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Abdul Bashir pegou numa faca e matou duas mulheres esta terça-feira. Foi imobilizado com um tiro na perna e transportado para o hospital. Ainda durante a tarde do dia em que as duas assistentes sociais do Centro Ismaili, em Lisboa, morreram, foi afastada a hipótese de se tratar de um ataque com motivações religiosas e, apenas um dia depois, o diretor da Polícia Judiciária, Luís Neves, garantia que foram “afastados todos os sinais” de ataque terrorista, apontando para o cenário mais provável: um episódio psicótico.

O afegão que chegou a Portugal há pouco mais de um ano, com os três filhos menores, estava a ter aulas de português quando pegou numa faca, saiu da sala e matou as duas mulheres que estavam na sala ao lado — uma delas tratava do seu processo enquanto refugiado. Ainda não se sabe o que motivou Abdul Bashir a pegar naquela faca, mas o homem de 29 anos já foi ouvido pela PJ e são ainda necessárias mais perícias para perceber se de facto se trata de um episódio psicótico, ou não.

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Apesar da dúvida, há, no entanto, uma certeza, como explicou ao Observador a psiquiatra Ana Matos Pires: “Estamos sempre perante um crime e nenhuma doença psiquiátrica justifica um crime. É preciso ter em conta o juízo crítico que a pessoa tem no momento em que comete o ato, mas um episódio psicótico não dá, só por si, a inimputabilidade para os atos”.

O que é um episódio psicótico?

Quando acontece um episódio psicótico, habitualmente, existe um corte com a realidade, que pode manifestar-se de múltiplas formas. Por exemplo, através de delírios, em que as ideias estão fora da realidade, ou quando existe realmente a crença em determinada ideia que não é partilhada por mais ninguém. Mas em todas as formas existe um denominador comum, que é o carácter auto-referencial — em que o mundo se vira contra a pessoa.

“As pessoas acreditam em coisas que não são verdade, mas também não são demovíeis daquela crença — e muitas vezes também com alucinações, sobretudo com alucinações auditivo-verbais, na forma de ordens de comando”, explicou Ana Matos Pires, acrescentando que estes episódios podem surgir em casos de esquizofrenia, em contextos de privação do sono, de abuso de substâncias. “Há imensas razões que podem impulsionar.”

Está necessariamente associado a outros problemas de saúde mental?

Um episódio psicótico pode surgir na sequência de outros episódios psicóticos, pode acontecer na sequência de uma doença mental já diagnosticada, ou pode ser a primeira manifestação de uma doença. “Pode não ter tido até esse momento nenhuma manifestação e ser essa a primeira manifestação”, explicou a psiquiatra.

Mesmo que seja a primeira manifestação, “o seu aparecimento pode ser secundário a imensas coisas”. Ou seja, “pode ser o episódio inaugural de uma esquizofrenia, pode ser o episódio inaugural de uma doença bipolar, pode ser a descompensação de uma doença já diagnosticada, pode surgir em consequência de consumos de substâncias”. “Um episódio psicótico não é, por definição, uma doença psiquiátrica.”

Além disso, um episódio psicótico pode aparecer em muitas doenças psiquiátricas. Não é diagnóstico exclusivo de nenhuma doença psiquiátrica específica. “Chama-se episódio ao conjunto dos sintomas, mas não é diagnóstico de nenhuma doença e pode aparecer em muitas”, acrescentou Ana Matos Pires.

Passar por uma situação traumática pode desencadear um episódio psicótico?

Não é possível estabelecer esta ligação direta, nem dizer que um trauma implica um episódio psicótico. Caso contrário, todas as pessoas que passam por situações traumáticas poderiam ter um episódio psicótico.

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Utilizando o exemplo de Abdul Bashir, que continua internado no hospital Curry Cabral, em Lisboa, a psiquiatra Ana Matos Pires explica que o facto de este ter estado num campo de refugiados em Lesbos, na Grécia, depois de fugir do Afeganistão, ter perdido a mulher durante um incêndio também no campo de refugiados e de estar a cuidar de três filhos menores num país cuja língua ainda não domina, são fatores desencadeantes, “mas não podem ser uma causa”.

No entanto, perante contextos de trauma, se a pessoa já tiver uma “vulnerabilidade prévia”, mesmo não estando diagnosticada qualquer doença mental, então esses momentos marcantes podem funcionar como gatilho e desencadear episódios psicóticos.

Quanto tempo dura um episódio psicótico?

Se não for diagnosticado, pode durar a vida inteira. Depende do momento em que é diagnosticado e do tratamento, ao contrário daquilo que acontece, por exemplo, durante uma crise convulsiva, em que existe, por breves momentos, uma rutura das mensagens que são enviadas pelo cérebro.

Por exemplo, à semelhança daquilo que acontece nos episódios psicóticos, também os episódios depressivos, em que existe uma tristeza profunda, falta de prazer, ou insónias, não duram apenas uma hora, podendo prolongar-se no tempo.

Depois de diagnosticado e tratado, pode garantir-se que nunca mais se repete?

Não. Ninguém pode garantir que, mesmo com terapêutica ou internamento, um episódio psicótico não se repete. E a psiquiatra Ana Matos Pires faz um paralelismo, utilizando como exemplo alguém que acaba de ter uma crise de hipertensão e entra nas urgências de um hospital. “Percebe-se que a hipertensão é secundária a uma doença do rim. Trata-se a hipertensão, trata-se a doença do rim, mas a doença do rim é crónica e mantém-se o tratamento. Não se pode garantir que a pessoa não volte a ter outra crise de hipertensão”, exemplifica.

No caso dos episódios psicóticos, a questão é semelhante. Ou seja, surgem na sequência da conjugação de vários fatores.

A prevenção é suficiente?

Na saúde mental, a prevenção é fundamental. Um diagnóstico atempado pode evitar a evolução da doença mental, mas há fatores que não se controlam. E, voltando novamente ao exemplo da hipertensão, mesmo com prevenção, seria praticamente impossível evitar o seu aparecimento, já que ela é uma consequência de uma doença crónica.

“A prevalência da esquizofrenia é de 1% no mundo. Mesmo que a vida corra toda muito, muito bem, há 1% de pessoas que têm possibilidade de ter esquizofrenia. Aqui, claro que há fatores protetores, como os diagnósticos atempados. Agora, nós não conseguimos garantir que se andarmos todos os dias 10 minutos, se comermos todos os dias uma dúzia de morangos, se não comermos manteiga nunca teremos um episódio psicótico na vida. Ninguém pode garantir isso”, explicou.

É correto associar um episódio psicótico à agressividade?

Não. Aliás, “é completamente errado fazer a ligação entre um episódio psicótico e a agressividade e é muito estigmatizante”, sublinha a psiquiatra, acrescentando que, nestes casos, “mais facilmente um doente mental grave com uma perturbação psicótica é vítima do que agressor”.

Alguém que esteja com com ideias delirantes, em que acredita que é um super-herói, pode ir para a rua disfarçado de super-herói e não está a fazer mal a ninguém. Ou noutros casos, se acreditar que a televisão está a falar, ou que a pessoa está a ser perseguida, o mais provável é manter-se em casa. Em nenhum destes exemplos existe agressividade.

Por outro lado, a agressividade pode surgir, especialmente em casos em que existem “alucinações auditivo-verbais” — quando se ouvem vozes. Nestas situações, “os comportamentos agressivos surgem pelas ordens que as vozes dão”. E as ordens podem ser contra si ou contra terceiros.

Em caso de crime de homicídio, a confirmação de um episódio psicótico pode funcionar como atenuante?

Sim. E pode, no limite, levar ao arquivamento do processo. Como explica ao Observador o advogado Paulo Saragoça da Mata, existem duas possibilidades a ter em conta durante o julgamento: ou a confirmação de um episódio psicótico resulta como atenuante da pena, ou o tribunal pode considerar que não existiu qualquer responsabilidade durante aquele período.

Caso seja considerada a primeira opção, “pode ser aplicada uma medida ao abrigo da lei da saúde mental”, explicou o advogado, com a determinação de internamento, por exemplo — não necessariamente num hospital-prisão, como aconteceu com o jovem que planeou o ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Linhas de apoio Saúde Mental:
SOS Voz Amiga: 213 544 545; 912 802 669; 963 524 660
Aconselhamento psicológico SNS24: 808 24 24 24 (opção 4)

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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