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MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

Este homem está disposto a mediar o conflito na Catalunha (apesar da angústia que isso lhe causaria)

O nome de Daniel Innerarity chegou a ser acordado para mediar o conflito catalão, mas tudo caiu por terra. Obcecado por criar diálogo na confusão, hoje diz que aceitaria o convite — apesar de tudo.

“Felizmente estou em Portugal, a descansar um pouco.” É assim que Daniel Innerarity responde quando lhe perguntamos, quase a seguir aos cumprimentos iniciais, se tem seguido a torrente de notícias que surge da Catalunha. O filósofo basco está em Portugal para lançar a edição portuguesa do seu livro “Política para perplexos” (Porto Editora, 2019) e sobra-lhe pouco tempo para acompanhar a atualidade em Espanha. Quando diz que não ouviu o discurso de Quim Torra no parlamento catalão esta quinta-feira de manhã, fá-lo com um inegável ar de alívio — como quem se livra, mesmo que por escassos momentos, de algo que lhe faz um nó tremendo na cabeça.

Daniel Innerarity, filósofo político basco, é um dos pensadores mais requisitados para pensar a Catalunha — algo que tem feito de forma profícua nos últimos anos. O seu foco é, acima de tudo, a busca por uma solução — tanto que o seu nome chegou a ser avançado como mediador de possíveis negociações entre o Governo de Espanha e a Generalitat.

“Fiquei a saber que o meu nome foi o escolhido pelo Podemos e aceite por Pedro Sánchez no preciso dia em que se abortou a operação [de mediação]. Portanto, a minha nomeação durou zero minutos”, diz, procurando desvalorizar. Mas também admite: por mais angústia e trabalho que lhe venha a causar, se o desafio lhe for colocado, não diz que não. É um abismo que o atrai — e uma forma de voltar a criar diálogo num mundo cuja vertigem nos deixou “irritados uns com os outros, fanatizados, cínicos e amedrontados”.

(MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR)

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No capítulo do seu novo livro em que fala com mais detalhe da Catalunha, escreve que se alguém olha para um problema e vê apenas nele um “campo binário”, entre bons e maus, não está a fazer um bom diagnóstico. Na sua opinião, o que é que falha no diagnóstico que cada um destes lados faz?
Creio que na Catalunha ainda não entenderam que o outro é irredutível. Na Catalunha, cada lado acha que vai conseguir a desistência do outro. E isso, está demonstrado, não vai acontecer. O Estado resiste e o independentismo resiste.

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Ninguém está disposto a abrir mão de convicções ou posições.
Não. Não vai haver diminuição das convicções, nenhuma renúncia, nenhuma entrega das armas. Cada um quer passar pelo mais forte — o que, neste caso, aparentemente é o Estado.

Precisamente, é muito difícil falar de forças iguais.
Claro. Mas também há que olhar para quem tem mais capacidade de resistência. O Estado consegue aguentar esta situação de bloqueio com menos incómodo do que o independentismo. Mas creio que não é na resistência e no bloqueio que devemos colocar o foco, mas sim na solução do problema.

Mas ninguém neste momento fala de soluções. Se olharmos para o que disse Quim Torra no parlamento regional catalão…
… o que disse, mesmo?

"Na Catalunha ainda não entenderam que o outro é irredutível. Na Catalunha, cada lado acha que vai conseguir a desistência do outro. E isso, está demonstrado, não vai acontecer. O Estado resiste e o independentismo resiste."

Afirmou que ia haver um segundo referendo em 2020, ou seja, mantém-se fiel ao slogan “ho tornarem a fer” [voltaremos a fazê-lo]…
Ho tornarem a fer…

Tudo isto acontece ao mesmo tempo em que os principais partidos em Madrid firmam as suas posições.
Nós vivemos um período muito obscuro no qual não dá para vislumbrar qualquer esperança, porque se mistura um período eleitoral onde todos estão a competir para ver quem é o mais duro, com uma ordem de captura internacional [contra Carles Puigdemont] na qual haverá muito taticismo jurídico e negociações a curto prazo. Tudo isto levará o seu tempo. Pode ser que nesse tempo haja um horizonte ou proposta de solução. O que eu sempre recomendei é que é preciso trabalhar noutro plano, mais discreto, de conversação e reflexão. Porque há muita gente aqui que tem de refletir muito e olhar para os seus próprios atos e palavras.

Em fevereiro foi notícia que o seu nome foi proposto como mediador para o conflito catalão, mas depois você mesmo disse que não foi bem assim. Afinal como foi, então? E já lhe fizeram outro convite para mediar o conflito, entretanto?
Eu fiquei a saber que o meu nome foi o escolhido pelo Podemos e aceite por Pedro Sánchez no preciso dia em que se abortou a operação [de mediação]. Portanto, a minha nomeação durou zero minutos. E a minha angústia também, porque me teriam posto num horizonte de muitas preocupações na cabeça e tempo dedicado. Mas se me tivessem feito a proposta, se fosse algo bem desenhado, eu não teria outra opção que não aceitar. Mas livrei-me dessa carga.

"Fiquei a saber que o meu nome foi o escolhido pelo Podemos e aceite por Pedro Sánchez no preciso dia em que se abortou a operação [de mediação]. Portanto, a minha nomeação durou zero minutos. E a minha angústia também, porque me teriam posto num horizonte de muitas preocupações na cabeça e tempo dedicado. Mas se me tivessem feito a proposta, se fosse algo bem desenhado, eu não teria outra opção que não aceitar."

Mas aceitaria a missão, ainda assim?
Essa possibilidade está queimada em grande parte. Se me colocassem perante uma responsabilidade deste tipo com uma expectativa de que dali pudesse sair algo de bom eu teria de aceitar.

Neste momento, isso é quase assumir o papel de Deus.
Não assumo o papel de Deus, claro (risos). Mas não conseguiria dizer que não se mo tivessem proposto.

Vamos imaginar que lhe propõem mesmo. Com quem falaria? E como? Em que termos?
Nem sequer pensei nisso. Durante uns tempos trabalhei com líderes políticos, filósofos e colegas da universidade que tinham posições diferentes, organizei um seminário em Florença e ali desenhámos desde um ponto de vista conceptual o que podia ser feito e o que é que era preciso pensar: uma reforma constitucional, uma reformulação de conceitos de soberania, representação e participação. Fizemos esse desenho teórico. Mas a questão é que esse não é o problema fundamental — o problema fundamental é um problema de liderança. É um problema prático. As lideranças que existem neste momento foram formadas em momentos de confrontação e o tipo de liderança que é necessário para este tipo de situações é completamente diferente. É necessária uma liderança de compromisso, de libertação, uma liderança capaz de dizer às pessoas que as expectativas iniciais não serão cumpridas. No horizonte atual, não se vislumbra nada disto.

Neste momento parece que são as emoções das ruas que influenciam as ações dos políticos. Teria de ser ao contrário para talvez moderar o debate sobre este tema e chegar a um resultado que agrade minimamente os dois lados?
E sobretudo um resultado positivo para ambas as partes, porque o que temos agora não é nada. Creio que o que se passa na Catalunha também se verifica noutros sítios do mundo, como no Reino Unido com o Brexit ou em Espanha com o movimento do 15-M [indignados]. Vemos hoje que nas sociedades democráticas há mobilizações enormes com uma grande carga emocional. No caso do Brexit é “vamos já embora da Europa”; com o 15-M era “vamos mudar o sistema produtivo para um sistema de justiça e com maior representação; e na Catalunha é “o auto-governo que temos não nos satisfaz”. Esta expressão popular, esta irritação coletiva, tem de ter o seu correspondente construtivo e de transformação. No Brexit temos visto o difícil que tem sido formar uma maioria positiva no parlamento — e ainda não acabou! O soberano negativo já fez o seu trabalho, que foi dizer “vamos sair da Europa”. Mas agora tem de haver um soberano positivo que diga como é que isso se faz e com que maioria parlamentar. O 15-M está de acordo que não quer despejos, que o modelo produtivo não os convence, que a corrupção é intolerável. Tudo bem. Mas agora vamos fazer uma economia de habitação, uma economia verde, uma política de participação cidadã…

(MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR)

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

O desafio, e o mais difícil, é quando chega a altura de construir.
Exato. E essa construção não foi feita. E o mesmo se pode dizer em relação à Catalunha. Há vários anos que há uma manifestação que se repete com um monte de centenas de milhares de catalães que dizem que as coisas não podem continuar assim. Mas não há uma classe política, tanto em Madrid como em Barcelona, capaz de fazer um diagnóstico partilhado do que isso significa e propor uma nova situação. Amigos meus da Catalunha, que têm altas responsabilidades políticas, disseram-me que aquilo era uma irritação ocasional e que, na Catalunha, pensavam que o Estado iria negociar se fosse pressionado. E a realidade desmentiu totalmente as duas análises. Creio que há uma propriedade geral da democracia contemporânea: a sociedade é capaz de protestar, expressar-se e de rejeitar aquilo que não quer. Mas o nosso sistema político é incapaz de transformar esses restos em algo construtivo. E daí só sobra uma grande agitação no espaço público que culmina em nada. É isto que me preocupa.

Essa postura de recusa e ausência de construção está também muito presente no debate parlamentar não só em Espanha e na Catalunha, no Reino Unido verifica-se o mesmo também com o Brexit e nos EUA também. No final de contas, o que parece que existe é que cada partido tem a sua posição inicial e a partir daí concentra-se muito mais em recusar tudo o que o outro diz do que necessariamente em promover a sua própria mensagem. Concorda?
Sim, sim, exatamente. Mas há outra explicação paralela à que apresenta. O processo político tem pelo menos três partes: a batalha eleitoral, a configuração de governo e o ato de governar. Na batalha eleitoral trata-se de marcar as diferenças e de cada um se antagonizar perante o adversário, até denegri-lo. Se isso fosse só um momento restrito a um período de tempo não haveria problema. Mas o que se verifica é que o momento eleitoral invadiu toda a lógica do sistema político. Estamos em campanha permanente. Não é só em Espanha, onde vamos ter as quartas eleições em quatro anos. É de maneira geral. Em muitos dos países para onde viajo verifico que os assessores de campanha dos políticos depois passam a ser assessores de políticas públicas no governo, quando são duas coisas completamente diferentes. Os que governam, governam como se estivessem em campanha. E verifico também que vocês, jornalistas, informam mais sobre as partes do processo político que tem que ver com antagonismo e competição. E, se mo permite, com todo o respeito, emitem uma imagem falsificada da realidade política, que é muito mais consensual do que aquilo que parece. Mas os aspetos que merecem destaque nos meios de comunicação, porque são os mais sexy da política, é o combate e o conflito. E a maior parte dos nossos concidadãos não sabe que 90% das coisas que se fazem na política têm amplo acordos.

Ainda assim parece claro que há mais conflito na política hoje do que, por exemplo, há 15 anos. A polarização aumenta, surgem partidos nas franjas ideológicas e o conflito parece estar na ordem do dia. No seu livro escreve que isto acontece ao mesmo tempo em que há uma ansiedade que muita gente sente a vários níveis. Como é possível uma sociedade manter a sua serenidade numa situação destas?
A base da questão é que estávamos num mundo no qual as nossas categorias políticas, os nossos conceitos e os nossos sistemas de orientação eram relativamente válidos e, no decorrer de poucos anos, apareceu a globalização, as realidades interdependentes, tecnologias cujos efeitos políticos e sociais não conhecíamos, como a transformação do mundo do trabalho ou da identidade de homens e mulheres, da família, da religião. E também as alterações climáticas, além de um monte de outras coisas. Em apenas uma geração passámos por mudanças tão brutais que nem conseguimos identificá-las e diagnosticá-las corretamente. E isso leva a um problema de desorientação, que muitas vezes leva à irritação. Quando comecei a dar aulas na universidade, as pessoas que eu tinha à minha frente era um conjunto de pessoas pouco informadas. Agora, tenho à minha frente um conjunto de gente desorientada. É completamente diferente. A estratégia de informar as pessoas com pouco acesso ao conhecimento não tem nada a ver com ter de reduzir a complexidade do mundo a um ponto em que ele seja inteligível. Perante esta enorme mudança, parece-me bastante lógico que estejamos irritados uns com os outros, fanatizados, cínicos e amedrontados. A democracia é um sistema que só funciona se as pessoas observarem o processo político de forma crítica e com participação, mas o que temos é uma enorme quantidade de pessoas que não entende o que se está a passar. Aí incluem-se os próprios políticos, que foram ultrapassados por um mundo que não conhecem.

"Quando comecei a dar aulas na universidade, as pessoas que eu tinha à minha frente era um conjunto de pessoas pouco informadas. Agora, tenho à minha frente um conjunto de gente desorientada. É completamente diferente. A estratégia de informar as pessoas com pouco acesso ao conhecimento não tem nada a ver com ter de reduzir a complexidade do mundo a um ponto em que ele seja inteligível. Perante esta enorme mudança, parece-me bastante lógico que estejamos irritados uns com os outros, fanatizados, cínicos e amedrontados."

Tem saudades de quando se falava de economia no discurso político? Hoje em dia, no meio desta polarização que identifica, o debate económico parece arrumado para um segundo plano, mesmo com os prenúncios de uma nova crise global. Fala-se, na maior parte dos casos, de identidade. Que consequências pode ter uma sociedade que não fala de economia?
O conflito social clássico, que serviu para a articulação do eixo esquerda-direita, tem sido um conflito de redistribuição fundamentalmente em termos económicos. A isto juntou-se agora um tipo de conflitos que tem a ver com a identidade. Homens e mulheres, minorias sexuais, identificações nacionais, etc. Não creio que sejam dois conflitos completamente distintos. Creio que muitas vezes estes conflitos têm umas certas linhas de confluência. Não é por acaso que as mulheres e as minorias raciais são mais pobres dos que os homens brancos. Os eixos de discriminação identitária coincidem pelo menos parcialmente com o eixo de discriminação económica. E os partidos políticos que estão pensados para questionar um tipo de conflito único têm de alargar perspetivas. Há que ampliar a agenda política e ver como um tipo de discriminação reverbera ou interage com outro.

Uma pessoa que juntou os dois temas foi Donald Trump. A narrativa da campanha de 2016, e que ainda hoje se mantém, aponta para a defesa do arquétipo do trabalhador de colarinho azul da cintura industrial dos EUA que foi esquecido pelos centros de poder. Pegou na economia ao falar das fábricas que desapareciam de estados como a Pensilvânia ou o Michigan ao mesmo tempo que descrevia um mundo em que minorias ocupavam os lugares daquele arquétipo. Mas a verdade é que as fábricas não têm voltado aos EUA, apesar de alguns casos pontuais. Concorda com a ideia de que o discurso económico foi ali utilizado como uma espécie de cortina de fumo para temas identitários?
Eu escrevi este livro enquanto vivia nos EUA, foi lá que o acabei. Dediquei um capítulo a Trump, que é um tema fascinante. É uma pessoa que vem da elite nova-iorquina, do meio dos negócios, ainda para mais do negócio do imobiliário, que é um negócio criativo em termos de inovação. E, depois, esta pessoa dirige-se a um conjunto de pessoas desfavorecidas pela transformação do capitalismo norte-americano. Mas este não é um tipo de política que recupere o tecido industrial ou favoreça as classes médias, pelo menos não o faz mais do que fez Barack Obama. Ou seja, houve um grande engano.

Não existe esse engano também na Catalunha? Afinal, existe uma coligação de partidos no governo regional que são muito diferentes em assuntos que não a independência. O Juntos Pela Catalunha vem de um partido de centro-direita, a Convergência e União, ao passo que a Esquerda Republicana da Catalunha tem até origens anarquistas. Mas estas diferenças parece que não fazem mossa entre os dois… Será porque não as discutem de todo?
Há um eixo de confronto que é mais poderoso do que o eixo esquerda-direita, mas isso não significa que não haja tensões entre eles. Mas o mesmo acontece em Espanha, se olharmos para o lado oposto. Em Espanha há um Partido Socialista e uma extrema-direita a partilhar diagnósticos em bons termos.

Em que temas?
No tema da Catalunha.

Coloca o PSOE e o Vox no mesmo nível em relação à Catalunha, é isso?
Não, não. Claramente não. Mas digamos que também não colocaria no mesmo plano a CUP e o PDeCat, que mantém uma posição puramente conjuntural. Daqui a uma semana veremos onde está essa unidade de ação. Ou seja, pode ser desgastada porque, no fundo, nem no terreno identitário têm uma unidade de ação e pensamento. Podem estar de acordo quanto ao confronto com o Estado, mas, se isto chega a um momento de resolução — que espero ver em vida! — configurar-se-á outra lógica política. Em vez da lógica de uns de um lado e os do outro lado, mas antes o entendimento entre os moderados de cada lado e o desacordo entre os radicais de cada lado. O que se passa é que, hoje em dia, em cenário de grande confrontação, não só na Catalunha mas também noutras partes do mundo, verifica-se um fenómeno que são os Tea Parties, como nos EUA. A partir de cada partido configura-se um agente político que se encarrega de guardar as essências e que controla não o adversário mas o próprio partido para que ele não ceda em nenhum dos princípios. Nestes momentos, a maior parte dos agentes políticos de todo o mundo geraram ao seu redor uma espécie de movimento social ou grupo radicalizado que está a impedir os acordos, as transações e os compromissos.

O que sobra da democracia depois disso, se um dos princípios da vida democrática é precisamente essa busca pelo consenso através da negociação? Ou seja, o que é feito da ação de procurar aquele que nos é diferente para chegarmos a um denominador comum mínimo?
Desaparece a lógica política, desaparece a política. Não é a democracia que desaparece, é antes a política. É importante dizer que a democracia funciona bem, o que funciona mal é a política. A democracia no sentido de expressão das pessoas, mobilização popular em protestos, mantém-se. O que está a falhar em muitos lugares no mundo é a tradução disso em políticas que promovam mudanças efetivas na sociedade. E o que sobra são gestos improdutivos, sem resultados. Os britânicos não conseguem sair da União Europeia, a Catalunha nem sai nem fica, o tecido do modelo produtivo continua sem mudar. É o momento construtivo da política, que pela sua natureza implica compromissos e transações.

E compreensão, também.
Claro. Porque só com acordos é que se modifica a realidade. A unilateralidade e a incapacidade para falar com o adversário é o grande aliado do statu quo. Desta forma, não se muda nada. E quando queremos chegar a um caminho de fundo na sociedade, temos de chegar a uma maioria ampla. Caso contrário, o que temos é uma agitação à superfície — o que é muito democrático mas muito pouco político. Porque a política é competição e colaboração, acordo e desacordo. Há momentos em que é mais uma coisa ou outra. O momento competitivo e eleitoral, de auto-afirmação, está monstruosamente sobredimensionado em relação ao momento cooperativo e de deliberação com o outro.

"A democracia no sentido de expressão das pessoas, mobilização popular em protestos, mantém-se. O que está a falhar em muitos lugares no mundo é a tradução disso em políticas que promovam mudanças efetivas na sociedade."

Além da compreensão, há o perdão, que é um ponto muito falado agora no tema catalão. Qual é a sua opinião quanto à possibilidade de haver um indulto dos independentistas catalães que foram condenados esta semana?
Por agora, creio que ainda há muitas possibilidades de recurso desta sentença. Antes disso, temos as eleições, nas quais ninguém vai falar de indultos. Mas há questões da sentença que são muito injustas.

O que acha que falhou neste julgamento?
A primeira falha é que não cabe aos juízes resolver um problema que tem fundamentalmente natureza política. Tem uma dimensão legal, mas no fundo é um desacordo político.

Mas crê que a Justiça não deveria ter-se mexido perante o que foi a quebra de leis? Que faria então a Justiça além de avançar?
A Justiça não podia ter feito muito mais do que aquilo que fez. A grande responsabilidade é de quem pôs a bola no campo da justiça quando não tinha nada que fazê-lo. Isto podia não ter ido para aí.

Os dois lados foram, à sua maneira, muito longe.
Foram muito longe e nenhum dos dois atores interrompeu esse processo. Quando se trata de um problema político como não o sendo, utilizando outros instrumentos para resolvê-lo, isso só pode correr mal. É um problema de natureza política. Se se mete o problema nas mãos dos juízes, eles só têm uma opção: metê-los na prisão ou declará-los inocentes.

"O que ficou provado é que a estratégia de pequenos passos em direção a um acordo, que é a estratégia que teve o governo basco durante estes anos, é muito mais útil do que a estratégia do confronto."

Quando as coisas chegam a esse ponto, a política já não vai a tempo de pegar no tema.
Claro. E agora, esta semana, já se olha para este tema como um problema de ordem pública. Mas em momento algum este tema foi gerido como se fosse político. Foi jurídico ou de ordem pública. Mas não é nem uma coisa nem outra, é um problema político.

Fala-se muito de oportunidades perdidas neste tema e de momentos em que, de um lado e de outro, podia ter havido a decisão de parar. Em vez disso, prosseguiu-se numa fuga para a frente. Olhando para trás, que oportunidades é que se perderam?
Já houve gente do Partido Popular que me disse que levar o Estatuto [de Autonomia da Catalunha de 2006] para revisão do Tribunal Constitucional foi um erro. E também que foi um erro ter-se desprezado olimpicamente algumas ofertas que Artur Mas fez a Mariano Rajoy, de um possível pacto fiscal ou um conjunto de medidas de revisão do autogoverno. E esta pessoa do PP dizia-me que se pudéssemos fazer marcha-atrás na História… Além disso, houve uma clara ingenuidade por parte do independentismo catalão por ter pensado que o Estado aceitaria negociar sob pressão e que, por isso, quanto mais pressão se fizesse mais perto se estaria de um horizonte de negociações. Muitos comentadores disseram, e eu concordo com eles, que aquilo que livrou os presos políticos da condenação de rebelião foi o testemunho do presidente basco, Iñigo Urkullu, que contou que Puigdemont lhe disse que toda a sua estratégia não tinha como meta a independência, mas antes forçar o Estado a negociar. No final de contas, o que ficou provado é que a estratégia de pequenos passos em direção a um acordo, que é a estratégia que teve o governo basco durante estes anos, é muito mais útil do que a estratégia do confronto — incluindo para o horizonte penal daqueles que estão na prisão agora. Tudo que for no sentido de radicalizar o movimento e forçar a maquinaria só piora a situação penal destas pessoas. E a política, claro.

A perspetiva basca em relação à Catalunha, que é a sua, é interessante, porque é uma perspetiva que sabe bem o que é as coisas irem demasiado longe. E, depois disso, encontrar um ponto de equilíbrio, como existe hoje. Ainda crê que isso é possível na Catalunha? E quem é que pode liderar esse processo? Quem são os tais moderados de cada lado de que há pouco falava?
Terá de haver uma mudança de lideranças. O tipo de liderança que surgiu em momentos de confronto não serve para momentos de construção. Seja como for, daquilo que conheço da realidade política catalã e das relações que tenho com pessoas dos seus vários partidos, vejo que há gente em cada um dos partidos que têm análises bastante parecidas. Este momento duro e sinistro terá de passar do momento pós-sentença, mas já há gente a trabalhar e a falar em diversos fóruns.

É preciso sentar Santi Vila [independentista que saiu do governo de Carles Puigdemont em desacordo com a aceleração do processo independentista] com Xavier Domènech [ex-deputado da filial catalã do Podemos, que é um catalanista não-independentista], por exemplo?
Aí estão dois exemplos muito extraordinários. Ou Carles Campuzano [do PDeCAT, de Carles Puigdemont] ou Laia Bonet [do Partido Socialista da Catalunha]… Há líderes que neste momento estão num segundo plano mas que estão perfeitamente equipados para assumir responsabilidades numa época de construção mas que agora não podem mostrar as suas cabeças, porque lhas cortavam.

E, voltando um pouco atrás na entrevista, se lhe ligarem a pedir ajuda, vai ajudar a mediar as negociações entre estas pessoas?
O meu desejo é que não me liguem. Consigo pensar em nomes de muitas pessoas que o fariam muito melhor do que eu.

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