Disseram-lhe que seria uma pessoa honesta e que estaria em Aveiro para estudar línguas. Fernanda, 72 anos, com uma apertada reforma de 340 euros e um quarto livre, decidiu abrir-lhe a porta a troco de 100 euros por mês. Por pena, até lhe lavava a roupa. Só mais tarde descobriu pela polícia que o homem que acolheu em casa se dedicava a angariar jovens em Portugal para integrarem as fileiras do Estado Islâmico (EI).
O arrendamento começou em 2014. Salim, como se identificou, foi-lhe recomendado por um amigo que acumula as funções de oficial de justiça com as de agente imobiliário. À PJ este amigo disse que provavelmente Salim respondeu aos anúncios de alojamento que publica na internet, como tantos outros estudantes em Aveiro. E que assim o recomendou. Salim aparentava ser um homem de 45 anos. Educado, disse estar naquela cidade para estudar línguas, que era tradutor, mas que precisaria de duas camas no quarto.
Como Fernanda não dispunha de duas camas, o hóspede contentou-se com dois colchões no chão. O segundo colchão viria a servir mais tarde para um outro amigo, mais novo, que se juntou a ele. Só quando a PJ descobriu a verdadeira identidade desta dupla percebeu tratar-se de Abdesselam Tazi, 64 anos, atualmente preso na cadeia de Monsanto e de Hicham El Hanafi, 26 anos, entretanto detido em Marselha (França) por suspeitas de estar a planear um ataque terrorista naquele país.
A PJ apercebeu-se da presença destes suspeitos em território nacional um ano depois de eles terem arrendado um quarto a Fernanda. Ainda fizeram vigilâncias à casa da mulher, já reformada, mas como não encontraram ninguém “suspeito” acabaram por entrar em contacto com a proprietária da casa. Do depoimento que prestou às autoridades, e que consta no processo que o Observador consultou, percebe-se que Fernanda desconhecia que os homens que albergou em casa a troco de 100 euros estivessem ligados a qualquer atividade criminosa.
Fernanda contou que os dois homens tinham acesso a toda a casa. Que por vezes o mais velho estudava na mesa da cozinha e que até consultava um dicionário em português. Tinham um computador e, mais tarde, ela até arranjou ligação à internet. A mulher desconhece como ganhavam dinheiro, mas nalguns atrasos pontuais na renda Salim dizia que estava à espera que lhe enviassem dinheiro de Marrocos. Salim, que afinal é Abdesselam Tazi, falava em português, mas também dominava o francês e o inglês.
Eram os dois hóspedes que compravam os seus alimentos e que cozinhavam e diziam que queriam ficar em Portugal porque era um “país calmo”. Diziam a Fernanda que queriam arranjar mulher, mas ela nunca lhes conheceu uma namorada. Segundo ela, ambos falavam muito em Alá, “que diziam ser o Deus deles “e tentavam convencê-la a acompanhá-los à igreja”. “Diziam para não pedir nada a Jesus mas a Alá, com as mãos viradas para cima”, recordou Fernanda.
À noite era frequente irem às compras, jogar futebol, ao pião ou fazer caminhadas em Aveiro. Fernanda chegou a acompanhá-los algumas vezes em passeios pelo Fórum Aveiro. Nunca se apercebeu de qualquer comportamento que os pudesse ligar ao terrorismo mas, na verdade, também nunca percebeu em que instituição estavam alegadamente a estudar línguas.
A senhoria contou às autoridades que era normal Salim se ausentar por alguns dias. Ele dizia que ia visitar amigos ao Porto ou a Coimbra. Chegou mesmo a falar na visita a um filho. Numa dessas ausências, Fernanda chegou a trancar a porta do quarto até ao seu regresso. Nesse episódio, recordou, Salim acabou por regressar a casa “aflito” porque se tinha esquecido de algo. Explicou que estava com pressa, que tinha um táxi à espera e que iria apanhar o avião no Porto. Ela não sabe para onde.
Pouco antes de a PJ ter a informação da sua presença e das suas funções em Portugal, em junho de 2015, Salim saiu de casa sorrateiramente durante a madrugada. O amigo estava nessa altura a trabalhar no Algarve, segundo contaram. Fernanda estava a dormir quando ouviu a porta bater. Foi a correr ver o que se passava e ainda encontrou Salim nas escadas, de mochila às costas e um saco em cada mão. “Então vai embora sem se despedir e sem me devolver a chave?”, terá perguntado. O marroquino, agora acusado de crimes ligados ao terrorismo, disse que não queria acordá-la e que levaria a chave porque teria que regressar para buscar alguns bens que ali deixara. Fernanda não permitiu que ele fosse embora com as chaves. E ele aceitou.
Pouco depois deste depoimento, a PJ acabou por colocar os telefones de Fernanda sob escuta. Salim chegou a contactá-la várias vezes por causa da correspondência que recebia ali em casa. À polícia, Fernanda contou que era ela quem lavava a roupa dos dois marroquinos. Disse que tinha “pena” de ambos. Que Salim andava sempre muito “bem vestido”, de fato, mas que muitas vezes lhe trazia roupa para lavar parecida com “a dos padres”.
Quem é Abdesselam Tazi?
Também conhecido por “Salim Adam”, Abdesselem Tazi tem 64 anos e foi polícia em Marrocos. A polícia acredita que chegou a Portugal a 23 de setembro de 2013, vindo da Guiné, num voo para o qual usou uma identidade falsa. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras descobriu-o e acabou por detê-lo. Tazi acabaria por pedir asilo ao Estado português, alegando ser politicamente perseguido em Marrocos. Nessa semana, Tazi ficou no Centro de Instalação Temporária de Lisboa. A 1 de outubro foi-lhe concedido o pedido de asilo e foi levado para o Centro de Acolhimento para refugiados da Bobadela, em Sacavém.
Durante esse mês, segundo revelaram algumas funcionárias do Centro ao Ministério Público, Tazi revelou-se um “senhor, uma pessoa muito digna, muito calmo”, explicou uma das técnicas. Mas, para as autoridades, aquele foi o local usado para recrutar jovens para integrarem o Estado Islâmico. O suspeito acabaria, depois, para passar para a tutela da Segurança Social de Aveiro, tendo ficado num centro social até arrendar um quarto a Fernanda.
Segundo o despacho de acusação agora proferido, o arguido apresentava-se em público com uma “postura ortodoxa/fundamentalista, dedicada ao Islão, com fortes sinais de radicalismo islâmico e de defesa do silabismo Jihadista violento”. Crenças que, ainda de acordo com o Ministério Público, o levaram a aderir à organização terrorista designada por ISIL, também conhecido como o autoproclamado “Estado Islâmico” ou pelo acrónimo Daesh. Assim, o arguido começou a dedicar-se ao recrutamento de jovens marroquinos para integrarem a luta jihadista na Síria, assim como possíveis ataques terroristas na Europa.
As autoridades chegaram a ter o suspeito debaixo de olho e a fazer vigilâncias, mas sem indícios suficientes para o deter, acabariam por perdê-lo de vista. O suspeito chegou a entrar e a sair de Portugal diversas vezes. E até foram feitas várias buscas em locais onde Tazi pernoitou (alguns deles foram pensões em Aveiro e no norte do País), em que se apreenderam diversos documentos em árabe. Foram também colocados vários telemóveis sob escuta. As autoridades apuraram que, em 2011, Tazi tinha estado na Turquia, que não estava referenciado na lista de terroristas designados pela ONU, pelo que passou a usar a organização terrorista a partir de Portugal. E concluíram que tinha como funções “auxiliar e financiar a deslocação de cidadãos marroquinos para a Europa e em obter meios de financiamento para a causa jihadista”, descreve a acusação.
Tazi dava assim apoio logístico a jovens marroquinos para que eles conseguissem asilo político em Portugal e depois tentava convencê-los a integrarem a luta jihadista. Durante a estadia nos países onde pediam asilo (que não terá sido apenas Portugal), era Tazi quem pagava as despesas de alojamento e alimentação dos jovens “dando início ao processo de doutrinação”. As autoridades identificaram uma dezena de marroquinos que terão recebido ensinamentos do agora recluso da cadeia de Monsanto, a maior parte passou pelo centro da Bobadela.
As autoridades portuguesas, através da cooperação internacional, perceberam que o suspeito passou pela Alemanha, Reino Unido, França, Brasil, Holanda, Espanha e que voltou a Portugal. Mas foi na Alemanha que acabou detido a 1 de julho de 2016 por fraude informática, por causa da utilização de cartões de crédito. Aliás, segundo o Ministério Público, o suspeito tinha residência na Alemanha. Como o crime pelo qual foi detido devolve-lo-ia à liberdade pouco depois, as autoridades apressaram-se em emitir um mandado de detenção europeu.
O suspeito acabou por ser entregue a Portugal em março de 2017, onde no processo que corria contra ele constavam já vários documentos que provavam que falsificou documentos com identidades furtadas para conseguir financiamentos junto de instituições de crédito. Um dos lesados, que o suspeito tinha conhecido num centro social de Aveiro, chegou a ser contactado por Tazi para que lhes arranjassem mulheres com quem casassem.
Abdesselem Tazi, que ficou em prisão preventiva em março de 2017, é agora acusado de um crime de adesão a organização terrorista internacional, um crime de falsificação com vista ao terrorismo, quatro crimes de uso de documento falso com vista ao financiamento de terrorismo, um crime de recrutamento para terrorismo e um crime de financiamento do terrorismo.
Quando foi presente a tribunal remeteu-se ao silêncio. Mas, meses depois, mandou várias cartas da cadeia do Monsanto para jornais e entidades (governantes, juízes, procuradores e responsáveis da PJ). Diz que tudo não passa de uma “mentira” orquestrada por três marroquinos a quem recusou esconder droga, que não é terrorista e pede a libertação. O juiz de instrução, Carlos Alexandre, entendeu então ouvi-lo, por considerar que se calhar já estaria disponível para prestar esclarecimentos. No entanto o arguido “limitou-se a negar, de forma inconsistente, a prática dos factos de cuja prática já se encontra indiciado”, lê-se num relatório do Ministério Público que consta no processo e assinado em maio de 2017.
Quem é Hicham El Hanafi?
Hicham El Hanafi chegou a Portugal no mesmo voo que Tazi e, segundo as autoridades, seguindo a sua estratégia de pedir asilo, acabou por ser igualmente recebido no centro da Bobadela ao mesmo tempo que Tazi. Depois foi viver com ele para casa de Fernanda e dizia chamar-se “Xan”. Antes de chegar a Portugal, Hanafi “levava uma vida normal” em Fez, Marrocos. Trabalhava na restauração, divertia-se e até bebia bebidas alcoólicas. Só em 2013, quando conheceu Tazi, começou a seguir os preceitos religiosos islâmicos aceitando viajar com ele para a Europa. O Ministério Público acredita que este processo de doutrinação foi o primeiro passo para arrancar com um plano de recrutamento que o levaria a passar dois meses na Síria para aprender a combater.
“Hanafi foi instruído pela organização terrorista para regressar à Europa para recrutar novos combatentes e para exercer a Jihad, uma vez que falava várias línguas europeias”, lê-se no despacho de acusação.
As autoridades apuraram que Tazi e Hanafi chegaram a estar juntos em Paris, em 2014, como atestam fotografias apreendidas durante a investigação. E nas vigilâncias captaram vários momentos em que estão os dois juntos. “O arguido Abdesselam Tazi, juntamente com Hicham El Hanafi, visitavam” pessoas no Centro Português de Refugiados, na Bobadela, e procuravam convencê-las de que teriam “uma vida melhor” caso aderissem ao Daesh.
Hanafi chegou a tentar recrutar o próprio irmão, que também pediu asilo em Portugal. Prometeu-lhe um ordenado de 1800 dólares por mês caso integrasse as fileiras do exército “Foreign Fighters” para combater pela organização terrorista do Estado Islâmico. Mas ele recusou. Disse, depois, à polícia, que ele tinha tentado recrutar toda a família. Que os pais e irmãos chegaram a viajar para a Síria, mas só o pai e um dos irmãos regressaram a Marrocos.
O pai de ambos acabaria por ser ouvido por carta rogatória em Marrocos, explicando que essa viagem se deveu à festa de casamento de Hanafi. E que, por questões familiares, acabaria por chatear-se com a esposa e regressar a Marrocos, não mais tendo tido contacto com a família.
Em julho de 2016 Hanafi acabaria por ser detido em França por suspeitas de estar a preparar um ataque terrorista. Foi apanhado a comprar armas. Em Portugal, apesar de ser suspeito neste inquérito, as autoridades decidiram que, enquanto não recebem as respostas das cartas rogatórias enviadas a outros países, não iam avançar com a acusação. Hanafi será investigado num inquérito à parte com outros suspeitos com quem se relacionavam e que também estão na mira das autoridades, entre eles Abderramane Bazouz, Addesselam Anbaoui.
Cidadão marroquino prometia 1.800 dólares mensais em Loures a recrutas para o Estado Islâmico