Quando partiu para o debate na CNN na quinta-feira à noite, Joe Biden sabia que o esperavam 90 minutos de um teste à sua resistência física. Aos 81 anos, o atual Presidente dos EUA, que não consegue esconder uma imagem de grande fragilidade, recandidata-se a um segundo mandato que, se vencer, irá terminar quando tiver 86 anos. Por isso, a idade tem sido um tema que os oponentes de Biden não têm deixado escapar — têm aproveitado cada pausa, cada hesitação, cada atrapalhação e cada gafe para sugerir que o octogenário não tem capacidade para (voltar a) liderar o governo norte-americano.
No debate desta quinta-feira, Biden tinha como missão central evitar que o assunto da idade dominasse a discussão. Mas falhou — e falhou de forma tão evidente que, dentro do Partido Democrata, já se multiplicam as vozes que pedem a Biden que se afaste e permita a escolha de outro candidato. Durante 90 minutos, o atual Presidente dos EUA apresentou-se com uma voz frágil, hesitou múltiplas vezes, confundiu temas, atrapalhou-se frequentemente ao tentar completar as frases que trazia ensaiadas (para um frente a frente para o qual não era permitido levar apontamentos) e deixou a porta aberta para Donald Trump, que só tem menos três anos, usasse o tema da idade como quis. A certa altura, Trump, que conseguiu manter-se disciplinado durante o debate, respeitando os tempos e falando de modo mais claro do que o oponente, não resistiu mesmo à ironia, quando Biden se atrapalhou ao tentar terminar uma frase: “Não percebi o que é que ele disse no final dessa frase. Acho que nem ele sabe o que disse.”
No final do debate, é improvável que algum espectador tenha ficado mais esclarecido em matéria de substância política, já que a discussão baixou de nível várias vezes, com frequentes ataques pessoais diretos e até com uma bizarra discussão sobre quem joga melhor golfe, quando os dois candidatos foram questionados sobre o seu estado de saúde. Mas, em termos de desempenho (que é o principal objetivo destes frente a frente, montados como autênticos espetáculos televisivos), Joe Biden perdeu uma oportunidade decisiva para mostrar que tem reais capacidades para voltar a assumir a presidência. Na manhã desta sexta-feira, as manchetes de todos os jornais norte-americanos visavam diretamente o mau desempenho de Joe Biden, que ofuscou o facto de, no debate, Trump ter mentido a um ritmo impossível de acompanhar pelos fact-checkers.
Democratas em pânico
Nos minutos que se seguiram ao debate, a imprensa norte-americana deu conta do “pânico” em que ficou o Partido Democrata. A CNN veiculou os comentários de vários altos dirigentes democratas, que falaram sob anonimato, a propósito do frente a frente com Trump. “Biden parece e soa terrível. É incoerente”, disse uma das fontes, que trabalhou com Joe Biden no governo. “Horrível”, disse outro. “Estamos f******”, resumiu ainda um terceiro. “É difícil argumentar a favor de Biden ser o nosso nomeado”, acrescentou um quarto.
O debate da CNN tem uma particularidade que se pode revelar fundamental para esta situação: pela primeira vez, o frente a frente foi organizado por uma estação de televisão a título individual e não pela Comissão para os Debates Presidenciais, uma estrutura independente que é patrocinada pelos dois principais partidos norte-americanos e que tem como missão organizar este tipo de debates eleitorais. Depois de os dois partidos terem discordado das propostas originais daquela comissão, acabaram por alinhar nesta solução que inclui dois debates organizados pelas televisões: o primeiro foi na CNN esta quinta-feira; o segundo é na ABC News a 10 de setembro. Um detalhe: este debate aconteceu antes das convenções dos dois partidos que vão formalizar os nomes de Trump e de Biden como candidatos presidenciais. A convenção republicana acontece entre 15 a 18 de julho e a convenção democrata entre 19 a 22 de agosto.
Ou seja, tecnicamente, Joe Biden ainda não é formalmente o candidato democrata à presidência dos EUA. É simplesmente o único candidato democrata a ser candidato à presidência — e o seu nome será formalizado em agosto. Contudo, depois do desempenho desastroso desta quinta-feira, começa a formar-se dentro do Partido Democrata uma vaga que defende o afastamento de Biden e a escolha de um novo candidato.
À medida que a noite avançou, vários democratas foram repetindo, no espaço público, declarações pouco abonatórias de Joe Biden. David Plouffe, um antigo conselheiro de Barack Obama na Casa Branca, classificou o debate como “uma espécie de momento DEFCON1”, referindo-se ao código de alerta máximo usado pelas forças armadas norte-americanas para sinalizar uma guerra iminente. Falando em direto na televisão após o debate, outras figuras foram no mesmo sentido. Kate Bedingfield, antiga diretora de comunicação de Biden, classificou a sua prestação como “uma desilusão” e o antigo conselheiro de Obama, David Axelrod, referiu mesmo a necessidade de haver um debate interno sobre se Biden deve continuar ou não com a campanha para as eleições que decorrem a 5 de novembro.
Claire McCaskill, antiga senadora pelo Partido Democrata, esteve na MSNBC para lembrar que Joe Biden tinha uma tarefa: “Assegurar os EUA de que estava preparado para o trabalho na sua idade — e falhou.” Para McCaskill, a noite de quinta-feira foi “um murro no estômago”.
Também a partir do Partido Republicano tem havido tentativas de capitalizar o momento de pânico que se vive entre os democratas. Por exemplo, o congressista republicano Chip Roy veio anunciar publicamente a sua intenção de propor no Congresso uma resolução a apelar à vice-presidente, Kamala Harris, que use os seus poderes constitucionais para assumir o governo norte-americano, declarando que Biden “está incapaz” de levar a cabo as suas funções.
Já o atual presidente da Câmara dos Representantes, Mike Johnson, que é um aliado de Donald Trump, deu uma entrevista à Fox News a dizer que o debate de quinta-feira pode mesmo ser perigoso para os EUA. “Foi triste ver. É perigoso pôr isto à vista do país. Estamos preocupados com isto porque os nossos adversários também o viram. Estamos num momento perigoso”, disse Johnson. “Temos a China, a Rússia, o Irão e a Coreia do Norte a formar um novo eixo do mal, a fazer ameaças a nós e aos nossos aliados. Não nos podemos dar ao luxo de ter isto no palco mundial. O único consolo que temos é que a ajuda está a caminho.”
Água na fervura
O aparelho democrata, contudo, entrou em modo de gestão de crise e esforçou-se desde os primeiros minutos do pós-debate para acalmar a agitação. O esforço incluiu mesmo o envolvimento direto da atual vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, que deu duas entrevistas para tentar controlar os danos. “Sim, [Biden] teve um início lento, mas terminou em grande”, disse Harris, primeiro à CNN, procurando acabar à partida com a discussão sobre a lentidão de Biden nas respostas. “Podemos debater sobre o estilo, mas, em última análise, esta eleição e a escolha do Presidente dos Estados Unidos tem de ser em torno da substância. E, aí, o contraste é evidente.”
Kamala Harris fez um esforço por relativizar o desempenho de Biden durante um debate de hora e meia, contrapondo com “três anos e meio de desempenho num trabalho que tem sido histórico”. Depois da CNN, Harris esteve na MSNBC para passar ao ataque contra Donald Trump, acusando-o de querer “criar o medo com base em ficção” — uma referência às repetidas referências de Donald Trump a uma suposta relação entre o aumento da imigração na fronteira sul dos EUA e o aumento da criminalidade no país. Ao mesmo tempo, Kamala Harris lembrou que Donald Trump nem sequer tem o apoio do seu antigo vice-presidente, Mike Pence: “Das duas pessoas que estiveram naquele palco, só um deles tem o apoio do seu vice-presidente, não nos esqueçamos disso.”
Ao mesmo tempo, já esta sexta-feira, fontes próximas do próprio Joe Biden vieram garantir que o atual Presidente dos Estados Unidos está a planear participar no segundo debate, agendado para setembro. Nessa altura, já terá ocorrido a convenção que irá formalizar o nome do candidato democrata à presidência. “Claro que ele não vai desistir”, disse esta sexta-feira uma porta-voz da campanha de Biden, Lauren Hitt.
Em múltiplas entrevistas e publicações nas redes sociais, outras figuras de topo do Partido Democrata vieram posicionar-se em defesa de Joe Biden. Hakeem Jeffries, o líder da bancada democrata na Câmara dos Representantes, foi taxativo numa entrevista à Fox News, quando questionado sobre se Biden se deve afastar: “Não.” Já o senador democrata John Fetterman, que nas eleições de 2022 também teve um mau desempenho num debate e, mesmo assim, ganhou o lugar de senador, pediu aos colegas democratas que se acalmem: “Recuso juntar-me aos abutres democratas em cima dos ombros de Biden depois do debate.”
Ao início da tarde desta sexta-feira, hora dos EUA, foi o próprio Joe Biden que resolveu dar a cara para falar da má prestação no debate. Na Carolina do Norte, antes das 14h00, perante vários apoiantes democratas, Biden afirmou: “Quando somos derrubados, levantamo-nos”. E sem problemas em reconhecer que está “realmente velho”, disse acreditar que ainda pode vencer o ex-presidente nas eleições de novembro. “Sei que não sou um homem jovem, para dizer o óbvio. Sei que não ando tão facilmente como antes, não falo tão bem como antes, não debato tão bem como antes, mas sei o que sei. Sei dizer a verdade”, disse o Presidente. E quis deixar claro que está apto para continuar no cargo: “Sei distinguir o certo do errado. Sei como fazer este trabalho. Sei como fazer as coisas. Dou-vos a minha palavra que não voltaria a concorrer se não acreditasse de alma e coração que posso fazer este trabalho. Porque, francamente, os riscos são demasiado elevados.”
Quem poderá substituir Biden?
Contudo, dentro do Partido Democrata, já há sinais de organização interna no sentido de forçar uma saída de Biden. “O movimento para convencer Biden a não se candidatar é real”, sintetizou ao Politico um congressista democrata que falou sob anonimato, mas que propôs mesmo uma fórmula: um “esforço combinado” de figuras como Hakeem Jeffries, Chuck Schumer (líder dos democratas no Senado) e até de Jill Biden, a primeira-dama, no sentido de convencer Biden a não avançar com a candidatura. Contudo, como diz o mesmo jornal, citando um conselheiro de Biden, ninguém quer ficar com a amarga responsabilidade de abordar o Presidente dos EUA com esta mensagem. Ainda assim, “terá de haver uma conversa, e vamos odiá-la”.
Até agora, não há qualquer sinal de que Biden tenha intenção de desistir — aliás, só sinais no sentido contrário. Seria, ainda na análise do Politico, uma “humilhação” para Biden terminar uma carreira de mais de 50 anos na vida política americana com uma saída a meio da campanha depois de um debate que correu mal.
Mas a verdade é que, dentro do Partido Democrata, circulam vários nomes como possibilidades de suceder a Biden. O mais óbvio, naturalmente, é o de Kamala Harris, a atual vice-presidente, que se tornaria de imediato Presidente caso Biden renunciasse não só à candidatura, mas também ao cargo. Porém, Harris tem sido clara nas suas posições públicas quanto ao apoio a Biden — e, além do mais, também tem um fraco desempenho nas sondagens de opinião, o que poderia jogar contra os democratas.
Outro dos nomes mais falados para assumir a candidatura democrata é o do atual governador da Califórnia, Gavin Newsom, que há muito tempo tem sido apontado como uma das promessas de futuro para o Partido Democrata. Newsom não quis candidatar-se nas primárias democratas, apoiando Joe Biden, e na quinta-feira esteve presente em Atlanta. Questionado pelos jornalistas, Newsom também desfez as dúvidas: “Nunca vou virar as costas ao Presidente Biden.”
Nomes como o de Gretchen Whitmer (governadora do Michigan), Sherrod Brown (senador pelo Ohio) ou JB Pritzker (governador do Illinois) também têm sido apontados como possíveis substitutos de Biden nesta candidatura. De qualquer modo, seria inédita uma desistência numa fase tão avançada da campanha — e deixaria ao Partido Democrata muito pouco tempo para preparar um novo candidato para as eleições, que está agendadas para novembro deste ano.
Fuga de eleitores — e de donativos
Mas, afinal, que impacto teve efetivamente o debate na na definição do sentido de voto dos norte-americanos? Sem sondagens detalhadas, que deverão ser conhecidas nos próximos dias, será difícil medir. Mas já é possível chegar a alguns dados. A Agência Reuters, por exemplo, monitorizou um grupo de 13 eleitores que, antes do debate, se apresentavam como “indecisos” e que, agora, tendem maioritariamente para Donald Trump. Dos 13 elementos desse grupo, dez classificaram a prestação de Biden como fraca, confusa, embaraçosa e difícil de ver.
“Joe Biden pareceu muito fraco e confuso logo desde o início. Preocupa-me que os nossos inimigos globais vejam Joe Biden desta forma. Fiquei chocada e consternada”, disse à Reuters Gina Gannon, reformada de 65 anos do estado da Georgia. Em 2016, votou Trump, mas em 2020 votou Biden. Antes do debate, estava na dúvida. Agora, tem a certeza: “Vou decididamente votar Donald Trump desta vez.”
Outra eleitora deste grupo, Meredith Marshall, de 51 anos, uma indecisa que em 2020 votou em Biden, está agora a pensar em votar Trump: “Deus me livre se as minhas escolhas forem como estão agora, com base neste debate. Sem dúvida, votaria num mentiroso e num condenado em vez de uma pessoa que não parece estar bem a nível mental.”
Mas o desempenho de Biden no debate de quinta-feira pode também significar uma fuga de donativos para a campanha eleitoral, como noticia a CNBC. A estação diz mesmo que, nos primeiros 15 minutos depois do debate, já tinha recebido contactos dos vários dos principais angariadores de fundos do Partido Democrata, dando conta de fortes preocupações com a capacidade de continuar a angariar dinheiro para a campanha. Um dos principais doadores da campanha, que planeia estar este sábado num evento de campanha com o próprio Biden, classificou o debate como um “desastre”.
“Isto é terrível”, disse à CNBC um dos responsáveis do partido pela angariação de fundos. “É pior do que pensei que seria possível. Toda a gente com quem falo pensa que Biden devia desistir.” Vários dos principais doadores da campanha terão mesmo falado com o partido na sequência de um debate que foi um “acidente de comboio”.