Ele é o homem que orquestrou o Brexit, o referendo que ditou a provável saída do Reino Unido da União Europeia. Esta é a descrição feita pelo jornal britânico The Guardian, que apontou o eurodeputado Daniel Hannan como o eurocético que se moveu nos bastidores, ao longo de muitos anos, para que o resultado do referendo pudesse ser aquele que foi (foi, por exemplo, um dos fundadores do Vote Leave). Foi ele quem “escreveu o argumento” do Brexit, escreveu o jornal, logo em 2016. Dois anos volvidos, e horas depois de Theresa May e os negociadores europeus anunciarem um acordo para o pós-Brexit, Hannan diz que este é um péssimo acordo, que não respeita nem quem votou pela saída nem quem votou pela permanência.
Em entrevista exclusiva ao Observador, por telefone, a partir de Estrasburgo, o eurodeputado conservador critica o acordo obtido, diz que é “o pior de todos os mundos” e que, nestes termos, preferia que houvesse um novo referendo — apesar de discordar disso, por princípio. O que fica claro, porque é altamente improvável que este acordo chumbe no parlamento e Theresa May seja substituída, é que “o cenário de uma saída sem qualquer acordo tornou-se o cenário mais provável”, na opinião de Daniel Hannan.
Se, como Theresa May disse, “Brexit significa Brexit”… Este acordo “significa Brexit”?
Não. A minha opinião é que estas condições representam algo pior do que o Brexit. E, também, pior do que a pertença à União Europeia. Este acordo representa o pior de todos os mundos.
Porquê?
Porque nos deixa com os direitos e deveres associados à pertença à UE, mas sem qualquer voz ativa, qualquer direito de voto ou poder de veto. Quer se tenha votado pela permanência ou pela saída [da UE], este acordo é pior do que qualquer um dos cenários.
Em concreto, ou em específico, o que é que o perturba mais no acordo obtido, do que se sabe acerca dele?
O facto de o Reino Unido continuar a pertencer à união aduaneira, o sistema de taxas externas e regras de comércio que existe na UE. O Reino Unido sempre foi mais penalizado por estas regras do que os outros estados-membros, porque somos um caso raro que exporta mais para fora da UE do que para os parceiros da UE, por termos uma economia mais globalizada. Com este acordo, a ideia é que ficaríamos integrados nesta união aduaneira sem qualquer poder de decisão sobre que regras ela deve ter. A UE passaria a controlar 100% da nossa política comercial. E em Bruxelas o que se comenta é que ficaria assim para sempre…
Mas… o que se está a negociar é um acordo provisório, de transição, ou não acredita que assim seja?
O acordo está a ser “vendido”, dentro do Reino Unido, como um acordo transitório, mas ninguém na UE acredita nisso. Porque uma vez que o Reino Unido seja colocado nessa posição qual é o incentivo que pode existir para que essa situação seja revista? Qual seria o interesse da UE em voltar à mesa de negociações?
Era claro que Theresa May acabaria, a dada altura, por chegar a um acordo, para apresentar alguma coisa. Mas em que é que este acordo podia ser melhor, na sua opinião?
Havia muitas, muitas opções disponíveis, melhores do que o que se conseguiu, que seriam um compromisso mais justo entre as duas partes. Por exemplo, eu sempre defendi um acordo semelhante ao EFTA, que liga a UE e países como a Suíça e a Noruega. Não vejo qualquer problema em que o Reino Unido aceite alguns elementos do mercado único, como fazem esses países, desde que se recupere a soberania legal. Mas acho que ficar na união aduaneira é tão mau que penso, até, que muita gente que votou pela saída preferiria permanecer na UE do que aceitar este acordo. E acredito que muita gente que votou pela permanência preferia sair do que aceitar este acordo.
Mas a questão da fronteira irlandesa complica muito essa possibilidade. Seria realista chegar a um acordo como o que defende existindo esse problema?
Eu acredito que essa foi uma questão que apenas foi criada e valorizada como um meio para atingir um fim: que era manter o Reino Unido dentro da união alfandegária. Esse sempre foi o objetivo dos negociadores europeus, manter o segundo maior mercado europeu dentro do domínio da UE, para que possa continuar a usar o Reino Unido como “troféu”, como “trunfo”, nas negociações que tem com o resto do mundo.
Na prática, como é que o Daniel defende que a questão da fronteira seja resolvida, à luz das implicações do passado e do contexto histórico?
Começo por dizer que o Reino Unido, ou melhor Theresa May, cometeu um erro ao deixar tornar-se responsável pelo que acontece no outro lado da fronteira. Sempre foi muito claro para o governo britânico, desde o início, que não havia qualquer cenário em que seria erguida qualquer infraestrutura física de fronteira na Irlanda. A questão era se a UE iria querer fazer uma fronteira do lado “deles” da fronteira. Isso não é algo que caiba ao governo britânico decidir. Sempre considerei que era extraordinário que se estivesse a pedir ao Reino Unido que, por si, inventasse soluções para o que aconteceria no lado irlandês da fronteira. Portanto, o que devíamos ter feito era dizer: “Nós não queremos ter qualquer fronteira física, estamos disponíveis para trabalhar convosco e debater quaisquer propostas razoáveis que possam ajudar-vos a fazer o mesmo [não erguer uma fronteira], sugerimos um acordo comercial profundo, incluindo o reconhecimento mútuo de padrões de qualidade, e quaisquer questões que sobrem sobre taxas podemos resolver longe da fronteira” como já fazemos tanta coisa com taxas de imposto diferentes, por exemplo.
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Considera o acordo uma vitória para a UE e uma derrota para May, ou para o Reino Unido?
Eu acho que nunca se devia ter tratado esta negociação como um jogo de soma nula, em que para uns ganharem os outros têm de perder. Devia ter sido possível chegar a um acordo que permitisse criar uma relação de maior independência, preservando a cooperação e o comércio entre os nossos países. Teremos sempre um interesse na prosperidade dos nossos vizinhos. Queremos ter vizinhos ricos e que eles sejam bons clientes e aliados.
Mas espera que este acordo seja aprovado pelo conselho de ministros e, depois, pelo parlamento?
No conselho de ministros sim, no parlamento não. Pode haver uma ou duas demissões entre os ministros mas acredito que o conselho de ministros, como um todo, nesta fase, vai aceitar porque, de um modo geral, é isso que os conselhos de ministros fazem neste tipo de situações. Mas é muito difícil imaginar que seja possível fazer passar este acordo na Câmara dos Comuns.
E o que pode acontecer então, se for chumbado?
O meu palpite é que deverá haver deputados suficientes tanto no partido conservador como no DUP para bloquear o acordo. Não vejo como é que a atual primeira-ministra poderá continuar no cargo, se for derrotada.
Theresa May já não é a pessoa certa para o trabalho em mãos?
Ela está tão associada a este plano que é impossível ver como é que ela pode sobreviver, enquanto líder, caso este seja rejeitado no parlamento.
E, aí, o que pode acontecer? Novas eleições?
Não, penso apenas que será substituída e haverá um novo primeiro-ministro. Não existe uma maioria no parlamento para que o partido trabalhista possa formar governo, não me parece que possa haver a maioria de dois terços que é necessária para uma dissolução parlamentar, portanto a minha opinião é que haverá um novo primeiro-ministro conservador. E, nessa altura, veremos que será possível produzir um acordo totalmente diferente deste ou se se vai optar por obter um acordo mínimo que apenas faça com que as coisas continuem a funcionar, processualmente, nas fronteiras, até que se consiga obter uma solução de longo prazo que seja viável.
O facto de se ter chegado na terça-feira ao acordo a que se chegou aumenta ou diminui a probabilidade de não haver um acordo, de todo?
Parece-me que este acordo vem aumentar as hipóteses de que não haja acordo. Na minha opinião, esse passou a ser o cenário mais provável, que não seja obtido qualquer acordo para a saída. A grande questão é o que é que acontece depois: será que vamos concordar que devemos prolongar os nossos acordos atuais, para que se mantenham as coisas práticas como alfândegas e cooperação entre as polícias, por exemplo, à espera de um acordo? Parece-me que isso seria a opção ideal para ambas as partes, porque ninguém quer ter uma crise desnecessária e faz sentido manter as coisas no lugar, como as práticas alfandegárias ou as pessoas poderem viajar sem precisarem de vistos. Mas ouvimos, muitas vezes, pessoas em Bruxelas, incluindo Jean-Claude Juncker, a dizer “não, não, se não houver acordo, tudo termina”. O facto de se dizerem coisas dessas é muito revelador — porque a UE nunca aplicou esse tipo de medidas drásticas contra o Irão ou contra a Rússia. Estamos mesmo a dizer que exercer um direito salvaguardado nos Tratados (de sair da UE) é um ato mais hostil do que financiar terrorismo ou invadir a Ucrânia?
Um “não acordo” foi recentemente descrito, incluindo pelo FMI, como o pior cenário possível para a economia britânica. Qual é a sua leitura sobre a forma como a economia tem resistido à incerteza sobre o Brexit?
Não é uma questão de leitura. Basta olhar para os dados e ver como a taxa de desemprego, as exportações, a confiança do consumidores não estão a sofrer qualquer impacto negativo. O melhor que podemos fazer é comparar aquilo que se previa que iria acontecer e aquilo que está, comprovada e estatisticamente, a acontecer na economia. Quem está agora a falar sobre as desgraças que aí virão, vale a pena olhar para o que diziam que iria acontecer caso os britânicos votassem pela saída da UE. O Tesouro britânico lançou, antes do referendo, uma projeção oficial em que dizia que, se o “Sair” vencesse, dois anos depois — ou seja, agora — no melhor cenário possível o desemprego iria aumentar em 500 mil pessoas. No pior cenário, mais 830 mil pessoas iriam ficar desempregadas. O que é que aconteceu, na realidade, dois anos volvidos? O inverso: o número de pessoas desempregadas caiu em 500 mil e há mais gente a trabalhar no Reino Unido do que alguma vez no passado. Foi dito às pessoas que se votassem pela saída iria haver um colapso imediato da bolsa, as pensões de reforma iam por água abaixo — ora, a bolsa continua a quebrar máximos históricos.
Mas o Reino Unido será a economia com menor crescimento da UE no próximo ano, segundo as previsões da Comissão Europeia…
São estimativas, que até agora nunca se revelaram certeiras, não são dados reais. A economia cresceu 1,8% no ano passado, deve crescer 1,9% este ano. O que está a falar é de previsões e é extraordinário que sempre que se quer pintar a economia britânica como estando em sofrimento tenhamos de recorrer a estimativas, e não a dados concretos.
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Nas últimas semanas, a ideia do segundo referendo voltou a ser defendida por figuras como Gordon Brown, por exemplo. Acredita que pode acontecer?
É uma possibilidade. Para ser sincero, este novo acordo é tão mau que prefiro arriscar um segundo referendo do que aceitar este acordo. No parlamento britânico vive-se uma situação curiosa: vai ser dito aos eurocéticos que têm de aceitar este acordo, caso contrário haverá um segundo referendo ou o parlamento vai revogar o artigo 50º, desistir da saída da UE, de alguma forma. E aos defensores da permanência vai ser dito que têm de aceitar este acordo, caso contrário saímos da UE sem qualquer acordo.
Não é assim?
Estas são duas coisas que não podem ser verdadeiras em simultâneo. Mas, na minha opinião, nem uma nem a outra serão verdade. Tanto o segundo referendo como sair sem acordo, ficando apenas com os acordos da Organização Mundial do Comércio, são cenários menos negativos do que este acordo. Mas, sim, acredito que o segundo referendo é possível e tecnicamente viável — claro que ninguém sabe, porque estamos a navegar em águas nunca dantes navegadas e se alguém lhe disser que sabe o que vai acontecer, não acredite em mais nada do que essa pessoa tiver para dizer.
Escreveu, porém, recentemente, que um segundo referendo não seria boa ideia porque muitos do que votaram pela saída poderiam boicotar a votação, porque o seu voto não foi respeitado na primeira vez. Ainda pensa assim? Isso poderia levar a uma vitória da permanência?
Sim, escrevi isso. Note que no primeiro referendo — ou, corrijo, no referendo — toda a gente sublinhou de forma muito clara qual era o objetivo e o que é que estava em causa. David Cameron explicou o que se ia votar, foram enviadas cartas para todas as casas a explicar o que estava em causa, a avisar que nunca haveria outro voto, para se pensar com calma. E quem defendeu a permanência também participou nesse esforço de consciencialização, como Nick Clegg ou John Major. Ora, se essas mesmas pessoas agora vêm dizer que não gostaram do resultado do primeiro referendo, mas que se tivermos mais um prometemos que este já será respeitado, até pode ocorrer-lhes fazer vários referendos e ganha o lado que vencer à melhor de 5, ou à melhor de 7.
Escreveu, também, que o Reino Unido tem uma das economias mais fortes e um dos exércitos mais robustos do mundo — e que, portanto, tem de “agir como tal”. O que quer dizer com isso?
Bem, a ideia de que temos de aceitar um estatuto de relacionamento com a UE que seja pior do que tem a Albânia ou a Ucrânia não me parece que reflita o equilíbrio relativo de forças nesta negociação. O Reino Unido, tal como Portugal, foi sempre um país global, um país atlântico, que olhou para além do horizonte. Sempre que visitei Portugal fiquei fascinado com o facto de todos os edifícios mais importantes estarem todos virados para o mar. Por isso é que sempre foi desconfortável para nós sermos levados para um sistema continental. O que sempre quisemos foi ter a relação mais amigável possível com os nossos aliados europeus, continuando nós a ser um país independente. Foi isso que Winston Churchill pediu, no final da década de 40. Eu sempre esperei que fosse possível negociar esse estatuto a partir de dentro, tinha esperança que Cameron conseguisse combater esta tendência para a crescente centralização de poderes, mas não foi possível. Portanto tem de ser possível a partir de uma posição externa. Mas acredito que as propostas de Theresa May não o obtêm — tenho esperança de que um outro líder o consiga fazer.