A que soa a liberdade quando só se conhece a clandestinidade? Mais de 30 mil presos políticos durante o Estado Novo deixaram milhares de crianças reféns de uma ideia de solidão como único modo de vida. Muitas viram os pais serem presos, outras tantas assistiram ao sofrimento sem capacidade para entender o que estava em causa. Mas, no verão de 1972, 18 crianças entre os 3 e os 14 anos, violentamente marcadas pela prisão dos pais, aprenderam a brincar pela primeira vez em liberdade num casarão nas Caldas da Rainha.
A colónia de férias para filhos de opositores do regime salazarista foi um feito inédito retratado numa reportagem de investigação da jornalista Joana Pereira Bastos para o jornal Expresso, Férias contra ditadura, publicada em 2021. Marco Martins, encenador e realizador que nos últimos anos tem repartido o trabalho entre o cinema e o teatro, recupera agora algumas dessas histórias no espetáculo A Colónia, que se estreia na próxima quinta-feira, 5 de dezembro, na Culturgest, em Lisboa.
Tudo começou com um convite para criar uma peça de teatro sobre o 25 de Abril de 1974, ainda no âmbito das comemorações do cinquentenário. O encenador admite que sobre ele pairava a ideia de fazer “algo sobre a PIDE”, quando se confrontou com as páginas do semanário. “Li o artigo sobre estas vítimas, que são simultaneamente heróis, estas crianças que tinham sido privadas de uma infância igual à das outras crianças pelas opções dos pais. Pareceu-me que era uma perspetiva que nunca tinha sido abordada”. “O mais extraordinário é nunca pensarmos nestas crianças”, conta ao Observador. “São vítimas de um fascismo, vítimas de um Estado totalitário, não estiveram presas, mas quase que ficaram presas a vida toda. Esta violência que um regime fascista impõe sobre as pessoas tem ondas de choque que vão muito para lá das que nós conhecemos. Nunca tinha pensado nestas crianças que, no fundo, são arrastadas por uma utopia que nem sequer é a delas e que se veem privadas de uma série de direitos”.
Manuela Canais Rocha, Conceição Lopes, Conceição Matos, Domingos Abrantes, Humberto Candeias, Olga Sequeira Santos, Rita Veloso e Valentina Marcelino. Todas são testemunhas desse verão de 1972 passado no campo de férias organizado pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, com o apoio da Amnistia Internacional, e que Martins desafiou a tomar o palco. “Fui saber quem eram todas as crianças que tinham estado na colónia. Tentei contactar todas. Houve muitas que não quiseram falar. Existem adultos hoje, crianças que estiveram nessa colónia de férias, que ficaram muito marcados pela clandestinidade e que, por exemplo, não falam em público. Outros não vivem em Portugal, dois deles já faleceram.”
Numa manhã de ensaios, as paredes do espaço de trabalho cobrem-se de fotografias, fotocópias de documentos de tons carcomidos pelo tempo, provas da história da polícia política da ditadura que oprimiu Portugal entre 1926 e 1974. As palavras neles escritas evocam torturas, detalhes que lembram o dia-a-dia nas prisões e a farsa da Justiça no Estado Novo.
“Nunca tinha feito este tipo de trabalho em teatro”, admite o encenador, evocando a feitura de Um Corpo Que Dança, documentário sobre a história do Ballet Gulbenkian, em 2022, que Marco Martins nomeia como “uma das sementes” para a peça que se prepara para estrear. “Foi a primeira vez que comecei a pesquisar em arquivos e nesta ideia de que o nosso corpo e a nossa história está muito marcada por 50 anos de fascismo e que isso tem proporções muito grandes na minha geração.”
Com esse documentário na bagagem, Martins debruçou-se de novo em longas pesquisas, desta feita sobre os processos dos pais das crianças que participaram na colónia, presos políticos identificados no Arquivo da PIDE, depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A esse mergulho nos arquivos juntou-lhe entrevistas com resistentes antifascistas, que viveram na clandestinidade, o que o levou ao casal Conceição Matos e Domingos Abrantes, revolucionários que “abrem a peça e são a testemunha também da resistência, de como é que se vivia na clandestinidade”. Esse extenso trabalho de campo reflete-se na primeira grande parte de A Colónia — fazendo o espectador esperar até chegar ao campo de férias propriamente dito.
Em palco, contam-se histórias como a de Manuela Canais Rocha, uma das crianças, que assume: “a colónia salvou a minha vida”. Nascida na clandestinidade, até aos 6 anos nunca tinha visto outra criança senão naquela casa no centro das Caldas (uma moradia cedida pelo médico Custódio Maldonado Freitas, que tinha um longo historial de oposição ao fascismo, como conta a reportagem do Expresso). “Quando conheci a Manuela, que foi quem entrevistei mais vezes e com quem fui tendo mais conversas, começou-se a instalar em mim a vontade também de fazer um filme”, acaba por revelar ao Observador o também realizador, antecipando a próxima longa-metragem, que espera rodar no verão. “Vai ser sobre a colónia, mas especificamente sobre a história da Manuela. Vou fazer pela primeira vez um filme histórico sobre aquele período. É a história da infância dela até chegar à colónia”.
Por enquanto, a história conta-se na Culturgest e, em janeiro, no Teatro Nacional São João, no Porto. Mesclando participantes da colónia com atores profissionais (João Pedro Vaz, Sara Carinhas, Ana Vilaça, Rodrigo Tomás) Marco Martins tece uma teia de histórias contadas alternadamente entre testemunhas diretas e atores, mas também crianças que contactam pela primeira vez com a temática. “É quase como se fosse uma peça sobre o passado, mas que tem uma porta aberta para o futuro”. A eles se juntam jovens alunos de duas escolas secundárias de Lisboa, Camões e Padre António Vieira, um fôlego no espetáculo que sublinha também o legado da música de intervenção, contando com a participação do Coro Infantil e Juvenil Lisboa Cantat, embalados pela música de João Pimenta Gomes, e B Fachada, com quem o encenador já trabalhara na série da RTP Sara (2018).
Tal como em projetos anteriores (Provisional Figures Great Yarmouth, Selvagem, Pêndulo, Blooming), a Martins interessava problematizar além do aspeto biográfico e documental para chegar a um objeto artístico. “Fujo da palavra documental porque parto daí, mas tento sempre extrapolar, tento sempre ir para além do testemunho”, elucida. “O testemunho tem uma importância, mas depois tento criar um objeto que, e isso acontece muito nesta peça, que cria perguntas, cria dissonância.”
No final do ano em que se assinalam os 50 anos do 25 de Abril, em que o tema dominou as programações e criações artísticas dos últimos doze meses — nomeadamente as teatrais — o que pode mais uma peça trazer de novo? “Estamos sempre um bocadinho a falar para as pessoas que já conhecem o que se passou durante esses 50 anos. Acho que a peça vai para além disso”, crê Marco Martins, que admite que “o discurso institucional sobre esse período está muito formatado”. A consequência, antevê, é que “em relação aos miúdos, ou às gerações novas, isso não chegue numa forma tão direta”.
Para o criador, para contar a história a uma geração pré-25 de Abril (também o intuito da peça, havendo uma sessão para escolas prevista para 4 de dezembro) é preciso dar um passo atrás. Como acontece na própria estrutura de A Colónia, que se demora no contexto. “É necessário explicar: como ali chegaram? O que é ser um preso político?”. Só isso nos permite valorizar a liberdade que tarda, mas chega, na forma de uma casa onde não se temia pides, assaltos, prisões.
“Quando chegam a um sítio onde podem falar, onde podem cantar, isso tem uma importância muito, muito, muito grande. Muito maior do que para outra criança qualquer”, nota o encenador. “É uma espécie de geração marcada pelo medo e pelo silêncio”, conclui. Em A Colónia, ouvimo-la cantar.
Auditório Emílio Rui Vilar, Culturgest, Lisboa. 5 a 14 de dezembro. Teatro Nacional São João, Porto, 23 a 26 de janeiro de 2025.