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A primeira reação foi de choque, a segunda de asco, o estômago a revolver-se involuntariamente à visão da fotografia que a filha, de apenas 14 anos, tinha acabado de lhe mostrar, no ecrã do telemóvel. “Foram umas amigas que me enviaram num grupo de WhatsApp, usaram uma aplicação que tira a roupa às raparigas”, explicou a adolescente, incomodada mas tranquila. Sabia que não tinha feito nada de errado, a cara era a sua, sim, o corpo nu que a acompanhava é que não.
“Senti repugnância, era a cara da minha filha no corpo nu de outra pessoa, desconhecida. A aplicação é super real, está muito, muito, muito bem feita”, recorda José Ramón Paredes, 52 anos, ao Observador. “Mas, por outro lado, também pensei que, como não era o corpo dela, nem eu nem ela tínhamos de ter vergonha. Primeiro, tranquilizámos a nossa filha — ‘Está tudo bem, não há nenhum problema, estamos aqui para ti e vamos denunciar isto, para que isto pare e já’ —, a seguir dissemos-lhe que não tinha nada de que se envergonhar. Explicámos-lhe que a vergonha e o ridículo recaem sobre as pessoas que fizeram isto, não sobre ela, ela não é vítima de nada, teve foi o azar de terem escolhido a cara dela para fazer isto.”
“Isto” aconteceu à filha de José Ramón Paredes e de Miriam Al Adib Mendiri e a pelo menos outras 21 adolescentes entre os 11 e os 17 anos de Almendralejo, a pequena povoação na província de Badajoz que esta semana foi abruptamente colocada no mapa mundial dos novos problemas e desafios criados pelo avanço da inteligência artificial, nomeadamente pelas aplicações que permitem, de forma gratuita e quase instantânea, “tirar a roupa” a pessoas.
As aulas começaram na sexta-feira, dia 15 de setembro. E nesse mesmo dia, em pelo menos quatro das cinco escolas secundárias de Almendralejo, terra com pouco mais de 35 mil pessoas, “onde toda a gente se conhece”, diz José Ramón, foram várias as estudantes confrontadas com as próprias imagens, nuas — sem que alguma vez se tivessem deixado fotografar de tal forma.
Esta sexta-feira, revelou Francisco Javier Mendoza, Procurador-Geral da Extremadura, em conferência de imprensa, já tinham sido identificados 10 menores, entre os 11 e os 14 anos, por estarem alegadamente envolvidos na “criação e difusão” das fotografias em causa.
Como “aproximadamente” metade dos adolescentes já completaram os 14 anos, acrescentou ainda, de acordo com a Lei de Menores em vigor em Espanha poderão ser responsabilizados criminalmente. Apesar de a primeira fase da investigação estar praticamente concluída e de nas últimas 24 horas não terem sido formalizadas novas queixas, acrescentou ainda o procurador, as autoridades não põem de parte que novas denúncias possam ainda surgir, para avolumar o processo.
Por definir estão ainda os tipos de delitos em que poderão incorrer estes adolescentes, tarefa que recairá agora sobre a Procuradoria de Menores espanhola, que esta sexta-feira passou a ser responsável pela investigação, na primeira fase a cargo da Polícia de Almendralejo.
Prova de que Almendralejo é realmente um “pueblo” muito pequeno? Uma das famílias que apresentou queixa, por manipulação de uma fotografia de uma adolescente, de apenas 12 anos, é também uma das famílias responsabilizadas, com o irmão mais velho da vítima a ter sido um dos primeiros administradores do grupo de WhatsApp em que as imagens circularam, já tinha revelado o El Mundo, numa altura em que as denúncias eram “apenas” 11.
Espanha. Fotografias manipuladas por inteligência artificial mostram alunas nuas
“Meninas, isto não vai ficar assim”. O direto de Instagram que pôs Almendralejo no mapa
Se a filha de José e Miriam, que lhes mostrou a foto no domingo, assim que chegaram a casa, vindos de um congresso em Barcelona, lidou bem com a questão — “A minha mulher, além de ginecologista, é comunicadora e escreve livros sobre o assunto, a nossa filha tem ferramentas para lidar com estas coisas”, explicou ele ao Observador —, não terá sido assim com grande parte das outras adolescentes.
“Claro que há raparigas que tiveram outra experiência, inclusivamente há raparigas que estavam a sofrer com isto desde junho e que, por circunstâncias familiares, não tinham sequer contado aos pais. Estavam a sofrer em silêncio”, revela José Ramón. “Há um caso de uma menor de 12 aninhos a quem pediram dinheiro para não divulgarem as fotos. Chegou a esse ponto. Tudo isto é um pouco triste”, lamenta o gestor das clínicas de ginecologia e obstetrícia de Miriam Al Adib, em Madrid, Marbella e Almendralejo, que esta semana passou também a ser o seu assessor de imprensa, tantas têm sido as solicitações que lhes têm chegado de meios de comunicação de todo o mundo, desde Israel ao Peru, passando por Reino Unido e França.
A verdade, diz, é que, apesar de várias adolescentes, não apenas em Almendralejo mas também noutras zonas de Espanha, já terem sido confrontadas com as suas próprias fotografias manipuladas através da Clothoff, uma aplicação que utiliza a inteligência artificial para “despir qualquer pessoa com o nosso serviço gratuito”, o caso só rebentou porque Miriam Al Adib, 46 anos, também explodiu — e recorreu à sua conta de Instagram, onde acumula 134 mil seguidores, para denunciar a situação.
“Meninas, isto não vai ficar assim. Estamos aqui todos juntos para acabarmos com isto agora”, escreveu naquela rede social a médica, autora de uma série de livros sobre saúde sexual feminina — Hablemos de Nosotras, Hablemos de Vaginas, Hablemos de Adolescencia e Hablemos de Menopausia.
No direto que fez, interpelou diretamente os autores das fotografias e tentou apelar-lhes à consciência (bem como ao sentido de auto-preservação): “Não têm consciência do mal que fizeram; se tivessem, não o teriam feito. Nem têm consciência do crime que cometeram. Se fizeram upload de alguma coisa, podem retirá-la; quanto mais depressa o fizerem, melhor. Fomos informados de que, nalguns casos, algumas destas fotografias foram colocadas em plataformas como a Only Fans, e devem saber que se trata de um crime muito, muito grave. A todos estes miúdos, parem com isto. Não apenas os que estão a despir artificialmente as raparigas, mas todos os que estão a partilhar. Se receberem imagens, vão à polícia e apaguem-nas. Não continuem a espalhá-las”.
As respostas ao vídeo que a ginecologista e professora de Sexologia partilhou, e que já foi visto mais de 178 mil vezes, continuam a chegar — e a dar conta de situações idênticas.
“A minha filha sofreu algo semelhante, até tentaram chantageá-la. Fui à polícia logo no primeiro minuto. Localizaram os telefones, foram a casa do autor da ‘partida’ e foram tomadas as medidas adequadas. Temos de denunciar e sensibilizar as pessoas. Não é uma partida, é um crime e, por vezes, os danos são irreparáveis”, escreveu uma seguidora.
“Infelizmente, esta é uma nova moda. Em Ayamonte (Huelva) aconteceu a mesma coisa. Um rapaz dedicou-se a fazer nus de metade das raparigas da cidade com uma app. Foram afetadas raparigas dos dois liceus de Ayamonte. Nesse dia, o quartel da Guardia Civil era um enxame de pais”, comentou outra.
Uma crise que pode ser uma oportunidade (depois de as vítimas serem tratadas e os agressores educados)
Esta quinta-feira, José e Miriam, pais de quatro raparigas, entre os 12 e os 17 anos, estiveram em Madrid, para participar num programa de televisão, e tiveram essa mesma noção, de que o problema é generalizado, ao conhecerem outra mãe, de outra adolescente, que, a centenas de quilómetros de distância, sofreu com a mesma “partida”. “O caso de Almendralejo não é único, esta semana têm surgido outras denúncias, noutras cidades. Hoje estivemos em Madrid e no plateau de um programa a que fomos havia outra mãe, de Alcalá de Henares. O caso de Almendralejo foi o que pegou fogo e que pôs toda a gente a falar nisto apenas por sorte, porque caiu nas mãos de uma pessoa conhecida e com capacidade de divulgação que chegou a todos os meios de comunicação”, diz José Ramón.
No final, defende, o resultado pode até ser positivo: “Como este tema da inteligência artificial aplicada aos telemóveis é tão novo e incipiente, a legislação tem surgido de forma muito lenta. Isto pode servir para alterar todo o quadro jurídico e sobretudo para que todos — jovens, pais e professores — se eduquem sobre isto, para que não tornem a acontecer casos como este. No fim, esta crise pode ser uma oportunidade para legislar, para melhorar e para aumentar a segurança em torno das crianças, sobretudo no que diz respeito à tecnologia“.
Se depender de Miriam Al Adib, que até foi uma das últimas pessoas a aderir ao grupo de WhatsApp que no passado domingo começou a reunir mães e pais de várias escolas de Almendralejo (e também uma das últimas a apresentar queixa na esquadra local, já na manhã de terça-feira), a oportunidade não será desperdiçada. Tal como o marido, também a ginecologista não acredita que os adolescentes agora identificados pela polícia como autores das fotografias devam ser punidos com penas efetivas. O tempo é de consciencializar e tratar — sobretudo as adolescentes e famílias que mais sofreram com a situação, como Fátima Gomez Perez que não se mostrou disponível para falar ao Observador, mas contou ao El País que, quando viu a fotografia alterada da filha, de apenas 12 anos, sofreu um ataque de ansiedade.
“Aqui todos nos conhecemos, conheço os miúdos de vista e inclusivamente conheço os pais deles. Não posso dizer que são crianças más e que devem ir para a prisão. São crianças, fizeram algo sem saber efetivamente os danos que iam provocar. Era uma brincadeira, para se rirem um bocado, e no fim acabaram por perder o controlo da situação. Têm, sim, de aprender que a tecnologia não existe para ser usada assim, existe para ser usada em prol das pessoas e não contra elas”, diz ao Observador José Ramón Paredes.
Em entrevista também esta quinta-feira ao El Español, Miriam Al Adib aproveitou o mote deixado no início da semana por María Guardiola, a Presidente do Governo Regional da Extremadura, que anunciou a tomada de novas medidas para combater o “flagelo crescente” da “violência digital contra as mulheres”, e fez questão de recordar que o problema extravasa o Clothoff e o caso das falsas nudes de Almendralejo.
Mi profundo rechazo ante este suceso repugnante y mi apoyo a las menores y sus familias. La violencia digital contra las mujeres es una lacra en auge. Desde la Junta de Extremadura vamos a poner en marcha una formación específica y continua para combatirla. https://t.co/8yQBj2OBbi
— María Guardiola (@MGuardiolaM) September 18, 2023
“Basta ir ao Tik Tok durante algum tempo e ver como funciona. Vais ver as danças hipersexualizadas que encontras. Se mostrares um bocadinho, recebes um like; se mostrares outro bocadinho, mais likes. Estamos a banalizar a sexualidade e quem aparece sempre como objeto é a mulher”, apontou a ginecologista.
“Nenhuma das fotografias adulteradas foi tornada pública. Mas não importa se as raparigas apareceram ou não nas suas redes a tentar ser atraentes, uma vez que os autores da manipulação utilizaram um simples programa de inteligência artificial para as fazer aparecer nuas. É um problema cultural”, continuou. “Porque [nós, mulheres] continuamos a ser um objeto ao serviço do outro. No tempo das nossas avós, a palavra sexualidade era sinónimo de reprodução e agora a sexualidade é sinónimo de prazer. Mas, nessa altura como agora, o homem é o sujeito e a mulher o objeto.”