25?
Fiquei em casa a ver as notícias com um misto de excitação. Não é todos os dias que se assiste, mais ou menos em direto, a uma revolução. E ainda há aqui um episódio curioso: esse meu familiar passou lá por casa para avisar o que se passava, nós não acreditámos e pediu-me o meu transístor pequenino, com o qual ouviu a senha do Movimento dos Capitães. Para mim ficou perdido em batalha, porque nunca mais o voltei a ver. Portanto ainda participei na Revolução dando o meu transístor, veja o amadorismo destas coisas todas.
Entretanto foi para o Reino Unido.
Antes disso entrei para a cirurgia cardíaca para o Hospital de Santa Cruz. O modelo hospitalar do Hospital de Santa Cruz não volta, provavelmente, a repetir-se no país. Foi, na altura, uma pedrada no charco, verdadeiramente disruptiva. Eram pessoas com treino estrangeiro, cobertas pela influência do professor Machado Macedo. Portanto durante aquele período, para mim que fui o primeiro interno daquele serviço, foi uma lavagem de espírito absoluta. Depois, para me diferenciar em algumas áreas, fui para o Reino Unido, onde estive cerca de quatro anos, e fiz lá uma carreira paralela.
E porque escolheu cirurgia?
Também é uma questão curiosa. Numa determinada fase da minha vida tive a tentação de ficar anatomista. Médico, mas a ensinar. E a minha mulher (as mulheres normalmente são bastante sensatas) disse-me: “Eu vou para a periferia de qualquer maneira”. Isso era a condição para conseguirmos fazer o internato médico juntos e acabei por acompanhá-la. Fomos para Estremoz um ano. E obviamente tive de sair da anatomia. Mas continuei a fazer investigação nas ciências fundamentais, concretamente na circulação pulmonar e, numa bela altura, por volta de 1978, fui ao Algarve a um congresso apresentar os resultados da minha investigação de circulação pulmonar. Na plateia estava um homem que tinha vindo dos Estados Unidos, chamado Manuel Rodrigues Gomes, que era o professor de cirurgia cardíaca do Porto. No fim perguntou-me se queria ir trabalhar com ele para o Porto, mas eu estava em Lisboa, e depois disse-me: “Ó Zé porque é que não vens para a cirurgia cardíaca? Tenho aqui um amigo meu que está a começar o Hospital em Santa Cruz, porque não vais para lá?”. Eu fui ver o hospital e nesse dia fiquei logo de urgência. Portanto foi a minha entrada em cirurgia cardíaca.
Logo assim? Como correu essa estreia?
Foi uma coisa curiosíssima. Ia só ver o hospital, naquele tempo haveria duas ou três pessoas que estavam a abrir o hospital, tinham feito uma cirurgia muito simples, e perguntaram-me “tens alguma coisa que fazer este dias?”. Eu respondi que não e eles disseram-me: “Então podias ficar de urgência que nós estamos cá há três semanas”. E o que é que havia de fazer? Era tão pequenino… E até me lembro que, às tantas, o professor Queiroz e Melo me perguntou qual a marca do meu carro. Eu respondi que era um Fiat e ele disse: “Olha calha bem que o meu também é um Fiat. Como vais ficar de urgência três dias eu levo-te o carro porque o meu foi para a revisão”. Já não tinha nada a perder, liguei à minha mulher e disse-lhe: “Ó Isabel, isto é um sítio muito interessante, os senhores são muito simpáticos, mas fiquei de urgência” e ela: “De urgência? Mas nem sequer pertences ao hospital”. Respondi: “Pois, mas pediram-me para ficar e olha o Dr. Queiroz e Melo foi muito simpático e até nos levou o carro”. Ao que ela respondeu: “Eu acho isso um começo muito estranho”. E foi, foi um começo estranho.
Mas correu bem.
Sim, teve alguns altos e baixos, mas foi uma experiência muito positiva e aprendi muito, desenvolvi-me muito como cirurgião e fizemos muitas coisas boas. Fizemos o primeiro transplante cardíaco em 1986/87.
E como foi o primeiro transplante?
Tínhamos feito um cão ou dois na garagem e lembro-me de o professor Queiroz e Melo ter dito “isto é canja”. E foi.
Canja?
Foi canja, foi fácil. Sabe que esta coisa de a gente ir tendo já alguma idade, e já digo isto com muita serenidade, já esteve nalgumas primeiras. As primeiras não interessam muito, acho que as segundas são melhores que as primeiras.
Porque correm melhor?
Não. Porque fazer qualquer coisa a primeira vez é um achievement [feito] que fica na história, mas o que importa é o que resulta disso. Não é o coração artificial que se pôs há uma semana que importa. O que importa é quantos se põem. O ideal mesmo é fazer as segundas e ao fazer as segundas ser o melhor nas segundas. Neste momento, eu e outro colega de Coimbra seremos talvez os decanos da cirurgia cardíaca no País. Isso é inexorável, é pela idade. E no meu caso em particular estive já ligado a algumas primeiras. Se quer que lhe diga é reconfortante, faz parte da história.
E qual é a sensação de ter o coração de alguém nas mãos?
Tecnicamente é fácil. Numa intervenção cirúrgica concorrem vários sentimentos. Primeiro é o desafio técnico que pode ser maior ou menor — e na minha fase de vida os desafios técnicos vão sendo menores, porque as pessoas vão tendo mais experiência. Já operei 10.000 doentes com as minhas mãos, dos quais estimamos 6.000 adultos e mais de 4.000 crianças. Depois, existe a componente das pessoas. A Medicina parece uma ciência técnica, mas é um ciência social porque trata com pessoas. Aqui no serviço não operamos válvulas mitrais, tratamos doentes com doença mitral. Operamos o doente todo. Às vezes operamos o doente e operamos a família. Porque estas cirurgias são grandes e têm envolvimentos familiares, as pessoas despedem-se das famílias, apesar dos resultados serem bons e a mortalidade ser baixa hoje em dia.
Daí lhe perguntar qual a sensação.
É a sensação de peso e responsabilidade. É mais o medo de falhar e o sentir que estamos a mexer em coisas de uma delicadeza profunda. E, obviamente, quando se faz uma coisa pela primeira vez e debaixo dos holofotes públicos o peso do risco de falhar publicamente é grande.
Toda a gente erra, mas um médico errar…
Como sabe, um dos meus hobbies intelectuais nos últimos 12 ou 15 anos tem sido o erro em Medicina. Publiquei três livros sobre isso. Erros todos nós fazemos. Sabemos por números portugueses que por cada 100 internamentos hospitalares, 12 são derivados de um erro evitável. E houve doentes que terão morrido ou ficado menos bem porque eu não estava à altura das circunstâncias. Isso acontece. Agora, negligência não. Negligência é violar regras da boa prática e isso não me pesa na cabeça.
Mas já errou muitas vezes?
Com certeza. Seria de uma pesporrência muito grande dizer que não errei e que não há doentes que poderiam estar entre nós se estivesse estado mais à altura das circunstâncias.
E como se lida com isso?
Muito mal. Pessimamente. Sabe que os cirurgiões têm essa situação, de poder levar alguém vivo para o bloco e trazê-lo de lá morto. Os médicos em geral não, tratam uma doença, se não resultou nunca se percebe muito bem o que foi médico e o que foi doença. Mas os cirurgiões têm uma relação de causa-efeito. Aliás, os doentes dizem: se era para o matar, porque é que o operou? Hoje em dia, a mortalidade nos blocos é muito baixa: podemos perder dois doentes em cada 100, mas, em boa verdade, lida-se… eu lido muito mal com isso.
Ainda hoje?
Acho que piorou. Para mim. Quando vamos envelhecendo, e há muitos artigos sobre o cirurgião que envelhece e que é levado a um ponto em que não temos a mesma capacidade técnica — aliás fisicamente começamos a decair, na vista, reflexos –, e vamos compensando durante um período da nossa vida com a experiência grande que temos. Mas, em termos gerais, lido mal com isso. E lido cada vez pior porque permito-me a mim próprio errar menos. Talvez seja mais exigente comigo. Não aceito hoje alguns erros, nem a mim nem aos outros.
É muito exigente com os outros?
Sou. Acho que os meus colaboradores provavelmente não gostam de mim, sou muito exigente. Tenho a sensação que os meus colaboradores não gostam de mim. Mas também não sou pago para ser popular. Sou pago para gerir e para ser sério. Portanto, não me preocupa ser populista no serviço. Tento ser sobretudo muito protetor em relação aos cirurgiões mais novos. O grande capital do serviço são os jovens. Tenho um colega americano que dizia: quando faço uma operação bem feita salvo uma vida, mas se ensinar um dos meus miúdos a operar bem um doente salvo milhares de vida.
E é essa a filosofia.
É. É a filosofia do serviço. Nós, aqui no serviço, temos prioridades: a primeira é o cuidado aos doentes, mas a segunda é o ensino e o treino das pessoas. Este serviço não é um serviço em que eu só opero. Há cá pessoas que operam tão bem, ou provavelmente melhor até já do que eu.
E partilha o seu conhecimento?
Estou sempre a ensinar. E gostaria, um dia que deixasse este serviço, que o serviço ficasse melhor e mais bem entregue e que eu ou qualquer um dos meus familiares pudesse vir a ser operado aqui. Tenho aqui no serviço de cirurgia cerca de 120 pessoas a trabalhar. Tenho 12 cirurgiões e existe imensa competição. As pessoas competem por oportunidades. A competição na cirurgia cardíaca é como na Fórmula 1, é muito forte.
Mas esta competição é particular da cirurgia cardíaca?
Não. Mas esta especialidade é muito competitiva.
Mas porquê?
Nos anos 70/80 os cirurgiões cardíacos tinham secretárias bonitas, guiavam Porches [pausa]… ainda guiam. E, de facto, há muita competição, há muitos desafios e as pessoas sentem-se picadas. Mas o nosso poder hoje é muito menor do que era. A Medicina é uma profissão de privilégio. Aliás, em Inglaterra, onde trabalhei, ou nos Estados Unidos, quando um cirurgião era contratado e podia operar um doente dizia-se que tinha privilégios cirúrgicos. Porquê privilégios se a pessoa está a trabalhar? Porque a Medicina é a única profissão que a sociedade legitima para mexer no corpo dos outros. Quando opero um doente e lhe mexo no coração e nos pulmões, no que quer que seja, isso, para mim, é um privilégio. Mas, como na vida, os privilégios têm algo em troca e aquilo que a sociedade nos exige é seriedade. É isso que as Ordens devem regular. Talvez a Medicina seja única, no sentido em que verdadeiramente somos os únicos com direito de profanar o corpo dos outros. Quando o médico viola as regras da prática não é distinguível de um carniceiro, de um criminoso.
Mas há muita proteção em relação ao médico.
Já foi pior do que é agora. E o papel da Ordem é exatamente esse. Acho que a Ordem deve estar antes dos tribunais e existem já no conselho disciplinar históricos imensos. Às vezes, provar o que é negligência é difícil, mesmo juridicamente. Mas as Ordens profissionais têm que regular o nível e a seriedade da profissão, porque só assim se justifica que tenhamos privilégios.
Disse há pouco que acha que os seus colaboradores não devem gostar de si e que não está aqui para ser popular. A verdade é que fontes anónimas têm dito aos jornais que o professor é conflituoso. Que fundamentos tem esta acusação?
Sabe, não tenho grande respeito por pessoas que não dão a cara. A minha experiência no Reino Unido e o meu contacto com os países anglo-saxónicos marcou-me muito a mim e à minha família. Normalmente chamo as coisas pelos nomes e as pessoas não gostam desse afrontamento. Passo visita ao serviço todos os dias e, na visita, as perguntas que faço às pessoas são sérias. Um diretor de serviço não pode ser um tipo porreiro, tem de ser um tipo sério. O chefe não tem de ser um bonacheirão, porque se não as coisas não andam.
Mas também não tem de ser conflituoso.
Eu não sou conflituoso. Antes pelo contrário, fujo tremendamente dos conflitos. Não gosto de conflitos. Para quem acredite, sou leão e caranguejo. E acho que a minha costela de caranguejo me leva a fugir dos conflitos, mas há uma coisa que é certa: quando chega o momento certo e é preciso afrontar as coisas, se houver necessidade de conflito, haverá. São formas de estar na vida. Guio-me por princípios profissionais e morais e tento tornear as coisas e criar consensos, mas se o responsável sou eu, no final do dia eu assumo a responsabilidade plena e dou a cara sempre. Pelo bem e no mal. Quando é preciso arbitrar sobre férias, escalas ou saídas, na minha cabeça primeiro está o interesse do doente, depois o interesse do ensino dos internos, depois o serviço como um todo e no final o interesse do próprio. Nós temos a obrigação de nos tratar bem aqui, internamente, mas não vamos confundir hierarquia de valores. Quando há pessoas que chamam esse tipo de coisas pelo nome obviamente que lhes podem chamar conflituosas, mas é o que é.
Disse-me que, com o passar dos anos, cada vez é mais fácil tecnicamente lidar com as situações no bloco, mas costuma colocar música clássica enquanto opera. Porquê? Para o acalmar?
Se reparar bem, porque é que nas batalhas, nos funerais e nos momentos solenes há música? Porque a música ajuda a concentrar os seres humanos numa determinada tarefa. No bloco operatório, uma operação é uma tarefa. O objetivo é que aquele doente fique bem. E o doente adormeceu, numa fragilidade total, a pensar que ia ficar melhor. Costumo dizer que não há ninguém mais frágil e desprotegido que um doente nu, anestesiado e coberto de betadine numa marquesa. Portanto, uma pessoa dessas merece todo o respeito possível. Portanto, o bloco é um sítio de concentração, não é um sítio de laxismo, é um sítio de disciplina. Não tem de ser um sítio para a gente se sentir mal, mas o primeiro objetivo não é que a gente se sinta bem, é que faça a tarefa. A música ajuda a essa concentração. Por outro lado, quando há música as pessoas tendem a calar-se e isso é bom, porque nós somos latinos e ouvem-se muitas vozes. Mas tem de ser música de forrar paredes, de elevador de hotel, porque se for música com palavras a gente distrai-se.
Mas nesta última e mais mediática situação — a do implante do coração artificial — não houve música.
Porque nem sequer quis arriscar a poluir o ambiente. Estava muita coisa em jogo. Está sempre, nós somos todos iguais, mas há uns mais iguais que outros. Há momentos… Quando a pessoa vai fazer a coisa pela primeira vez e a desbravar algum caminho, sente o peso todo mais esse. É o terceiro fator: o fator ambiente. Neste caso o fator ambiente foi forte.
Então quer dizer que esta primeira vez o marcou.
Todas marcam, mas depois a gente esquece.
E foi particularmente difícil?
Não. O senhor está bem, vamos hoje tentar levá-lo lá a beber um cafezinho. São pessoas muito doentes, com várias doenças associadas. Isto não são peanuts. Mas espero, honestamente, ter sucesso.
E ainda sente alguma excitação ou algum nervosismo quando entra no bloco?
Não. Mas todos nós, às vezes, na cirurgia, perante uma dificuldade técnica, sentimos o peso do desafio, por isso é que a cirurgia cardíaca é tão competitiva, andamos constantemente em desafios. Muitas vezes lidamos com coisas intransponíveis, mexemos em estruturas vitais e, às vezes, há situações tremendamente ameaçadoras para o doente e obviamente para nós. Nós podemos ser capazes das maiores maravilhas e podemos ser capazes das maiores desgraças e isso é uma coisa que ainda hoje me assusta. Devo dizer-lhe uma coisa. Amando profundamente a minha profissão, no dia que deixar de fazer isto vou sentir dois tipos de sentimentos: pena e um tremendo alívio.
Disse-me há pouco que conheceu a sua mulher na faculdade.
Estudámos juntos.
E têm trabalhado juntos toda a vida. Pergunto-lhe como é ter no bloco a sua mulher que é também a colega anestesista?
É bom e mau. É bom porque a pessoa sabe que tem um aliado de profissão absolutamente inquestionável e portanto a doutora Isabel Fragata, diretora de anestesia, nestes anos tem sido uma componente deste binómio que nos tem tornado invencíveis, uma dupla de sucesso. Sabe que o que mantém muito os casamentos acaba por ser a equipa que se faz.
Mas normalmente essa equipa é em casa…
Pois, o que é maçador: a equipa de casa transforma-se para aqui. Portanto, é bom por um lado, porque potencia e nos momentos críticos, nas primeiras vezes, a Isabel tem estado sempre e, para mim, isso tem sido um privilégio enorme. Por outro, é mau, porque no bloco ela trata-me pior do que trata os outros cirurgiões. É muito exigente. E herdamos ainda as guerras um do outro: quando se tem uma guerra com a doutora Isabel Fragata respinga para o Fragata, e vice-versa. Nesse aspeto é uma porcaria, uma desgraça, mas temos vivido muito bem com isso.
Disse que o trata pior?
É mais exigente. Se eu já operei 10 mil doentes, a doutora Isabel deve ter anestesiado 30 ou 40 mil, portanto já viu de tudo e às vezes dá-me conselhos. Muitas vezes não os aceito. E depois há menos cerimónia. Nenhuma das anestesistas mais novas me fala como ela me fala. E no final eu é que sou o diretor de departamento, que diabo! Mas é importante, porque estou perfeitamente convencido que as mulheres têm uma capacidade de inteligência emocional muito diferente dos homens e uma capacidade de perceber as coisas que nós não conseguimos, pelo menos no meu caso.
E quando estão aborrecidos e têm de trabalhar em conjunto?
Nós não estamos aborrecidos muitas vezes. Ao fim de 40 anos não vale a pena. Seria uma perda de tempo. Quando se é mais novo uma pessoa aborrece-se e separa-se, nesta idade não faz sentido. E já temos tanta coisa em comum… temos história. Quando estamos chateados, normalmente, à entrada do hospital já passou. Uma coisa muito importante: nós levamos o hospital para casa mas não trazemos a casa para o hospital. Isso é muito importante.
Mas nunca desligam do hospital.
Não, isso é impossível. Por isso lhe digo que no dia que largar isto será um alívio.
E a família não se ressente?
Uma filha é médica, outra advogada. Elas percebem, cresceram no hospital connosco. No Santa Cruz morávamos ao lado e elas vinham connosco para o hospital: ficavam no quarto médico a estudar. Uma é neuro-radiologista e está mesmo muito bem e a outra é advogada e está em Londres. E já tenho netos de uma delas. Mas é óbvio que nunca desligamos. Como é que posso ir para casa e desligar do doente que operei? Os doentes são tratados aqui em equipa, mas quem os operou tem uma cara. A gente fala com os familiares os doentes telefonam-me. Dou o meu telemóvel aos meus doentes, portanto os doentes telefonam-me.
Há algum doente que o tenha marcado para a vida?
Marcaram-me muitos. Se um dia tiver tempo para escrever alguma espécie de memórias do que se passou, vou ter de pensar. Estas paredes estão cheias de doentes que me marcaram muito. Os doentes são os heróis. São os heróis de necessidade, mas não deixam de ser heróis. É preciso acreditarem muito e é esse capital de confiança do doente na Medicina que nenhuma sociedade deve deixar perverter. Os humanos têm de acreditar em qualquer coisa. Algumas pessoas acreditam na Igreja, outras são agnósticas, mas todos acreditam na Medicina. Já reparou? Num determinado momento da vida, uma pessoa pode não ter fé mas tem de ter fé naquele que a trata.
E o professor? Tem fé?
Eu estou convencido que existe um poder superior, estou convencido que existe um princípio de bem, tenho dificuldade em seguir todo o procedimento da Igreja formal, tenho dúvidas sobre a vida eterna, mas não sou demasiado materialista e tenho uma inclinação muito forte com Fátima.
Mas acredita em milagres?
Se calhar posso contar-lhe uma história. Aquele bebé que ali está, naquela fotografia, chama-se Bernardo. A família dele procurou-me no dia 5 de outubro de 1990, tinha acabado de vir de Inglaterra. O bebé nasceu com uma coronária esquerda anómala e estava com angina de peito aos seis meses. Levei-o para o bloco e era a primeira operação destas que fazia. Fizemos a operação e à saída o coração não batia, portanto tínhamos de aceitar que o caso estava perdido. Mas em Santa Cruz, naquela altura, já colocávamos bio-pumps, umas bombas para assistir o coração. Portanto, perdido por perdido liguei o bebé a uma dessas bombas e disse aos pais que o bebé ia morrer quase de certeza. Os pais, muito calmos, disseram-me que tinham muita esperança, muita fé. E eu disse-lhes: “Há alturas que a fé só não chega”. Mas, como de costume, dormi na unidade com o doente. No dia seguinte de manhã apareceram os pais do Bernardo e disseram-me que iam para Fátima rezar e eu disse-lhes: “Acho que isso é de uma tolice absoluta, porque o vosso filho vai morrer a qualquer momento, não vale a pena irem para Fátima. Rezem daqui”. Mas eles insistiram. O bebé estava estável ligado à máquina , liguei à minha mulher e disse que ia vestido com o pijama da unidade, pedi para me arranjar uma sopa quente e que ia tomar um duche. Naquele tempo não havia telemóveis mas havia beeps. Tinha a sopa na mesa, sentei-me, tocou o beep e o telefone. Nós nem atendemos e fomos para o hospital, cerca do meio dia. A enfermeira e o médico que estavam na unidade estavam estarrecidos porque a bomba tinha parado.
Estas bombas trabalham 24 sobre 24 horas. O bebé mantinha-se crítico, com pressões arteriais muito baixas. O meu primeiro pensamento foi: “Faltou a luz? Chamem o eletricista”. Ele foi, mudou as tomadas, havia corrente. E eu disse: “Então o sistema deve ter ganhado coágulos”. Levámos o bebé para o bloco e não havia coágulos. O coração mal mexia, mas batia, fechámos o doente, trouxemos para a unidade e ficámos sentados, sem máquina, à espera que o doente morresse. Às 16h30 apareceram os pais do Bernardo, com um ar muito aliviado, e perguntaram como estava o Bernardo. Eu disse que ele ia morrer a qualquer momento, porque a máquina tinha parado sem sabermos porquê. Curiosamente, nesse dia à noite, o Bernardo começou a melhorar e 12 dias depois teve alta do hospital. Dois meses depois o diretor de manutenção do hospital chamou-me e disse-me: “Ó senhor doutor, armámos aqui uma grande barraca. Aquela máquina do bebé que se avariou, enviámos para os Estados Unidos e eles responderam que a máquina parou cerca das 12h00 como que operada externamente, mas não tinha qualquer defeito. Portanto perguntaram se estávamos a brincar com eles e devolveram a máquina como estava, a funcionar normalmente”.
O Bernardo tem hoje 28 anos e durante algum tempo foi skipper do meu veleiro, tem já três filhas e é casado com uma rapariga muito bonita. Esta família é muito crente a Fátima e muito Católica. Não estou aqui a falar de milagres, mas na vida há coisas cuja dimensão não conseguimos perceber. O que lhe posso garantir é que estas máquinas não avariam e ao longo de 40 anos de prática profissional nunca nenhuma se avariou. Portanto, isto vale o que vale. Os Católicos agarrar-se-ão a esta história.
E o professor?
Fiquei muito marcado com Fátima e digo-lhe que não me é nada difícil passar na auto-estrada, desviar, e estar meia hora sentado na Capela das Aparições a pensar na vida.
Mas desde este momento?
Sim, particularmente desde esse momento. Sabe, nós moldamos os doentes, mas há muitos doentes, muitas histórias que nos moldam. Por isso é que esta especialidade não é técnica, é humana. E podia contar-lhe mais um ou dois de contornos semelhantes. As pessoas dirão que isto foi uma variação aleatória técnica e pode bem ter sido.
A propósito ainda da sua mulher, disse que uma das partes más é que sempre que algo lhe toca a ela também o afeta a si. E há um ano houve um episódio que teve a ver com a nomeação dela para o conselho de administração do centro hospitalar. A Dra. Isabel Fragata terá sido convidada para integrar a nova equipa e por pressões externas, por oposição à sua ida para o conselho, a equipa nem chegou a tomar posse.
Esse é um episódio lamentável que não acontece normalmente num Estado de Direito e já me pronunciei sobre isso e não vamos estragar esta entrevista com esse episódio. Mas esse foi de facto um dos momentos em que as coisas obviamente também acabariam por me tocar porque o apelido é o mesmo.
Mas sabe exatamente o que se passou?
Sim, mas não vamos abordar aqui.
Como é que lida com a rivalidade?
Nós somos pessoas que chamamos as coisas pelos nomes e somos de uma seriedade inabalável. E a ida da Dr.ª Isabel para a direção clínica deste centro hospitalar mudaria muitas das coisas que se passam. Ora essas mudanças criariam desconfortos aqui e ali a poderes instituídos e a facilidades pessoais. Percebo que as pessoas tenham medo. Que as pessoas tenham medo, está bem, que tenham o poder para conseguir fazer recuar coisas que são legítimas, isso não é próprio de um Estado de Direito.
Mas teve a ver com isso ou com rivalidades consigo?
Os vasos são comunicantes. O País é pequeno.
E é fácil criar essas rivalidades?
Então não é? Nós temos um problema no País: é muito pequeno. Portanto, poucas pessoas conseguem comer o seu pequeno gelado no sítio. Veja nos piqueniques. Você vai fazer um piquenique à Serra de Sintra, põe a manta no chão, tira os croquetes, os meninos estão a brincar com as bolas. Daí a um bocadinho vem o automóvel cor-de-rosa ou vermelho, dá uma série de voltas. O parque é enorme, eles vão andando, andando, andando, andando e pensam: “Se aqueles estão ali é porque ali a sombra é melhor”. E vão parar a cinco metros de si, põem o canal de música metálica forte, têm um cão e um gato e você só lhe resta tirar aquilo tudo e ir para outro sítio. É uma coisa muito comum.
E o professor sai do sítio?
Não, Deus me livre. Nunca sairia do sítio, mudaria as condições. Mesmo agora em relação ao coração artificial, há rivalidades. O País é muito pequeno.
E lida bem com isso?
Irrita-me, mas habituei-me a desvalorizar. Sabe, estou muito concentrado no meu trabalho. Sou uma pessoa simples, mas atinjo sempre o que quero. Às vezes leva-me um bocadinho de tempo.
Mas sempre a bem?
Sim, normalmente a bem. Devemos conseguir as coisas normalmente por consenso e sem conflitos mas, no final do dia, as metas de desenvolvimento do serviço e as metas de cuidados dos doentes devem sobrepor-se. Se tiver de haver conflito, há conflito.
E ainda vai muitas vezes ao bloco?
Vou. Aqui no serviço cirúrgico, se o diretor não vai ao bloco, os mais novos comem-no. Porque a competição também existe aqui. Já preparei um conjunto de cirurgiões que fazem tão bem ou se calhar melhor que eu e portanto eles lutam pelo seu espaço. Isto é como os leões na floresta: há o leão velho e os leões novos. E apesar da atitude aparentemente respeitosa eles estão aqui para ser o tempo deles. E é o tempo deles, já não é o meu tempo.
Daí as críticas de que o professor não gosta de inovar no serviço?
Acho que não se pode criticar o serviço de não ter inovação quando acabou de implantar o primeiro coração artificial.
Mas sabe que as críticas circulam por aí.
Então não sei?! Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa. Em relação à inovação em Medicina, nunca devemos ir na carruagem da frente, nem devemos ir na carruagem do fim. Na da frente arriscamo-nos a tomar o comboio errado, na do fim arriscamo-nos a não ter tomado o comboio. Devemos ir na do meio. Porque a inovação tem custos. Num País com 10 milhões de habitantes, com recursos escassos, a inovação é muito importante, mas quando nós pusemos aqui um coração artificial não inovámos nada, porque já outros no mundo passaram por isso. Temos de ter a humildade de pensar que quando se tem uma lista de espera e se tem de dar uma resposta, a mim cabe-me tomar algumas decisões e fazer aquilo que é essencial. Depois, outro aspeto é que a inovação em medicina é muito trazida pela indústria e o papel, respeitável, da indústria é vender. Portanto os doentes devem estar salvaguardados disso. O meu papel é ser provedor do doente.
Então acha que as críticas surgem porque o professor tem os pés assentes na terra?
Acho que ponho os pés na terra, mas não somos perfeitos e certamente a minha atitude no final será julgada.
Mas aceita as críticas e reconhece quando erra?
Reconheço sempre quando erro. Temos de perceber qual a solidez dessas críticas. Oiça, gosto que falem de mim e me critiquem porque é sinal que faço alguma coisa. Se me perguntar no fim palavras que não me assentam, uma delas é cinzento. Detesto o cinzento. Para mim ou é branco ou é preto. Aceito algumas áreas de penumbra para discutir, mas no final do dia quando peço uma informação quero ter essa informação. Nós decidimos com base em informação e esta coisa do “mais ou menos”, “aproximadamente” é uma coisa com a qual tenho dificuldade de conviver. Mas tenho muita confiança na equipa. Uma coisa muito importante de dizer, e sem qualquer forma de demagogia que não é o meu estilo, em boa verdade, mal de mim se nesta fase, com 63 anos, não tivesse uma equipa formada. E quando estou de férias no verão isto continua a correr da mesma maneira. Às vezes até lhes digo que correu melhor do que estando eu cá (risos).
Por falar em férias. Consegue tirar férias?
A minha secretária disse-me ontem que tenho 33 dias este ano, o que significa que não gozei uma data de férias do ano passado. Tiramos normalmente três semanas.
E consegue desligar?
Não nunca se desliga. Uma pessoa acaba sempre por ligar para o serviço uma ou duas vezes por semana, ou por dia, dependendo das coisas. Mas quando deixo aqui alguém a dirigir não interfiro. Criei o lugar de diretor executivo no serviço, mas entendo que serei para eles uma personalidade muito forte e entendo que a minha presença os possa limitar. Na altura própria encarregar-me-ei de sair.
E o que faz além de trabalhar, no dia a dia, se é que tem tempo?
Tenho uma qualidade de vida miserável. E não faz sentido até porque trabalho e ganho, mas a qualidade de vida é má. Normalmente levanto-me por volta das 6h20, saio de casa às 7h05 ou 7h10, e chego ao hospital pelas 7h30. Tomo o pequeno almoço, começo a despachar emails. Entre o trabalho daqui, ser professor catedrático de cirurgia e o trabalho na CUF, normalmente acabo a minha vida profissional por volta das 19h00, 20h00, 21h00 e chego a casa por volta das 21h30. É hora de jantar, responder a alguns emails, estudar alguma coisa, preparar conferências, e ir para a cama. Durmo, normalmente, seis horas por noite. Isto passa-se assim, enquanto a minha mulher e eu dizemos “isto assim não pode continuar” e fazemos planos de melhoria para a semana seguinte, que nunca se concretizam. Tendo dito isto, tenho algumas saídas internacionais — a maior parte das pessoas não sabe, mas fiz uma carreira internacional paralela se calhar maior do que aquela que tenho cá e tenho convites para conferências aqui e ali — e tenho um hobby muito grande que é um veleiro de 15 metros, em Cascais. E à sexta feira à tarde, quando posso, despacho-me daqui por volta da hora de almoço, agora começando o bom tempo, e vou para o veleiro. Saímos ali da Barra de Cascais, pomos as velas e o meu skipper pergunta-me “senhor doutor para onde quer ir?” e eu digo: “Para onde haja vento”. Vamos andando e às vezes afastamo-nos 10 a 15 milhas da costa. Oiço música, bebo um whisky. Quando levo o meu neto vamos à pesca que ele gosta muito de apanhar peixe. Portanto esse é o meu hobby. Mas nós não temos uma vida muito regrada de horas, e portanto não temos uma boa qualidade de vida, com toda a sinceridade.
Já se imagina a largar esta vida?
Já. Imagino. E vou dizer-lhe uma coisa com muita sinceridade, que poderá parecer um escândalo: I’ve done my share, fiz a minha parte.
Então já só está à espera da reforma…
Nós devemos sempre retirar-nos em alta. Devemos retirar-nos antes de começarmos a fazer disparates e devemos sempre deixar espaço aos outros. Portanto, vai haver um momento, não me vou comprometer com datas, em que é o momento de pôr à prova se consegui fazer uma equipa suficientemente robusta ou não e lhes dar o palco a eles. Deus me livre se o serviço girasse ainda à minha volta. Isto é tolo, obviamente que gira à minha volta, à volta de quem é que haveria de girar? Mas faço o possível por distribuir jogo e as pessoas operam.
Última questão: se não fosse médico o que acha que poderia ter sido?
É muito difícil quando sou médico há 41 anos e cirurgião há 30 e bastantes dizer o que é que faria porque, de facto, não me via em mais nada. Este papel de médico tem algo de paternalista e eu gosto. Gosto deste papel de ajudar as pessoas. E já ajudei na minha vida bastantes pessoas. É quente, é carinhoso, sentir esse reconhecimento. Noutro dia estava parado na Praça de Espanha, parou um carro ao lado e disse-me “eu conheço-o, o senhor operou-me”. É uma carícia para o espírito ter esse reconhecimento público. Mas, de novo, sinto sempre relacionado a isso uma enorme responsabilidade, o tal privilégio cirúrgico e nós temos de compensar a sociedade disso. Se me pergunta que outra profissão podia ter tido, interessam-me as coisas de sociologia da gestão. Dou aulas no INDEG. Portanto, num cenário negro, cinzento, de não ter conseguido ser médico, acho que podia facilmente ter dado um gestor. Mas um dia destes sou só avô mesmo.