Este era para ser o verão de Beyoncé, o verão de Taylor Swift, simplesmente porque ambas lançaram discos há pouco tempo — e quando alguma delas edita um álbum meses antes do verão, então o verão pertence-lhes. Mas – e isto é uma hipótese não-científica, baseada apenas em observação lúdica das movimentações no mundo da pop – o que estamos a viver é o verão de Sabrina Carpenter, Charli XCX e Chappell Roan, nomes que até há pouco tempo não eram os mais conhecidos da pop e agora estão por todo o lado.
As tabelas de vendas lá dirão que estamos errados: Taylor encabeça cada uma delas, seja em que país for, de vinis, CDs, streamings, downloads em noite de lua cheia, canções ouvidas entre as dez da noite e uma da manhã na Indonésia; mas nem sempre estes dados apontam a direcção que a pop leva. E a pop está a afastar-se das suas duas rainhas e anda à procura de novas princesas: pela primeira vez discos de Beyoncé e Taylor Swift foram recebidos só assim-assim e mesmo entre as falanges de apoio mais acérrimas se escutaram vozes dissonantes, que fizeram ouvir o seu descontentamento face aos produtos lançados.
Mas as tabelas de vendas não indicam de onde está a vir o barulho, a agitação, a emoção do que é novo e ainda não domado, o que as tabelas de vendas não indicam é de onde está a vir a nova pop – isso apanha-se perdendo horas absurdas na net, a discutir música com o nelinho69 e com a endiabrada_666. E é quando, apesar de já se ter idade para ter juízo, se gasta o tempo assim que nos apercebemos que o mundo avançou e agora as discussões andam em torno de Sabrina Carpenter, Charli XCX e Chappell Roan.
Carpenter foi a primeira a chegar-se à frente, e não digo isto no sentido de já ter uma carreira razoavelmente bem sucedida antes – digo-o porque Espresso foi e é a canção do verão. O que faz uma estrela? As canções, certamente, um tiro certeiro num vídeo, mas também o momento – e Carpenter lançou Espresso no exato momento em que o mundo precisava de pop tal como sempre a entendemos: um grande ritmo, uma grande melodia, zero conhecimento sobre o artista ou a sua vida pessoal.
É que nos últimos anos passámos a vida a discutir o que significariam as letras das canções de Taylor Swift, que pode ou não ter usado as mencionadas letras para alimentar rumores sobre a sua vida pessoal, transformando as suas fãs em membros de um culto dedicado à exegese das ditas letras. Tamanho era o ruído em torno do conteúdo lírico produzido por Swift que se tornou quase impossível apreciar uma canção dela sem ter acesso aos códigos de desencriptação do que realmente Swift estaria a dizer-nos.
Não há mal nenhum disto – mas a pop tende a ser mais despreocupada e leviana. Pode ser política ou sociológica (como em Common People, dos Pulp) mas genericamente é sobre melodias em tons maiores, de preferência cantaroláveis. No caso de Sabrina, o seu single Espresso – primeiro adiantamento de um álbum a sair em breve – era exactamente o que o mundo da pop estava a precisar: uma faixa disco-pop, com as texturas disco a serem muito bem usadas em favor de um ritmo gingão, um refrão imaculado, zero necessidade de conhecer a obra e vida de Sabrina Carpenter para cantarolar a cantiga até à obsessão (e é, de facto, difícil largar este vício).
Carpenter já tinha obra feita e uma mão cheia de boas canções no passado – mas para o grande público era uma desconhecida. Espresso mudou tudo – se não é uma daquelas canções que apelidamos de game-changer é, pelo menos, uma daquelas canções que marcará a vida de todas as pessoas entre os 16 e os 33 – saberão sempre onde estavam e o que estavam a fazer quando ouviram Espresso pela primeira vez.
Desde então, Sabrina tem sido omnipresente nas redes, acumulando todo o tipo de aparições, actuações ao vivo e colaborações. O disco a que Espresso pertence ainda nem sequer saiu – mas o verão já é dela, pela imagem cuidadosamente construída e para o qual o vídeo de Espresso contribui – ela é a rapariga da porta ao lado mas em versão marota, a miúda usa calções curtos e namora com o rapaz mais popular. É um símbolo de desejo, certamente, mas livre do peso que acompanha a obra de Taylor Swift. É diversão sem culpas entre pessoas jovens e bonitas. É pop.
Enquanto o novo disco de Sabrina não chega, Charli XCX tornou o verão seu com brat, o seu último disco, que acaba por ser uma celebração de todas as coisas brat: tudo o que é inconsequente, gratuito, lúdico, uma celebração de tudo o que é feito pelo simples prazer de existir. De brat também se pode dizer que tem estado em todo o lado, muito por força do seu design, que se apresta a ser usado por toda a gente e transformado em meme. A expressão “brat summer” tornou-se universal nas redes: dizer que “O meu brat summer é estar deitada no sofá a afagar o meu gato” tornou-se numa espécie de novo normal do lingo juvenil ou, pelo menos, dos jovens.
brat não é polido como Espresso ou Please, Please, Please, os dois primeiros singles do novo disco de Sabrina Carpenter. É quase pura música de clubbing, electro-pop cheia de ruído de experimentação mas que não se esquece de providenciar o número suficiente de refrões para cair facilmente nas orelhas e bocas dos mais incautos fãs de pop. Desde 360 (a faixa de abertura) a 365 (que fecha o disco e é muito similar a 360), há uma sucessão de canções rápidas, inquietas, com excelentes beats, que no dia certo apontam ao peito do ouvinte distraído e rapidamente o tornam num convertido.
A internet gastou terabytes a discutir qual a melhor canção de brat: será I might say something stupid, com o seu tom melancólico ou Sympathy is a knife, que se desdobra em beats antes de um grande refrão? Ou é Girl, so confusing, que (por entre um grande beat sujo e uma espécie de rapanço extremamente eficaz, antes do óptimo refrão) parece ter encontrado os seus maiores fãs entre as raparigas, talvez porque Charlie repete vezes sem conta “It’s so confusing sometimes / to be a girl”?
O aniversário de Charlie XCX, pejado de estrelas femininas da pop, movimentou gigabytes na internet, que se dedicou a analisar os moves de cada estrela, ou o presente de Rosalía (uma espécie de bouquet repleto de cigarros). Antigamente o sucesso de uma estrela media-se pelos discos vendidos, o airplay na rádio e depois finalmente a faixa era ouvida na discoteca. Mas nessa altura os velhos (ie, toda a gente com mais de 35 anos) ficavam em casa a ter filhos e serem velhos e as pistas estavam entregues exclusivamente aos jovens.
Agora é diferente – em qualquer clube indie de Lisboa há várias cenas a serem celebradas na mesma noite (a cena electro, a cena indie, o reggaeton, enfim, tudo), e a mistura de idades deve deixar os DJs confusos. A ascensão de um artista ainda pode passar pela rádio, mas o streaming nas plataformas digitais e a presença nas redes é determinante para sabermos se estamos perante uma nova estrela.
É o caso de Chappell Roan. O seu primeiro disco, The Rise and Fall of a Midwest Princess, já é de 2023, mas a sua explosão coincide com este verão e o single Good Luck, Babe!, uma espécie de épico que assimila todas as qualidades de Chappell, em particular a tendência para fazer uso da sua voz explosiva e a explosão no refrão, o que faz lembrar os melhores singles de Kate Bush.
Chappell tornou-se um símbolo queer e LGBT+, pelas suas posições em matéria de género – e de certa maneira isso é algo que une estas três princesas do verão de 2024: todas elas representam alguma coisa que faz sentido enquanto marcador identitário para as raparigas. Sabrina será a rapariga comum mas marota e à vontade com a sua marotice, Charlie XCX é a espalha-brasas sem receio de experimentar e Chappell a queer que deixou de ter medo de se afirmar queer. O empoderamento feminino une-as, pese embora não da forma tradicional a que a indústria está habituada.
Este verão devia ter sido mais uma nota de rodapé na história dos êxitos de Beyoncé e Taylor Swift mas acabou por ser o verão em que Sabrina Carpenter, Charlie XCX e Chappell Roan explodiram à socapa, vindas de lugar nenhum.