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Era agressivo e impulsivo, ficou calmo e gracioso: o que mudou na história de Federer para Federer mudar a história

Trabalhou com um psicólogo, cedeu perante a morte do ex-treinador, construiu-se a si próprio. Federer vai ficar nos livros como um dos melhores de sempre porque ultrapassou o capítulo menos conhecido.

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Um poster de Michael Jordan, daqueles que saem com revistas, a fazer um lançamento livre. Outro poster de Shaquille O’Neal ainda nos tempos dos Orlando Magic. Uma fotografia dos tempos em que era apenas um apanha bolas no ténis. Uma secretária com alguns troféus e medalhas de torneios ganhos. Um diploma de participação numa prova, um chapéu de escuteiro. Mais um poster da atriz Pamela Anderson quando interpretava o papel de C.J. Parker em Baywatch. Uma camisola branca da Nike, aquele cabelo loiro descolorado com a versão original a perceber-se bem. Em resumo, um adolescente como qualquer outro.

Qualquer atleta prodígio, daqueles que cumprem todos os estágios entre o poder ser tudo quando não é nada e o terminar sem mais nada para elogiar porque ganhou tudo, tem algum ponto de ligação ao que era na juventude. Kylian Mbappé pode jogar hoje ao lado de Lionel Messi e Neymar mas não esquece os posters de Cristiano Ronaldo que tinha a forrar a parede do quarto aos 14 anos. Aliás, o próprio não teve assim tantas mudanças entre o que era e é agora – exceção feita a tudo o que já ganhou a nível desportivo e financeiro. E como a Tartaruga Ninja do PSG há muitos mais super heróis que fizeram o seu percurso no desporto mas que quando olhavam para trás viam traços que depois ajudaram a escrever a carreira.

No caso de Roger Federer, tirando a parte do patrocínio que ainda se mantém, tudo o que se escrevia sobre ele tornou-se uma antítese do que houve para escrever sobre ele. O miúdo que tinha as suas excentricidades à mistura tornou-se um exemplo como “senhor” e pai de família. O jogador que de quando em vez (e até eram muitas) partia raquetas em jogo subiu a símbolo do cavalheirismo. O apanha bolas aspirante que naqueles torneios indoors na Suíça sonhava com a liderança do ranking, ascendeu a um patamar onde ser número 1 foi o menor dos feitos perante a capacidade de mudar a história do desporto.

As características de Roger e o que fazia dentro e fora do court levantavam dúvidas. Os estilos de Federer e o que fazia dentro e fora do court tornaram-se uma certeza. Tão certeza que, num estudo feito em 2011, era o segundo mais confiável do mundo só atrás do antigo presidente da África do Sul, Nelson Mandela.

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A versão adolescente de Federer, um dia partilhada pelo próprio: cabelo descolorado, posters de Jordan, Shaquille e Pamela Anderson, alguns troféus de ténis e uma imagem

O suíço transformou a forma de ver e apreciar o ténis mas também o ténis transformou a sua forma de ver e apreciar a vida e o próprio. Se é verdade que aquele antigo apanha bolas não perdia a oportunidade de, da forma mais descarada possível, poder andar e tirar fotografias ao pé dos jogadores seniores que apreciava, o início de carreira mais a sério ainda júnior foi marcado pela falta de controlo no court. Controlo do jogo, dos momentos chave, do próprio temperamento. Com o passar dos anos, ficou conhecido pela graciosidade que lhe valeu em 13 ocasiões o prémio Stefan Edberg Sportmanship – e embora a história do helvético fale também em Boris Becker ou Pete Sampras como referências, o sueco foi quem deixou mais marca.

Mais do que um jogador, mais do que um dos melhores de sempre, mais do que um mito, um Deus ou um Rei (basta recordar a capa para alguns polémica com o “God Save the King” do jornal francês L’Équipe, no dia da despedida), Federer foi o primeiro representante de uma Santíssima Trindade a que se juntaram a seguir Rafa Nadal e Novak Djokovic que se tornou a melhor de sempre no mundo do ténis e do desporto. Agora, aos 41 anos, retirou-se. Quando ganhou o primeiro Grand Slam em 2003, no ano a seguir a Pete Sampras conseguir no US Open o 14.º e último Major (esse encontro com Andre Agassi seria mesmo o seu último da carreira), o Mundo ainda olhava impressionado para as novidades da Nokia e a guerra do Iraque não tinha sequer começado. Hoje, fala-se de iPhones 14 e a guerra na Ucrânia parece longe de acabar. Não fossem os joelhos, o tempo parecia não passar pelo suíço. É isso que lhe vale o espaço que agora tem.

“Ele é como uma sinfonia. Nunca mais ninguém vai jogar ténis assim, é impossível. Simplesmente perfeito. O movimento, o timing, tudo é perfeito. É incrível", resumiu Patrick Mouratoglou, treinador de alguns dos melhores de sempre como Serena Williams.

“Ele é como uma sinfonia. Nunca mais ninguém vai jogar ténis assim, é impossível. Simplesmente perfeito. O movimento, o timing, tudo é perfeito. É incrível”, resumiu Patrick Mouratoglou, treinador de alguns dos melhores de sempre, como Serena Williams. Nem de propósito, até essa alusão ao universo da música faz sentido tendo em conta as aulas de piano que Federer teve quando era mais novo. Nesses tempos, o suíço não dispensava o rock mais pesado dos AC/DC, mas fez uma carreira como sénior mais parecida com ópera pela harmonia que transportava para o campo. Nessa pauta ficam, entre outros registos, 20 Grand Slams, 310 semanas na liderança do ranking ATP, cinco anos fechados como número 1, mais de 100 títulos, o recorde de oito vitórias em Wimbledon e um sem número de feitos para os quais não existem números para contabilizar. Por tudo isto e muito mais, Federer foi o verdadeiro Maestro suíço.

A carta mais longa, o adeus com Nadal e as lágrimas de três dos quatro filhos

“Durante duas ou três semanas tive dores no estômago porque acabei por parar tudo. O Toni Godisck, o meu representante, quase que ficou louco porque demorei muito tempo a escrever a carta. Quando foi aquela altura? Uns dias depois de Wimbledon, em julho. O joelho deixou de ter progressos de forma adequada. Perguntei a mim mesmo ‘E agora, o que faço?’. Já levava muito tempo sem estar a melhorar. Sei que a minha retirada é a decisão correta e a única possível”, tinha referido antes do início da atual Laver Cup, falando sobre a tal carta que muitos já começavam a temer mas que ninguém quis na verdade acreditar.

“A Laver Cup, na próxima semana, em Londres, será o meu último torneio no circuito ATP. Esta é uma decisão agridoce porque vou sentir falta de tudo o que o ténis me proporcionou. Mas ao mesmo tempo há tanto para celebrar. Considero-me uma das pessoas mais sortudas deste Mundo. Recebi um talento especial para jogar ténis, e fi-lo a um nível que nunca imaginei, durante muito mais tempo do que imaginei que seria possível. Fiz mais de 1.500 jogos ao longo de 24 anos. O ténis tratou-me muito melhor do que alguma vez poderia imaginar, e agora preciso de reconhecer que está na altura de terminar a minha carreira a nível competitivo.”

As tais palavras que demoraram duas ou três semanas a serem escritas foram gravadas e colocadas com uma fotografia que poderia ser tirada de uma campanha da Barilla, empresa italiana mundial na fabricação de massas com quem tem há muito ligação e com quem fez alguns dos anúncios mais inspiradores nesta fase final da carreira. Esta é e ficará como a “imagem Federer”: tranquilidade, confiança, sabedoria, bom gosto. De Rafa Nadal, o maior adversário mas também um dos melhores amigos que fez ao longo de mais de duas décadas no circuito profissional de ténis, a Carlos Alcaraz, atual número 1 (o mais novo de sempre) que só queria ter a oportunidade de fazer um jogo contra o suíço, passando por jogadores do passado e do presente em mais modalidades, ninguém passou ao lado do momento em que consumou o adeus.

"Como reagiram os miúdos? Três dos quatro começaram a chorar quando lhes disse que me ia retirar... A primeira coisa que me perguntaram era se íamos deixar de ir a Halle, a Wimbledon, a Indian Wells. Respondi que podíamos continuar a ir se eles quisessem", contou Federer antes da Laver Cup

“Depois de tudo o que partilhámos é uma pressão diferente para mim. Poder fazer parte de um momento histórico como este será inesquecível para mim. Estou muito emocionado, espero poder jogar bem e criar um bom momento para ganharmos o jogo. Estar ao lado do Roger mais uma vez é algo que me deixa muito feliz. As relações pessoais são mais importantes do que as profissionais. Vai ser difícil lidar com tudo, sobretudo para o Roger, mas também para mim. É um dos jogadores mais importantes da minha carreira e da história que vai terminar. Estou agradecido por poder jogar com ele”, comentou Rafa Nadal, que já se tornou o jogador com mais Grand Slams (22), antes do encontro de pares na Laver Cup que vai marcar o adeus de Federer.

“Num mundo ideal, tenistas como o Roger Federer ou a Serena Williams deveriam jogar sempre. Apesar disso, acredito que este é o momento adequado para que coloquem um fim às suas carreiras. De certeza que nos próximos 20 anos poderemos falar sobre quem é o melhor tenista da história mas esse debate não terá uma resposta única. Obrigado, obrigado mesmo por estes últimos 20 anos. Até estou com pele de galinha… Foi o tenista mais bonito que alguma vez vi”, disse de lágrimas nos olhos o antigo número 1 John McEnroe no Eurosport. “Ainda assim, vou ser o único a não querer que ele ganhe…”, brincou.

“Ter o Andy [Murray], o Novak [Djokovic] e o Rafa [Nadal] na minha equipa é muito especial, poder retirar-me com eles do meu lado. É fantástico porque quando começámos a planear quem é que poderia jogar a Laver Cup em 2022, nós nunca pensámos que este seria o meu último torneio. Agora quase parece que foi tudo planeado de forma perfeita, mas não foi. Só nos últimos meses é que percebi que o meu joelho não me deixaria competir mais e que este seria o timing certo para abandonar. Também estou surpreendido com o bem que me tenho sentido nos treinos desde que cheguei aqui. Já estava claro para mim desde o início que vou só jogar pares. Depois? Vou continuar a fazer jogos de exibição e sei que posso continuar a encher estádios. Nem sempre tem de haver 52.000 pessoas como na Cidade de Cabo. Outros planos? Sempre disse que não queria comentar jogos, mas alguns de Wimbledon…”, contou.

Federer despediu-se em Londres ao lado dos três principais adversários da carreira: Rafa Nadal, Novak Djokovic e Andy Murray

Julian Finney

Por fim, e como não poderia deixar de ser, as atenções foram todas para a família, da mulher Mirka aos quatro filhos. “Agora ela vai receber toda a minha atenção. Os últimos anos foram duros para mim mas ainda mais para ela porque deixou de gostar de me ver em ação por causa do joelho. Sentia-me mal por ela, por isso. Como reagiram os miúdos? Três dos quatro começaram a chorar quando lhes disse que me ia retirar… A primeira coisa que me perguntaram era se íamos deixar de ir a Halle, a Wimbledon, a Indian Wells. Respondi que podíamos continuar a ir se eles quisessem”, contou Federer o jogador que esteve sempre no meio entre amar e rejeitar por completo a fama. Também aqui, sempre o tal equilíbrio.

Loiro, vegetariano, impulsivo, rebelde. Como Federer era e o gatilho para mudar

Roger Federer nasceu a 8 de agosto de 1981 em Basileia, a cidade com a qual sempre teve mais ligação (ou não estivesse lá também o clube de futebol que é a sua grande paixão), mas são muitas as raízes de outros países. O pai, Robert, tem nacionalidade suíça e alemã, ao passo que a mãe, Lynette, é de Guateng – daí que tenha também nacionalidade sul-africana. Ambos nunca fizeram uma especial força para que fosse para o ténis, com o pai a certa altura a colocar apenas como fasquia a capacidade de entrar para os 100 melhores do circuito para que pudesse subsidiar as viagens em vez de estar sempre a pagar. Da mãe herdou o gosto por múltiplos desportos, do netball ao atletismo de pista, passando até pelo hóquei em gelo.

O suíço começou a jogar ténis por graça aos oito anos, no clube onde os pais andavam por mera recreação, mas quando agarrou na raquete colocou rapidamente na cabeça que gostava de chegar um dia a número 1 mundial. Do squash ao esqui, da natação ao basquetebol, do andebol ao badminton passando pela grande paixão que tinha em mais novo, que era o futebol (que jogou até aos 11 e com jeito para ir mais além), Federer foi experimentando num registo de “diz-me qual é o desporto, eu dir-te-ei como sou bom”. Acabou por ficar somente no ténis mas, como confidenciou em entrevistas, esse contacto com muitas e todas diferentes modalidades melhorou a sua capacidade de ler o jogo nos courts, onde a mãe chegou a ser treinadora mas sem nunca ter trabalhado com o filho, “que gostava de arriscar e experimentar coisas diferentes”.

Só mesmo aos 14 anos houve um significativo esforço para iniciar uma carreira, mudando para a Academia Nacional de ténis, onde dormia durante a semana para estar focado nos treinos. Foi nessa fase, até ganhar Wimbledon como júnior, que começou a trabalhar uma parte que seria importante para o seu jogo até hoje: rapidez. “Nove em dez das vezes a velocidade são os três primeiros passos que damos porque a partir daí é jogar ténis. Por isso, devemos treinar particularmente bem os três primeiros passos”, explicou Pierre Paganini, que durante quase 20 anos foi o técnico de fitness de Federer, que até aos 16 anos foi vegetariano antes de se juntar à equipa da Taça Davis numa ida a uma steak house. Gostou tanto que mudou.

Roger Federer conquistou Wimbledon pela primeira vez como júnior, ganhando em 1998 os torneios de singulares e pares

Não foi essa a única mudança na vida do helvético, que deixou de estudar aos 16 anos para se dedicar só ao ténis. Federer nunca teve um particular interesse na escola. Cumpria, não falhava, nem isso fazia com que ganhasse um especial interesse como aquele que consolidara no ténis. De resto, era um rapaz como outros entre algumas excentricidades à mistura. Ouvia heavy metal antes de entrar para os jogos, passava horas a jogar PlayStation, estava sempre a ver séries como o Baywatch, nunca foi propriamente muito agarrado ao que ia ganhando entre algumas exceções – e é por isso que, várias vezes, coloca em leilão bolas, camisolas e raquetes para que os fundos revertam para a Fundação Roger Federer e ajudem nos projetos que tem em vários países de diferentes continentes. Mais um exemplo da maturidade que ganhou com o tempo.

Na hora do adeus, muitos colocam este período como segredo para aquilo que era hoje Federer. Ou seja, se não tivesse passado as situações que atravessou, se não tivesse errado como errou, se não tivesse sobretudo explodido como explodiu, o suíço dificilmente teria passado para a ponta oposta. O jogador teve momentos em que gritou para si em campo, em que partiu raquetes, em que se motivava numa expressão que o próprio corpo indiciava mas que muitas vezes até se tornou numa maldição para os seus intentos. No limite, até a ganhar pontos protestava consigo se não gostasse. Um cocktail de que os pais nunca gostaram.

"Nunca nos chateámos com o Roger por perder um jogo mas sim, às vezes, pelo seu comportamento nos courts. Sempre lhe disse que o mau comportamento era um convite para o adversário, é mostrar que pode ser vencido", contou a mãe de Federer em entrevista sobre os tempos de adolescente

“Nunca nos chateámos com o Roger por perder um jogo mas sim, às vezes, pelo seu comportamento nos courts“, assumiu a mãe. “Um dia o meu pai chegou ao pé de mim e disse que nunca mais voltava a jogar comigo, deixou-me cinco francos e disse que nos víamos em casa. Ainda esperei uma hora para que viesse porque o autocarro demorava 45 minutos até casa, mas nada…”, contou o jogador, entre outra história, numa derrota ainda júnior, que acabou com o pai a parar o carro e a fazer uma bola de gelo para lhe tirar à cabeça porque estava a precisar de refrescar ideias. “Sempre lhe disse que o mau comportamento era um convite para o adversário, é mostrar que pode ser vencido”, acrescentou ainda a mãe.

Ciente disso mesmo, Federer trabalhou entre os 17 e os 19 anos com Christian Marcolli, um especialista em psicologia do desporto. A parte da falta de controlo e de ser muito impulsivo era evidente, mas o suíço viu também naquele adolescente uma capacidade natural a nível de força mental por dois grandes motivos: 1) a perceção de que a proximidade das derrotas encorajava-o a ficar mais perto das vitórias no futuro; 2) a capacidade de ouvir, aprender e focar-se no trabalho que faziam a esse nível. “Esse trabalho foi sobretudo para aprender a lidar com a agressividade. Percebi de forma muito rápida que tinha de ser eu, que já não precisava de ninguém para me dizer como me devia comportar. Os meus pais e os meus amigos também disseram isso várias vezes. Foi fácil decidir por uma versão mais silenciosa do RogerFederer”.

Não mais o suíço voltou a trabalhar com um especialista na área – não por ter dúvidas da sua eficácia mas porque percebeu que era o seu “trabalho”. E houve também um evento marcante que para muitos ajudou a essa metamorfose completa: a morte do ex-treinador Peter Carter, em 2002, num acidente de viação.

“Era um rapaz emocional. Chorava quando perdia jogos, atirava raquetes, comentava todos os pontos que falhava. Quando cheguei ao circuito profissional, senti ainda mais a pressão, queria que tudo corresse ainda melhor. Isso consumiu-me. A certa altura pensei ‘A minha carreira não pode ser isto, assim aos 25 já tive um ataque. Preciso de ter prazer’. Felizmente, consegui mudar isso. Fico feliz por ter passado por esse processo. Era um bocado maluco, num bom sentido… Tentava procurar a perfeição mas nunca reparava num outro ponto, estava nervoso. Houve uma altura em que tinha o cabelo grande e loiro, com ou sem barba, mas era disciplinado. Se os meus pais me dissessem para estar em casa à meia noite eu estava, e se me atrasasse dez minutos estava a ligar. No fundo, já era profissional”, contou no início de 2018.

Peter Carter, antigo treinador de Federer, morreu num acidente de viação em 2002. Suíço sofreu um choque mas desde aí que enviava sempre convites para o Open da Austrália aos seus pais

Em todo esse caminho, Miroslava Vavrinec, hoje Miroslava Federer com a alcunha de Mirka, foi uma peça essencial. O casal conheceu-se durante os Jogos Olímpicos de 2000 quando ainda jogava. Tendo deixado os courts em 2002 devido a uma lesão no pé. Casados desde 2009, foram pais de quatro crianças: Charlene e Myala, gémeas que nasceram em 2009, e Lenny e Leo, gémeos que nasceram em 2014.

Cinco anos de domínio, aquela final com Nadal e o novo adversário chamado joelho

O percurso que agora chegou ao fim começou ainda no longínquo ano de 1998, quando os quatro Grand Slams ficaram divididos por outros tantos jogadores: o surpreendente checo Petr Korda ganhou o único Major da carreira no Open da Austrália frente ao chileno Marcelo Rios; o espanhol Carlos Moyá venceu também o único Grand Slam em Roland Garros diante do compatriota Álex Corretja; o norte-americano Pete Sampras voltou a conquistar Wimbledon batendo na final Goran Ivanisevic; o australiano Patrick Rafter ficou com o segundo US Open seguido após superar o compatriota Mark Philippoussis. E os anos que se seguiram continuaram a trazer uma maior imprevisibilidade na lista de vencedores, sem aparecer alguém que dominasse de forma assumida o circuito. Federer conseguiu chegar a esse ponto.

Depois de conseguir a dobradinha em Wimbledon com as vitórias nos singulares e nos pares e de ganhar ainda a Orange Bowl também em juniores, o primeiro grande triunfo chegou em 2001, quando venceu aos 19 anos Pete Sampras em Wimbledon. Um ano depois, recebeu a notícia da morte do antigo treinador Peter Carter como um choque. “Foi isso também que levou a que Federer crescesse de forma incrivelmente rápida. Penso que nunca sequer tinha pensado antes na questão da mortalidade. Foi complicado para ele lidar com o luto durante algum tempo”, contou David Law, antigo responsável pela comunicação do ATP. No regresso a Wimbledon, após ter ganho em Hamburgo o primeiro Masters, o suíço bateu Philippoussis na final e conquistou o primeiro Grand Slam que teve essa dedicatória especial para o ex-técnico.

Mudam os penteados, evolui a roupa, mantém-se o ponto comum das vitórias: de 2003 a 2018, Federer conquistou 20 Grand Slams

Estava dado o mote para cinco anos onde Federer, mesmo com Rafa Nadal a dominar Roland Garros e Novak Djokovic a aparecer, dominou por completo o mundo do ténis. Aliás, bastou essa margem temporal para fazer aquilo que ninguém considerava nessa fase possível e chegar aos 15 Grand Slams entre alguns feitos como há muito não se via: em 2004, foi o primeiro desde Mats Wilander a ganhar três Majors num só ano, chegou à liderança do ranking mundial, ganhou 81 jogos em 2005 como não acontecia desde Pete Sampras em 1993, conseguiu uma das melhores percentagens de triunfos de sempre acima de 95%, fez em 2006 a melhor temporada em termos estatísticos (segunda melhor de sempre, só batida pela de Rod Laver em 1969) chegando a 16 finais dos 17 torneios em que entrou, falhou de novo os quatro Grand Slams num ano em 2007 com a derrota com Nadal em Roland Garros, enfrentou um ano de 2008 mais atípico com problemas nas costas e uma mononucleose que o afastou várias semanas dos courts.

Não existe propriamente um momento em específico de viragem nesse domínio quase total (embora tenha ganho ainda mais cinco Grand Slams até 2018). Nem existe também um fator em especial para que isso tenha acontecido, embora seja natural que o crescimento de Nadal e Djokovic e mais recentemente o aparecimento de uma nova vaga de talentos como Medvedev, Zverev ou Tsitsipas possam ter influência. No entanto, há um encontro memorável, para muitos o melhor de sempre na história, que, coincidência ou não, traçou uma linha distintiva no percurso do suíço: a final de Wimbledon de 2008 frente a Rafa Nadal, decidida a cinco sets e ganha pelo espanhol depois de ter visto uma recuperação que ameaçou reviravolta. 6–4, 6–4, 6–7 (5), 6–7 (8) e 9–7 foram os números que ficaram de um jogo que será eterno.

É certo que, em 2009, Federer continuou a fazer história. Ganhou pela primeira vez em Roland Garros, ultrapassou os 14 Grand Slams de Pete Sampras, voltou a vencer em Wimbledon com um inédito 16-14 no quinto e último set frente a Andy Roddick, acabou como número 1 do mundo pela quinta vez na carreira. De Wimbledon-2005 ao Open da Austrália de 2010, Federer esteve em 19 Grand Slams e atingiu a final em 18, algo nunca antes visto na Era Moderna do ténis. Ainda assim, a curva estava a começar a descer, com as lesões a tornarem-se mais frequentes (sobretudo no joelho e nas costas) e o suíço a fazer um plano ainda mais detalhado de todos os anos para não ceder àquele que se tornou o maior adversário: o corpo.

Do Wimbledon de 2005 ao Open da Austrália de 2010, Federer esteve em 19 Grand Slams e atingiu a final em 18, algo nunca antes visto na Era Moderna do ténis. Ainda assim, a curva estava a começar a descer, com as lesões a tornarem-se mais frequentes. O suíço conhecia um outro adversário: o seu corpo.

A carreira teve margem para conhecer muitos outros capítulos, da troca de raquete em 2014 (a que usava era mais pequena do que a de Nadal ou a de Djokovic por opção própria) ao abandono da liderança do Conselho de Jogadores do ATP, da fasquia das 1.000 vitórias no circuito que na altura só Jimmy Connors e Ivan Lendl tinham à aposta em novas soluções técnicas como Stefan Edberg ou Ivan Ljubicic, da conquista de mais três Grand Slams para ficar nos 20 (Open da Austrália em 2017 e 2018, Wimbledon em 2017) a um novo marco histórico dos 100 torneios ATP ganhos que só Connors conseguira. Quando estava bem, quando conseguia fintar os obstáculos que o corpo lhe colocava, aquele Federer estava lá. Problema? Estava menos vezes, estava de uma forma menos regular, estava num patamar que ganhava menos.

O Open da Austrália de 2020 foi como um último capítulo que se foi prolongando até ao fim anunciado de carreira pelo próprio. Aí, apesar de ter sofrido uma lesão logo no início do torneio, Federer foi passando rondas a quatro e cinco sets mas não resistiu a Djokovic nas meias-finais. No mês seguinte, o suíço teve de ser operado ao joelho; em junho, devido a um imprevisto na reabilitação, fez nova artroscopia. Só mesmo em 2021 conseguiu regressar mas desistindo antes do jogo dos oitavos com Matteo Berrettini em Roland Garros e perdendo com o polaco Hubert Hurkacz nos quartos em Wimbledon. Nesse encontro, Federer perdeu pela primeira vez em Londres em três sets seguidos e terminou pela segunda vez um set em branco, algo que acontecera apenas em Roland Garros no ano de 2008 frente a Rafael Nadal.

A mulher de Federer, Mirka (também ela uma ex-jogadora que se retirou em 2002 por lesão), as gémeas Myla e Charlene e os gémeos Leo e Lenny

Em agosto, nova operação ao joelho e o aviso de que a recuperação iria demorar “vários meses”. Nessa fase, Federer já tinha caído do top 50 da hierarquia mundial; em julho deste ano, deixou de ter ranking pela primeira vez desde que se estreou como profissional. Quase por uma questão de fé, todos acreditavam ser ainda possível um regresso, mas entre todos os milagres que Federer foi fazendo esse não foi um deles. Não deixou de ser uma personagem quase divina que espantou os seus demónios da adolescência para se tornar um exemplo e uma referência para diferentes gerações em diversos setores pelo que fazia nos courts e pelo que vai continuar a fazer fora deles, a nível de Fundação e outros projetos empresariais que foi construindo ao longo do tempo. No entanto, parte de uma era acabou. E o ténis, que pode ser melhor ou pior do que era com o suíço, não voltará a ser o mesmo. Os tempos mudam tal como Federer mudou o ténis no seu tempo.

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