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A culpa é do Ministério da Educação. Era este o principal argumento da direção da Associação de Jardins Escolas João de Deus para explicar aos encarregados de educação os aumentos que estava a fazer nas mensalidades do colégio da Estrela, em Lisboa, antes do início deste ano letivo. Os pais nem queriam acreditar: de um ano para o outro, os preços tinham disparado e, sem que percebessem porquê, tinham perdido o apoio do Estado — segundo a escola, por causa do Governo.
A tutela, porém, tem outra versão: garante que o colégio é que entregou documentos fora do prazo, fazendo com que os alunos perdessem os apoios estatais a que tinham direito. Ou seja, por erro da escola, as famílias perderam o financiamento do Estado e passaram a ter de pagar bastante mais por mês, porque o colégio passou a cobrar-lhes as mensalidades por inteiro.
Pior que isso, a decisão só foi comunicada aos pais já depois de muitas crianças estarem inscritas no colégio da Estrela para o ano letivo seguinte e quando outras escolas já tinham as suas vagas preenchidas — limitando as alternativas para os pais que não pudessem ou quisessem pagar aqueles valores. E nem será verdade que foi só nessa altura que a direção da Associação Jardins Escolas João de Deus ficou a saber do problema. Segundo o Ministério da Educação, a escola soube que não ia ver renovados os apoios estatais (os chamados contratos simples), por causa do próprio erro, quatro meses antes de o comunicar aos encarregados de educação.
Os aumentos, na prática, foram ainda maiores porque, além de passar a cobrar aos pais aquilo que antes era pago pelo Estado, a João de Deus também decidiu fazer três mudanças com impacto direto nas mensalidades: fez aumentos para todos os escalões, passou a cobrar 12 meses (e não 11, como nos anos letivos anteriores) e reduziu o desconto dado a famílias com mais de duas crianças inscritas.
Face ao sucedido, e com aumentos que, segundo os pais, chegavam a ser de 180% para famílias numerosas, foi pedido um parecer jurídico para aferir da legalidade da decisão. O documento defende que as subidas de preços são ilegais e que, em vários pontos, violam o Estatuto das IPSS que a associação João de Deus está obrigada a respeitar, já que é ela própria uma instituição particular de solidariedade social.
A perda dos contratos simples. De quem é a culpa?
A 20 de fevereiro de 2018, já depois de terminado o prazo para as escolas celebrarem com o Ministério da Educação os contratos simples, é enviada uma comunicação aos pais a pedir o envio de toda a documentação necessária para avançar com o processo. Na verdade, o prazo para as famílias entregarem os documentos estava encerrado desde 31 de janeiro, como habitualmente. O que os encarregados de educação não sabiam é que, por causa do atraso da própria escola na entrega de documentos do ano letivo anterior, a associação João de Deus já sabia, desde outubro 2017, que não ia ver o apoio estatal ser renovado, segundo o Ministério de Educação. A escola nega.
Os chamados contratos simples, embora sejam celebrados com a escola, são para ajudar as famílias com menores rendimentos a pagar as mensalidades. No início do ano, os colégios enviam para a tutela a lista de alunos que têm direito a receber ajuda financeira do Estado para pagar mensalidades, calculada com base nos rendimentos da família e nos documentos que estas entregam. O dinheiro chega meses mais tarde, em duas ou três tranches, e as escolas entregam-no aos pais. Outros colégios, como é o caso da João de Deus, optam por fazer o desconto imediato aos estudantes e, quando o dinheiro chega, fica no estabelecimento de ensino.
Numa missiva de fevereiro de 2018, assinada pela diretora da escola, Ana Maria Virtuoso, e a que o Observador teve acesso, informava-se os pais que, “devido à alteração de regras por parte do Ministério de Educação em relação aos contratos simples”, a João de Deus via-se forçada “a pedir os documentos com celeridade”.
Houve alterações, de facto, como o Observador noticiou na altura, mas relacionadas com os valores a receber pelas famílias e não com a data de entrega de documentos. Houve também uma mudança de pasta: estes contratos passaram das mãos da DGesTE (Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares) para a DGAE (Direção-Geral da Administração Escolar), passando a haver maior rigor nos prazos de entrega. Situações de atraso que antes eram aceites, desde que fundamentadas, deixaram de o ser.
O Estado vai pagar a escola do seu filho? Lei diz que sim, ministério diz que talvez não
“Os prazos que nos impuseram foram apertadíssimos”, argumentava-se na carta assinada por Ana Maria Virtuoso, onde ficava também um aviso: “O não cumprimento destas regras implica a reposição das mensalidades para o escalão máximo, pois a escola deixa de receber comparticipação.” O escalão máximo era de 338 euros. Viria a ser aumentado, alguns meses mais tarde, para 370 euros.
Salvador e Constança, pais de três filhos, lembram isso mesmo: “De um dia para o outro, recebemos um email a dizer que tínhamos de entregar os papéis para os contratos simples. E estavam a pedir-nos coisas que já tinham sido entregues. Lembro-me de discutir isso com a secretaria. De qualquer forma, voltei a pedir todos os documentos e entreguei-os. Na verdade, já estavam a ser entregues fora de prazo, a escola sabia, mas estava a tentar criar um álibi para os pais desinformados, para depois poder culpá-los dos atrasos”, defende o encarregado de educação que tem dois filhos a frequentar o 1.º ciclo na João de Deus da Estrela.
No caso da sua família, relata Constança, o aumento acabou por não ser dos piores: “Foi menos de 100 euros. Eu tinha estado de licença de maternidade porque tinha nascido a nossa filha mais nova e isso fez-nos mudar de escalão de IRS. Podia ter sido pior. Conseguimos pagar, com esforço, mas conseguimos. Também não havia tempo para procurar outra escola e os dois mais velhos ficaram no colégio. Mas este ano vão sair. Não era essa a nossa ideia, mas vamos sabendo, através da associação de pais, que as coisas continuam a correr mal. A direção da associação até acusou a anterior associação de pais de estar a tentar destruir a escola.”
Esta família, tal como as outras com que o Observador falou, nunca soube qual o valor total da mensalidade, nem que comparticipação do Estado recebia. Entregavam na escola a nota de liquidação de IRS a par de outros documentos e, posteriormente, eram informados de quanto tinham de pagar por mês, a chamada comparticipação familiar. Nunca lhes era dito quanto recebiam de ajuda estatal. “Sempre achei que a escola agia de boa-fé, nem me ocorreu que isso pudesse ser um problema ou que as contas não estivessem a ser bem feitas”, diz Salvador. Agora, começa a ter dúvidas.
Na altura em que pediu os documentos aos pais, já o jardim-escola da Estrela tinha perdido o contrato simples há quatro meses. E sabia-o. Foi, aliás, um dos dois colégios da associação a não ver renovado o apoio estatal, segundo a tutela. O Ministério da Educação explica porquê: “Em 2017/2018 não renovou o Jardim João de Deus da Estrela por não ter concluído o apuramento final [de alunos] de 2015/2016, até 30 de outubro de 2017. Mais se acrescenta que só entregou o respetivo apuramento em 30/11/2017, mantendo, no entanto, àquela data as declarações de não dívida [Segurança Social e Finanças] caducadas.”
A perda do contrato deveu-se, então, à entrega tardia dos documentos por parte do jardim-escola? A resposta da tutela é clara: “Sim.” O mesmo se passou com a escola de Chaves.
Colégios. Estado não pagou apoios a famílias carenciadas e vai repetir falha este ano
“Todos os Estabelecimentos de Ensino Privado e Cooperativo com contratos ativos que ainda não tinham entregue os documentos necessários ao apuramento final, receberam uma comunicação da DGEstE, para entregarem até 30 de outubro de 2017 toda a documentação. Este estabelecimento entregou um mês depois do prazo, e, além do mais, entregou declarações de não dívida que estavam caducadas”, reforça o ministério de Tiago Brandão Rodrigues. Com este último documento caducado, é impossível saber se o colégio tem ou não dívidas por regularizar com o Estado.
A partir desse momento, não é possível celebrar novo contrato, já que a sua renovação só é possível se o anterior não tiver sido interrompido e se o processo do ano transato estiver encerrado até 30 de outubro, explica a tutela.
Tal como os pais ouvidos pelo Observador suspeitavam, a escola sabia que tinha perdido o contrato quando pediu aos encarregados de educação a documentação. Não imaginavam era que fosse há tanto tempo. Nunca, em nenhum dos vários ofícios e comunicações enviadas às famílias, a associação assume culpa na perda do contrato, que é sempre justificada com mudanças de regras da tutela. “A culpa era sempre do Ministério da Educação”, recorda Salvador.
O Observador falou com a diretora da escola, Ana Maria Virtuoso, que se escusou a comentar o assunto, remetendo qualquer comentário para o diretor da associação de jardins escolas. A versão de António Ponces de Carvalho é outra: o comunicado da tutela nunca chegou à escola.
“A informação que tenho, dada pela diretora da escola, é que não recebeu informação nenhuma. O sistema sempre aconteceu da mesma forma: quando fechavam o processo do ano anterior, a DGesTE enviava um documento às escolas a avisar que restavam x dias para celebrar o novo contrato simples. Se o ministério não fechou o processo do ano anterior, não foi por nossa culpa. A diretora não recebeu nada e até manifestou preocupação por saber que as colegas dos Olivais e de Alvalade tinham recebido. O ministério diz que perdemos o contrato porque não respondemos a horas, mas a diretora não respondeu porque diz não ter recebido o documento. Onde é que está a verdade?”, questiona o diretor da associação.
Em Chaves, Ponces de Carvalho admite ter perdido o mesmo contrato por falhar a entrega de documentos a tempo e horas. “É verdade, entregámos depois do prazo porque a diretora não conseguiu recolher a documentação toda. Veja bem: eu assino os papéis em Lisboa, eles vão por correio para Chaves para serem assinados, voltam para mim e seguem por correio para a DGAE. É impossível. O prazo é muito curto. Antigamente, desde que devidamente justificada, mesmo com atraso, os documentos eram aceites. Agora, o ministério introduz regras draconianas em termos de prazo, de tal forma apertados que as instituições não conseguem cumprir. Em cinco dias não se consegue juntar a documentação toda, às vezes nem é a escola, são os pais que não conseguem.”
Encontra, aliás, uma outra explicação para o problema: na sua opinião, a suposta mudança de regras tem a ver com questões ideológicas: “A secretária de Estado adjunta da Educação, Alexandra Leitão, já assumiu ser contra a escola privada. Nós temos sete escolas há anos à espera de contratos simples. A resposta era que não havia dinheiro, agora dizem-nos simplesmente que não haverá novos contratos. Por vias burocráticas, impõe-se uma ideologia que viola a Constituição da República e a liberdade de ensinar e aprender. Não sei se o Governo vai continuar esta senda de perseguição ao privado…”
Ponces de Carvalho garante que a escola reclamou junto da tutela, mas a resposta foi inflexível. “Prejudicou os pais e prejudicou a escola, porque se criou uma situação de conflito. Nós passámos de 7 para 4 escalões no pré-escolar e no 1.º ciclo, quando na verdade só devíamos ter um escalão com o custo real de manter um aluno.”
Sem apoios do Estado, as mensalidades dispararam
Segundo a tabela apresentada no ano letivo 2017/2018 para o 1.º ciclo, e consoante o número de filhos a frequentar o colégio, a escola da Estrela apresentava aumentos que variavam entre os 12% e 180%, dizem os pais ao Observador, baseando-se nas contas apresentadas e discutidas em assembleia geral da anterior associação de pais. Estas contas baseiam-se apenas nas comparticipações familiares, o valor que era apresentado às famílias para ser pago. Não é levada em conta a comparticipação do Estado.
Para além de passarem a pagar também o mês de agosto (o que, antes, não acontecia), as subidas de preços eram generalizadas também para o pré-escolar e para a creche e reduziam-se os descontos para irmãos e para quem pagava a mensalidade anual de uma só vez.
Apesar de ser uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) sem fins lucrativos, alguns dos aumentos mais altos afetavam as famílias mais carenciadas. Em contrapartida, especificamente nos preços da creche, os encarregados de educação com rendimentos mais elevados tinham direito a uma descida no valor. Tudo isto acontecia, argumentava a direção da associação em carta aos pais, porque a escola perdera vários apoios financeiros da tutela e precisava de garantir a sobrevivência económica do colégio.
Ao fazê-lo, segundo o parecer jurídico pedido pela anterior associação de pais da escola da Estrela, distribuído por todos os encarregados de educação e a que o Observador teve acesso, a João de Deus violou o estatuto de IPSS, o que torna “o aumento absolutamente ilegal”. Porquê? Não só “desconsiderou os interesses dos mais desfavorecidos”, como colocou os interesses da associação à frente dos dos alunos, o que viola o artigo 5.º do referido estatuto: “Os interesses e os direitos dos beneficiários [de IPSS] preferem aos das próprias instituições, dos associados ou dos fundadores.”
Isto aconteceu ao aumentar de forma desproporcional as mensalidades em relação aos rendimentos das famílias, sustenta o documento, e numa altura em que estas não teriam outra hipótese que não a de manter os filhos no colégio.
António Ponces de Carvalho não nega o aumento das mensalidades, garantindo que, nas creches, em nenhum caso ultrapassou “o valor de 5% que lhe é permitido fazer por lei”. Já no 1.º ciclo diz que o “aumento foi zero”: o que aconteceu foi que os pais perderam os apoios estatais a que tinham direito e que lhes garantiam o pagamento de parte da propina do colégio.
Mas segundo as contas feitas pelo Observador, com base nas tabelas dos dois anos letivos disponibilizadas pela associação, não é verdade que o aumento seja zero. Basta olhar para o valor da mensalidade máxima do 1.º ciclo, que passa de 338 para 370 euros — trata-se de um aumento de 9,5% para famílias que não tinham sequer o apoio estatal para pagar propinas e, portanto, a explicação de Ponces de Carvalho não encaixa com a realidade. Neste casos, não há perda de apoio estatal e há, na mesma, aumento de mensalidade.
Se olharmos para as famílias que recebiam apoio estatal, o aumento também não é zero. Para quem recebia o apoio máximo do Estado (1110,14 euros/ano) e pagava mais 100 euros por mês (a parte que cabia à família), o total anual era de 2210,14 euros. Passou a ser de 3080 euros. De novo, não se pode falar em aumento zero, já que há mais 800 euros a pagar por ano. Mensalmente, a prestação passou a ser de 240 euros.
Escola insiste que não houve aumentos. “Foi 0%”
Os aumentos das mensalidades não surgem de um dia para o outro. Muitos outros problemas foram surgindo na escola — e que, na opinião dos pais ouvidos pelo Observador, revelam má gestão dos colégios — criando o efeito de bola de neve. O culminar foi o aumento das mensalidades. E por que motivo a associação culparia o Ministério da Educação? Por atribuir à tutela a perda dos contratos simples.
“Seremos forçados a introduzir algumas alterações nas comparticipações familiares, em que algumas famílias beneficiarão de uma redução e outras, porventura, sofrerão um aumento”, lê-se no comunicado número 19 da Associação de Jardins Escolas João de Deus, assinado por Ponces de Carvalho, onde se justifica esta alteração das tabelas de creche, pré-escolar e 1.º ciclo com novas regras impostas pelos Centros Regionais de Segurança Social, pelo Ministério da Educação e com o valor que deixarão de receber na Estrela por parte destas entidades.
Segundo Ponces de Carvalho, em entrevista ao Observador, os contratos simples foram perdidos em três escolas: a da Estrela, a de Chaves e a de Santarém, daí ter havido necessidade de refazer preços, mas insiste que as mexidas nas tabelas não se trataram de aumentos. A tutela apenas reconhece a não renovação na Estrela e em Chaves e desmente o caso de Santarém. O ministério explica que, apesar de o pedir todos os anos, nunca a escola obteve o contrato simples.
Ponces de Carvalho insiste: “No limite, nós não aumentámos as mensalidades, deixámos foi de ter contratos simples. Nós não aumentámos nada, os pais é que deixaram de receber o apoio do Estado. Se fizéssemos como outras escolas, os pais pagavam a mensalidade toda e recebiam do Estado no final. Aí, não haveria aumento nenhum. E não houve, foi 0%. Como deixou de haver contratos simples, os pais que sentiram esse aumento foram sobretudo os que tinha os escalões mais baixos”, diz Ponces de Carvalho, bisneto de João de Deus. E recusa a ideia de que essa mexida nas tabelas, que prejudica os mais carenciados, viole o espírito de IPSS: “Não foi um aumento. Deixámos de ter apoio do Estado. Se, de repente, a Segurança Social cortar o acordo de cooperação, também não posso ter crianças na creche a não pagar nada.”
O documento com as novas tabelas foi enviado aos pais a 16 de maio de 2018, quando várias famílias já tinham feito e pago a inscrição dos seus filhos para o ano seguinte, com base nas tabelas que estavam então em vigor. Aliás, na semana anterior, a 8 de maio, a comunicação da escola, assinada pela diretora e intitulada “Inscrições e novas tabelas”, mostrava valores bem diferentes. Acresce que, por esses dias, a maioria das outras escolas privadas e IPSS já tinha encerrado o período de matrículas, sendo complicado encontrar alternativas. Nas escolas públicas, as matrículas do 1.º ciclo começam, habitualmente, a 15 de abril.
Este é também um dos argumentos em que assenta o parecer jurídico que está com a atual associação de pais. Ao fazer a matrícula dos filhos com base nas tabelas antigas, o contrato entre pais e escolas considera-se assinado, não podendo depois haver mexidas posteriores nos valores, sem acordo prévio, já que isso seria um incumprimento do celebrado entre as partes.
A 17 de maio, chega o já referido comunicado número 19, assinado por António Ponces de Carvalho, que explica o porquê dos aumentos. “Temos sido confrontados com novas regras por parte dos Centros Regionais da Segurança Social e do Ministério de Educação, que reduziram as comparticipações a atribuir à associação no próximo ano letivo.” As novas tabelas apresentadas aos pais continuaram a ser estabelecidas de acordo com escalões de rendimento, mas agora decididos pela escola e não os previstos na lei.
Não tendo contrato simples, isso poderia até ser encarado como uma espécie de bolsa de estudos que a associação criava para as famílias mais pobres poderem suportar as mensalidades, não havendo qualquer impedimento legal para fazê-lo.
Parecer jurídico fala em aumentos ilegais
Se não tivesse estatuto de IPSS, e com base no parecer jurídico que está na posse dos encarregados de educação, os pais poderiam, ainda assim, acusar a Associação de Jardins Escolas João de Deus de má-fé, uma vez que lhes ocultou a perda dos apoios estatais, fazendo-os sempre crer que eram recuperáveis, ou até de má gestão, ao perceber que foi por culpa da escola e falha nos prazos de entrega que o contrato simples foi revogado, mas atribuindo aos pais o pagamento do valor em falta, embora estes não tivessem tido qualquer responsabilidade em todo o processo. O documento vai ainda mais além.
Em relação à data em que são comunicados os aumentos, o parecer considera que ao fazê-lo de forma tão acentuada, sem qualquer aviso prévio ou negociação com as famílias, a lei, em princípio, penderia também a favor dos estudantes, se o caso fosse a tribunal. Mais ainda no caso daqueles que já tinham pago a inscrição para o ano seguinte, altura em que as novas tabelas não tinham sido comunicadas.
Mas sendo uma IPSS na área da Educação, as regras são outras e as violações aos estatutos que regem estas instituições são ainda mais claros. Segundo o parecer assinado pela sociedade de advogados Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva, a associação de jardins-escola violou o Estatuto das IPSS, como já foi dito, já que a decisão de aumentar as mensalidades “privilegiou os interesses da associação, e dos seus associados, aos dos beneficiários, o que está expressamente vedado pelo artigo 5.º do Estatuto das IPSS”.
Por outro lado, defende que a culpa da perda dos contratos simples é da escola, não devendo os pais pagar pelo erro da instituição.
Da lei decorre também o princípio de preferência no apoio a pessoas mais carenciadas e o dever de promover condições para a democratização da educação e para a igualdade de oportunidades. “Na verdade, o que constatamos é a existência de um aumento exponencial das comparticipações familiares (por razões não cabalmente explicadas) que penaliza sobretudo as famílias de menores rendimentos. Aliás, estranhamente, o escalão mais alto até tem uma redução no jardim de infância”, lê-se no parecer.
Ao ser um aumento que representa uma proporção muito elevada no rendimento das famílias atingidas, considera-se estar posto em causa o direito fundamental à educação. “Ao aumentar desproporcionalmente o custo das mensalidades e o valor de outros emolumentos, a associação ter-se-à afastado do seu fim essencial enquanto IPSS”, sublinha o parecer. “Ora, claramente, a opção tomada foi a de pôr em causa o Direito à Educação e foi a contrária ao que os seus deveres de solidariedade impunham: poupou-se os alunos de escalão mais alto (…) e penalizaram-se os alunos de escalões mais baixos.”
“Por outro lado, tratou-se de uma decisão que violou de forma absolutamente ostensiva o princípio da proporcionalidade, desde logo, na obrigação de fixação de comparticipações financeiras adequadas às possibilidades de cada família”, defende a sociedade de advogados.
Acordos de cooperação nas creches, outra situação confusa
Se, para a João de Deus, os aumentos de preços no 1.º ciclo se devem a mudanças de regras do Ministério da Educação, a associação argumenta também que as novas tabelas da creche e pré-escolar são uma imposição da Segurança Social, que a associação tentou combater até ao limite.
No já referido comunicado número 19, Ponces de Carvalho fazia também referência a uma carta enviada ao ministro do Trabalho, Solidariedade e da Segurança Social, José Vieira da Silva, datada de novembro de 2016, onde é pedido um regime de exceção para as creches João de Deus. A questão prende-se com a fórmula utilizada para calcular o custo por aluno, já que a que os colégios usavam nos últimos anos viola as regras das IPSS.
“Como presidente da associação, tenho uma responsabilidade acrescida de cumprir escrupulosamente a lei, mas ao mesmo tempo preocupa-me quando se fazem alterações legislativas que implicam que as instituições deixem de ser sustentáveis do ponto de vista económico. Nós temos de garantir sustentabilidade para garantir a qualidade do serviço prestado às crianças, que é a nossa principal prioridade, mas também temos de honrar os nossos compromissos financeiros como o pagamento de ordenados. Trabalham aqui 1380 pessoas e temos cerca de 9000 utentes.”
Segundo Ponces de Carvalho, o antecessor do ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares (governo de coligação PSD/CDS), introduziu uma pequena novidade nas comparticipações familiares — a parte que as famílias pagam por terem os seus filhos numa creche que seja de uma IPSS. O restante é pago pela Segurança Social, um montante fixo por criança que, nas creches, é de 264,61 euros, como explicou ao Observador o Instituto de Segurança Social.
“Tirada do contexto, até tem toda a lógica. O que se dizia é que o escalão mais alto pago pelos pais não podia ser superior ao custo real por criança nessa valência. Isto veio alterar tudo. Nos primeiros quatro escalões, o que as famílias pagam somado às comparticipação da Segurança Social não chega para pagar o custo real por criança. A única hipótese de sustentabilidade que a instituição tem é que as famílias que podem pagar mais o façam para compensar as que pagam menos”, defende o diretor da associação.
Na sua opinião, ao fazer-se o preço por valência (que passou a chamar-se resposta social), o custo real de uma criança numa creche é muito superior ao de uma no pré-escolar, daí que muitas IPSS optem por ter as duas ofertas. “No berçário, o número máximo de crianças é oito e temos de ter uma educadora e uma auxiliar. Só para pagar dois ordenados, o custo por criança dispara”, argumenta Ponces de Carvalho.
Até à alteração introduzida por Mota Soares, que governou de 2011 a 2015, o que a associação fazia era calcular o custo real médio por criança a nível nacional. Assim, defende, conseguiam que os colégios em zonas mais privilegiadas suportassem o défice das escolas de zonas rurais e carenciadas. Apesar da alteração legislativa, mantiveram o procedimento, conscientemente violando a lei, ao mesmo tempo que enviavam um pedido de exceção ao atual ministro, em 2016. Embora essa possibilidade esteja prevista na lei, a resposta do Governo nunca chegou e a Segurança Social ameaçou cortar os apoios à IPSS se as tabelas não passassem a ser feitas com base no custo real por escola. Assim, no ano letivo passado, os valores da creche e pré-escolar foram também aumentados.
A explicação dada pelo Instituto da Segurança Social é clara: “De acordo com a legislação em vigor, a título de exemplo, uma instituição com creche em Vila Real terá um custo real por criança, em média, tendencialmente inferior a uma instituição com creche na cidade de Lisboa. Assim, resultaria que a comparticipação máxima da família com uma criança em creche em Vila Real será inferior à comparticipação máxima de uma família com uma criança em creche em Lisboa. Isto faz com que em determinadas creches o valor máximo da comparticipação familiar possa ser superior, e noutras inferior.”
Para o diretor da Associação de Jardins Escolas João de Deus, esta decisão é contrária ao verdadeiro espírito de solidariedade social. “Agora, por força da lei, temos seis equipamentos em Lisboa, em que cada um deles tem um custo real diferenciado. Isto varia sobretudo por causa dos ordenados, varia consoante o número de anos de serviço dos professores e do número de alunos. Na Estrela não se paga o mesmo que em Alvalade”, explica Ponces de Carvalho.
Questionado pelo Observador, o Instituto da Segurança Social confirma que os seus serviços têm desenvolvido ações de acompanhamento à associação, na valência das creches, “tendo sido já emitidas por alguns centros distritais recomendações sobre as tabelas de comparticipações familiares a aplicar, cabendo à Associação João de Deus alterar os regulamentos internos em conformidade”.
Estas recomendações surgem na sequência do acompanhamento normal às diversas respostas sociais desta instituição, explica o instituto na resposta ao Observador, bem como pelo facto de em alguns distritos terem sido efetuados reportes por parte dos pais.
“Clarifica-se que as recomendações emitidas são no sentido de serem aplicadas tabelas de comparticipação dos familiares distintas (nomeadamente no que se refere à comparticipação máxima familiar), para cada estabelecimento ou resposta social da Associação João de Deus, consoante o custo médio real de cada utente naquele estabelecimento ou resposta social, conforme previsto na legislação em vigor, a qual não sofreu alterações”, explica fonte oficial do Instituto da Segurança Social, que diz estar a acompanhar as diligências efetuadas pela associação João de Deus para cumprir as recomendações.
Neste momento, a Segurança Social tem 54 acordos com a João de Deus, distribuídos por 12 distritos, 19 para valência de creches e 35 para pré-escolar, num total de 3068 utentes.
No jardim de infância da Estrela, foram as famílias mais carenciadas com filhos no pré-escolar que sofreram maiores aumentos. Uma família no 1.º escalão que pagava até 25,07 euros mensais passou para 42,63. Quem pagava o máximo, até 338 euros, desceu para 270,76.
Este é um dos principais motivos para o parecer jurídico pedido pelos pais considerar que há violação do estatuto das IPSS, no qual se argumenta que “decorre daqueles princípios previstos na lei, o princípio de preferência ou prioridade no apoio para as pessoas ou grupos mais carenciados e desfavorecidos”. E isso não se verifica, uma vez que são esses grupos os que sofrem maiores aumentos na creche. Entre quem tinha direito a apoio estatal no 1.º ciclo, são também os mais carenciados a suportar o maior aumento, superior a 600 euros ao ano.
O Instituto de Segurança Social refere que “não estando legalmente estabelecido um referencial mínimo para frequência de utentes de famílias com rendimentos inferiores, podendo a instituição selecionar utentes inseridos em agregados familiares de vários escalões de rendimentos, de acordo com a alínea e) do art.º 12.º da Portaria n.º 196-A/2015, de 1 de julho, as ‘Instituições devem privilegiar as pessoas e os grupos social e economicamente mais desfavorecidos‘”.
Pais são aconselhados a não pagar mensalidades
“Como negócio, a decisão faz imenso sentido”, diz Joaquim que tem três filhos a frequentar a escola da Estrela. “Faz-se uma limpeza dos que pagam menos e torna-se a escola mais atrativa para as famílias com mais dinheiro e que pagam mais. A lógica empresarial está lá, ao baixar as mensalidades para os mais ricos. O problema é que estamos a falar de uma IPSS que não pode fazer isto.”
Os maiores aumentos foram para famílias como a sua, com três filhos a frequentar a escola no 1.º ciclo, já que se reduziu o valor do desconto para irmãos. Para quem esteja no 1.º escalão de comparticipação (onde o Estado cobre a maior fatia da mensalidade), o aumento foi de 180%. De 3.240 euros anuais, a fatura subiu para 9.060 euros, ou seja mais de cinco mil euros de aumento. Na outra ponta da tabela, no 7.º escalão, o aumento anual é de 2.691 euros, mais 25% do que no ano anterior. No pré-escolar, o 1.º escalão sofreu um aumento de 108% enquanto que para o 6.º escalão houve uma redução de 18%, o que significa que as famílias com maiores rendimentos iriam pagar menos 749 euros ao ano. Todos estes valores constam de documentos entregues aos encarregados de educação e a que o Observador teve acesso.
Em assembleia geral da associação de pais, depois de confrontados com as novas tabelas, foi votada a decisão de pedir o parecer jurídico. Quando chegou, e perante a conclusão de que havia ali uma ilegalidade, os pais foram aconselhados a não pagar as mensalidades.
“Nessa assembleia, mediante o parecer jurídico que nos dizia que tudo aquilo era ilegal, fomos aconselhados pela associação de pais ou a não pagar de todo as mensalidades, entregando uma justificação, ou a pagar mediante as tabelas que estavam em vigor na altura da matrícula, até haver uma decisão de tribunal ou um acordo. Houve de tudo. Alguns pais não quiseram arriscar e pagaram os novos preços, outros continuam até hoje a pagar mediante a tabela antiga”, conta Salvador. No seu caso, e porque habitualmente pagavam a mensalidade anual de uma só vez, pagaram o valor com os aumentos.
“Não era o que eu queria… Mas foi o que aconteceu. Entretanto, como muitos pais não estavam a pagar mensalidades, começou o clima de ameaça. Começaram a dizer que as crianças que não tivessem a situação regularizada iam ser proibidas de entrar na escola e a própria diretora foi ameaçada de despedimento se não conseguisse resolver o problema”, relembra Constança. Como já foi dito, a diretora recusou falar com o Observador.
Joaquim recorda o mesmo episódio. “Depois de a associação de pais ter emitido um comunicado de força a recomendar que não se pagasse as mensalidades até que as coisas ficassem clarificadas, surge o comunicado 50, assinado pelo dr. Ponces de Carvalho, onde garantia que a escola faria acertos caso existissem alterações nas tabelas decretadas pelo Ministério da Educação e da Segurança Social.”
Isto só aconteceu porque a escola ficou com um problema de cash flow e porque dizia não ter dinheiro sequer para pagar ordenados, sustenta Joaquim. Com a promessa de acerto, os pais voltaram a pagar as mensalidades. A família de Joaquim continua até à data a pagar pelo valor antigo, apresentando sempre uma justificação para fazê-lo. Da escola recebe um recibo a dizer que efetuou um pagamento parcial. “Por mim, está tudo bem. Quando o assunto se resolver, para um lado ou para outro, os acertos serão feitos.”
Com base no parecer jurídico, os pais poderiam ter seguido a via judicial. Porque é que não o fizeram? “Tem tudo a ver com a probabilidade de sucesso. Quem tem filhos no ensino pré-escolar tem grandes hipóteses de vencer, porque fizeram a inscrição antes de ser anunciada a tabela nova. Para quem tem filhos no 1.º ciclo, se calhar já é uma percentagem de 50/50. Quem não gosta de se meter em riscos, foge dos tribunais”, sublinha Joaquim.
Pais falam de má gestão da associação
O ano que terminou com o aumento das mensalidades foi cheio de altos e baixos. O primeiro problema era consequência da decisão da escola de criar uma nova turma de bibe amarelo (3 anos) no ano letivo de 2014/15. Até à data, na Estrela, cada um dos anos de escolaridade, da pré ao 2.º ciclo, só tinha duas turmas a funcionar.
Até aqui tudo bem, até porque havia a garantia da associação de que, daí para a frente, haveria uma turma extra para os bibes seguintes — o encarnado (4 anos), o azul escuro (5 anos) — e para todas as turmas do 1.º o 6.º ano, outra novidade naquele jardim escola de Lisboa que tinha alargado dois anos antes a sua oferta escolar até ao 2.º ciclo.
Mas a garantia oferecida aos pais não podia ter sido dada pela direção sem assegurar determinadas condições: para ter uma turma extra no 1.º ano, necessária para garantir lugar a todas as crianças do bibe amarelo, era fundamental ter um alvará emitido pela DGEsTE. E ele não apareceu porque não havia espaço físico na escola para criar mais uma sala.
A má notícia foi enviada aos encarregados de educação no final de 2017. Nem todas as crianças que, entretanto, já estavam no bibe azul escuro (5 anos) teriam lugar na escola no ano letivo seguinte, o de 2018/19, já que não havia autorização da DGEsTE para criar uma turma extra de 1.º ano.
Aqui os pais dividiram-se. Houve quem preferisse matricular os filhos no 1.º ano o mais rapidamente possível, esperando que a questão do alvará fosse solucionada, e outros que preferiram não arriscar e retiraram os filhos da escola. O problema que os pais apontam é o método particular seguido na João de Deus: a cartilha maternal usada para o ensino da leitura e a forma como é aprendida a matemática são muito diferentes de outros modelos pedagógicos, por isso, ao inscreverem ali os seus filhos, há uma intenção de continuidade que, sem lugar para todos, fica frustrada.
Salvador e Constança optaram por inscrever o filho que ia entrar para o 1.º ano o mais rápido possível. Apesar de todos os problemas que iam surgindo, mantinham fé na escola e acreditavam que tudo se iria resolver. “Ele estava a dar-se muito bem com o método João de Deus, o ambiente de escola era bom, a maioria dos professores eram empenhados. O plano era que ficassem lá os dois até ao 6.º ano”, sublinha Constança.
Mas, como o seu marido lembra, da turma do filho do meio poucos alunos se mantiveram na escola. “Havia esta instabilidade de, de repente, perceber que não havia lugares para todos. Depois, houve a questão das mensalidades. Também houve professores de referência da escola que começaram a sair. Houve muitos pais que tiraram os filhos da turma que ia para o 1.º ano: uns porque não iam conseguir pagar as mensalidades, outros porque sentiam que estavam a ser gozados. Perderam a confiança na escola. Eram muitas mentiras. A diretora dizia que não podiam fazer mais nada, que o presidente da associação, o Ponces de Carvalho, estava em paz com o futuro, e foi a associação de pais que se mexeu e conseguiu resolver a situação”, diz Salvador.
Numa reunião com a DGesTe, onde estavam presentes Ponces de Carvalho, Ana Maria Virtuoso e a anterior associação de pais, foi desta última que surgiu a solução. O alvará da escola estava dividido entre pré-escolar e 1.º ciclo e comportava um determinado número de salas. Acontece que qualquer sala preparada para o pré-escolar tem condições para receber turma do 1.º ciclo. A pergunta dos pais presentes na reunião foi: “Podemos passar a sala extra do bibe amarelo para o 1.º ano? ” A resposta da DGeste foi afirmativa: os bibes do pré-escolar mantinham-se com duas turmas, e a sala extra recebia a terceira turma do 1.º ano. Problema resolvido.
“O que me chocou, no meio disto tudo, foi a escola ter enviado um email a dizer, com outras palavras, claro, mas que o problema agora era dos pais. Faltou-lhes capacidade de gestão para resolver um problema que depois viemos a saber era fácil de solucionar”, salienta Joaquim. Para este pai, o grande problema da escola e da associação dos jardins-escolas é essa falta de capacidade de gestão e uma crença enraizada de que os problemas ainda se resolvem com telefonemas a ministros. Pelo caminho, acredita, o projeto educativo vai-se perdendo.
Tal como Salvador, também Joaquim se queixa de muitos professores de referência terem abandonado a escola e terem sido substituídos por outros, em início de carreira, que não dominam o método João de Deus tão bem como aqueles que saíram.
“O perfil do dr. Ponces de Carvalho é o de uma pessoa de família antiga: isto é uma escola centenária, que nasceu dentro de um ambiente muito diferente do atual, em que facilmente se resolvia as dificuldades com favores e telefonemas a ministros. Hoje as coisas já não se resolvem assim. Felizmente, nos últimos anos, a regra passou a ser outra. As pessoas com nomes sonantes e em cargos importantes até se dispõem a ajudar, a abrir portas, mas dentro da lei. Ao primeiro sinal de que há esquema ou irregularidades, desaparecem”, argumenta Joaquim.
Mais uma pedra no caminho: falta alvará para o 5.º e o 6.º ano
Se os pais que tinham filhos prestes a entrar no 1.º ano ficaram com o problema resolvido, outro mantinha-se: também o alvará para o 5.º e 6.º ano não estava em conformidade com a lei. Apesar das sucessivas renovações provisórias, ano após ano, as obras necessárias para garantir o alvará continuavam por fazer, acusam os pais.
Ao Observador, Ponces de Carvalho garante que todas as obras que foram pedidas à escola foram feitas no devido tempo. Ressalva, no entanto, que em cada nova vistoria aparecia um novo detalhe que precisava de ser arranjado, já que a escola está instalada num edifício que data de 1915.
No mesmo comunicado da DGesTE, a que o Observador teve acesso, em que se proibia a constituição da terceira turma de 1.º ano (problema que se resolveu), a direção geral revogava o alvará para funcionamento das turmas de 2.º ciclo. No ano letivo seguinte, 2018/19, não poderia haver novas turmas de 5.º ano e só os alunos que já frequentavam a escola e que transitavam para o 6.º ano podiam frequentá-lo.
Aconteceu ao filho de Catarina e Romeu. A filha mais velha do casal fez todo o percurso naquela escola, o filho mais novo ia passar para o 5.º ano quando a escola avisou que não ia haver turma por falta de alvará.
“Quando recebemos a notícia, ficámos irritados, não escondo isso. Mas ao mesmo tempo também estávamos descontraídos. Adorávamos a escola, os professores, os auxiliares, e os nossos filhos andavam ali por causa do método João de Deus. Queríamos que ele continuasse até ao 6.º ano, como tinha acontecido com a irmã. Estávamos tão convencidos de que tudo se ia resolver que até pagámos a inscrição para o ano seguinte. Estamos a falar de uma escola, há alunos envolvidos, nunca nos passou pela cabeça que o problema não fosse resolvido rapidamente”, argumenta Catarina.
“Sinceramente, fiquei chocado quando percebi que não ia haver solução. Nunca duvidei. Quando pagámos a inscrição, era uma forma de dizer à escola que acreditávamos nela, que sabíamos que tudo ia acabar bem. Não acabou. O nosso filho não se importou porque gosta de coisas novas e já estava ali desde os três anos. Mas nós não. Não estávamos a contar com aquilo, como também não estávamos a contar que tantos professores se fossem embora. A componente humana era boa e estava a perder-se”, diz Romeu.
O aumento das mensalidades também foi um murro no estômago, mas Catarina acredita que iam conseguir dar a volta à questão. “Ia ser bastante complicado para nós, mas íamos fazer de tudo para mantê-lo na escola. Ser uma IPSS e podermos pagar de acordo com os nossos rendimentos pesou na nossa escolha, claro, mas acima de tudo interessava-nos o método pedagógico João de Deus a que os nossos filhos se adaptaram muito bem. Faz-me muita confusão começar a ver a gestão da escola ser arruinada e isso estar a afetar a pedagogia, com bons professores a irem-se embora”, confessa Catarina.
Numa reunião da turma do filho mais velho de Salvador, que está no 4.º ano, foi dito aos encarregados de educação que a escola tinha certeza quase absoluta de que este ano voltaria a haver turma do 5.º ano. Joaquim, que também tem um filho no 4.º ano, diz que, no início de fevereiro receberam uma comunicação a dizer que o alvará ainda não estava garantido. “Não está nem vai estar. As obras continuam por fazer”, remata, contrariando as afirmações de Ponces de Carvalho.
O Ministério da Educação explicou ao Observador que, por despacho de abril de 2013, foi concedida a primeira autorização provisória para funcionamento do 2.º ciclo na Estrela, que funciona em alguns espaços do novo edifício que foi construído para albergar a Escola Superior João de Deus, paredes meias com o jardim de infância.
A autorização era válida para 2013/2014 e, desde logo, explica a tutela, a DGesTE explicou que a renovação ficaria condicionado “à obtenção e envio dos documentos e implementação das recomendações descritas em ofício enviado àquela escola”. Em julho de 2014, um despacho concede a primeira renovação de autorização provisória, válida para o ano letivo 2014/2015. De novo, a escola era avisada dos documentos em falta para garantir o 2.º ciclo: “(1) Licença de Utilização a emitir pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) para o novo edifício onde se localizam as salas do 2.º ciclo; (2) Declaração da CML informando sobre a conformidade das instalações do antigo edifício em relação ao disposto no Decreto-Lei n.º 163/2006 de 8 de agosto; (3) Comunicação, atualizada, da Autoridade Nacional de Proteção Civil em como estão reunidas as condições de segurança contra o risco de incêndio.”
Em 2015, novo despacho, segunda renovação da autorização provisória. Em 2016, novo despacho, terceira renovação da autorização provisória. Em ambos os anos, a escola foi avisada de que se mantinham “na íntegra todos os condicionalismos que não permitiam o averbamento” do 2.º ciclo no alvará da escola.
Em junho de 2017, surge a última renovação da autorização provisória. Nesse ofício, a DGesTE volta a pedir os documentos em falta à escola, deixando um aviso: “O prazo estipulado para o funcionamento ao abrigo de autorizações provisórias esgotava-se no final daquele ano letivo.” Caso a escola não reunisse as condições necessárias, deveria encerrar o 2.º ciclo “no final do ano letivo 2017/2018 e avisar desse facto, e em devido tempo, todos os encarregados de educação”, explica o ministério.
Apesar disso, a direção da escola, em reunião com a DGEstE, solicitou, ainda assim, autorização para que os alunos que frequentavam o 4.º ano se pudessem inscrever no 5.º ano: “Essa hipótese não foi aceite, acedendo-se, contudo, e no interesse dos alunos, que os que frequentavam o 5.º ano pudessem concluir o 2.º CEB na mesma instituição”, explica a tutela.
Em março de 2018, a DGEstE enviou o ofício final ao jardim-escola da Estrela. Caso não fossem enviados os documentos em falta dentro do prazo anteriormente concedido, final do ano letivo 2017/2018, ou seja até junho, não seria concedida mais nenhuma autorização provisória de funcionamento. Da mesma forma, sublinha a tutela, não seriam “permitidas novas inscrições no 5.º ano para o ano letivo 2018/2019” e “aos alunos que transitavam para o 6.º ano era permitida a conclusão do 2.º CEB naquele estabelecimento de ensino, em nome da continuidade pedagógica e percurso dos alunos no ciclo”. Por último, era determinado o cancelamento da autorização provisória para o 2.º ciclo a partir do final do ano letivo 2018/2019.
“Até à presente data não foram enviados quaisquer documentos que alterem a decisão anteriormente comunicada”, sustenta o Ministério da Educação, que garante que as regras da DGesTE para concessão do averbamento do 2.º ciclo “mantiveram-se e mantêm-se inalteradas desde 2013”. No entanto, ressalva que se até ao final do atual ano letivo (junho de 2019) forem recebidos os documentos em falta, ainda será possível à escola conseguir alvará para o ano letivo que vem, o de 2019/2020.
Segundo Ponces de Carvalho, só falta ter um papel da Câmara Municipal de Lisboa para garantir o alvará. “Se não conseguirmos entregar o papel até dia 28 de fevereiro [data que a tutela não consegue explicar], não temos autorização para o próximo ano, estamos com a corda ao pescoço. Já não está nas nossas mãos, as obras foram feitas, agora é com a câmara. Falta nova vistoria dos bombeiros e um parecer da autarquia. A esperança é a última coisa a morrer, tenho pena de que só por causa de um papel o 2.º ciclo não poder funcionar.”
Contactada pelo Observador, a Câmara Municipal de Lisboa disse estar marcada uma vistoria às instalações do colégio para o próximo dia 8 de março.
Quanto às acusações de alguns pais de que o seu objetivo é transformar a João de Deus num colégio totalmente privado, deixando de lado o estatuto de IPSS, Ponces de Carvalho é taxativo: “Digo isto com o coração nas mãos, se não fosse este legado familiar, amar este país e esta instituição, já há muito tempo que me tinha ido embora. Enquanto puder, vou continuar a batalhar por este ideal, que acho que é muito bonito. Ser um colégio privado era a negação do nosso princípio. O meu avô recusou isso, quando lhe foi proposto por Salazar. Não sou eu que vou fazê-lo.”