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Estivemos lá, mas esse era um mundo que está a desaparecer à frente dos nossos olhos

Maio de 68 é muito mais do que memória romântica e inconsequente – ele representa a ascensão do “Eu” e antecipa a imposição da ditadura de um subjectivismo radical. Ensaio de Maria de Fátima Bonifácio

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Primeiro, a minha memória pessoal. Nos anos finais da ditosa década de 1960, vivia eu em Genève, onde, sem grande zelo, frequentava a Universidade. Genève, situada na Suíça francesa e capital do cantão do mesmo nome, estabelecia-se na margem do Lago Léman, e dela se avistava, ao longe, na margem oposta, o majestático Mont Blanc, com os seus picos permanentemente cobertos de neve, indiferentes às estações do ano. Era uma cidade relativamente pequena, calculava eu na altura que não teria mais de 200 a 250.000 habitantes. Em Genève, tudo ficava perto: a “Vieille Ville” – a zona mais chique e exclusiva –, a Universidade, a Ópera, os teatros, os cinemas, as livrarias, as principais brasseries e cafés, os bares e as boîtes, a Rue du Commerce, ladeada por longas, ininterruptas fiadas de  lojas, boutiques e já alguns department stores.

Seria, e era, uma cidade relativamente pequena, mas as múltiplas organizações internacionais que ali tinham as respectivas sedes ou delegações; os grandes bancos instalados em edifícios imponentes, mas respeitadores da escala urbana geral; a enorme profusão de estrangeiros – pouco menos de metade da população nativa –, conferiam-lhe o ar citadino e o cosmopolitismo que nos faziam sentir a viver numa importante urbe internacional. Na Universidade, então, os estrangeiros, vindos dos quatro cantos do mundo, estavam em clara maioria – uns 70% de todos os estudantes.

Este número, só por si, permite adivinhar a crassa irresponsabilidade que por lá se respirava no meio académico. Longe das famílias, e portanto ao abrigo de todo o controlo e vigilância; geralmente abonados pela generosidade da bolsa paterna, a estudantada – ou pelo menos grande parte dela – passeava-se de brasserie em  brasserie, de copo em copo, e, em chegando a Primavera, com os dias quentes e soalheiros, estirava-se preguiçosamente nas esplanadas, onde, frente a uma sangria ou a uma caneca de vinho branco gelado, se indignava contra o materialismo rasteiro da abominável sociedade capitalista e burguesa. Aliviada deste modo a consciência, discutia-se muito a sério a Revolução.

Acima de tudo e no final de tudo, todos estávamos de acordo: as atrocidades da sociedade capitalista e burguesa exigiam muito mais do que uma valente barrela; exigiam a violência feroz de uma Revolução

Cada um tinha a sua revolução preferida: a leninista, a trotskista, a maoista, a guevarista ou castrista (e talvez outras de que já não me lembro). Não me recordo de haver sequer “revisionistas” pró-soviéticos, os chamados social-fascistas. Muito naturalmente, à medida que os jarros de sangria e as canecas de vinho branco se multiplicavam, o tom da discussão elevava-se, começavam a falar uns por cima dos outros, aumentava o número de palavrões, e por fim já só era tudo uma algazarra. Mas ninguém se zangava, ou não se zangava a sério, ou a zanga era apenas passageira. Porque, acima de tudo e no final de tudo, todos estávamos de acordo: as atrocidades da sociedade capitalista e burguesa exigiam muito mais do que uma valente barrela; exigiam a violência feroz de uma Revolução.

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Éramos todos de extrema-esquerda e revolucionários por definição. A social-democracia não mais era do que um fascismo disfarçado sob a capa de instituições vácuas e formais; não passava de um embuste, de uma fachada por trás da qual os burgueses capitalistas engendravam e fabricavam o diabólico elixir com que anestesiavam os explorados, humilhados e ofendidos do mundo inteiro.

Manifestação a 29 de maio de 1968, depois de uma greve geral

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A morna rotina de Genève

A Universidade ficava encravada no sopé da colina sobre a qual se erguia a “Vieille Ville”. A poucos passos dali, encontrava-se o mítico Landolt, uma brasserie onde – imagine-se! – Lenine tinha rabiscado alguns dos seus escritos, não se sabia quais, nem ao certo nem mais ou menos. Mas o tampo da mesa onde o Mestre pousara as suas mãos e possivelmente os seus punhos e cotovelos, esse, encontrava-se bem visível, sem que nada lhe fizesse sombra, pendurado numa parede ampla, desafogada, que lhe conferia a evidência devida.

Da primeira vez que entrei no Landolt, fui de imediato encaminhada para a contemplação da sagrada relíquia. Olhei-a, vi-a, com emoção e respeito. (A sério.) Aquele tampo de mesa, ali à mão de semear, equivalia à presença invisível do nosso santo padroeiro. (Só muito mais tarde percebi a semelhança entre esta veneração e o culto religioso.) No Landolt, onde o pessoal comparecia pela hora do almoço, comíamos geralmente uma ou várias tábuas de queijos, acompanhados de belíssimo pão e regados com vinho tinto. Levei alguns dias a perceber que os suíços, e não só estudantes, bebiam vinho tinto a qualquer hora do dia ou da noite, incluindo as senhoras de vison ou astracã que pelas 22h00 por ali passavam vindas da Ópera, que ficava a 250 metros de distância. Às onze da noite, o Landolt fechava, e o bando desandava para o Café du Commerce, próximo da beira-lago, a uns 10 metros de passeio, que se mantinha aberto até à meia-noite. E por lá prosseguíamos a nossa algaraviada, da qual fazia parte o uso constante de gentilezas como – “Va te faire foutre!”, “Merde, alors!”, “Quel connard!”, “que tu es con!”, “Je m’en fous!”, e por aí fora…

Estávamo-nos marimbando para tudo, a começar pela ponderação de consequências. Éramos jovens mimados, babyboomers, não sabíamos nem o preço nem o valor de nada. Da Revolução, era a dimensão mítica e lúdica que nos seduzia e fascinava

Na verdade, toda a gente “s’en foutait” de tudo e mais alguma coisa. O “s’en foutisme” era um ingrediente crucial, indispensável à nossa extraordinária e maravilhosa insouciance. Borrifávamo-nos para tudo, estávamo-nos nas tintas para tudo! Durante dois anos e meio, vivi nesta atmosfera doce e leve, que nos dispensava de medir as consequências dos nossos actos, das nossas palavras, e até dos nossos silêncios. Muito precisamente, estávamo-nos marimbando para tudo, a começar pela ponderação de consequências. Éramos jovens mimados, babyboomers, não sabíamos nem o preço nem o valor de nada. Da Revolução, era a dimensão mítica e lúdica que nos seduzia e fascinava. Aquela atmosfera doce e leve, aquela deliciosa insouciance, já Godard a filmara em 1965 no seu fabuloso Pierrot le Fou. Ana Karina (Marianne) tece, já não sei a que inofensivo pretexto, um comentário perfeitamente razoável. Pierrot (Jean-Paul Belmondo) dispara: “Mais qu’est-ce que c’est con comme raisonnement!” (Mas que idiotia de raciocínio!) Godard filmou e anunciou o Zeitgeist de Maio de 68 três anos antes deste acontecer. E eu encontrei já este mesmo Zeitgeist à minha chegada a Genève, no princípio do Outono de 1966.

Também a chamada “revolução sexual” já estava então em curso e a ritmo aceleradíssimo. “Baiser” entrara na linguagem quotidiana com o mesmo à vontade com que se dizia – “J’ai faim” ou “Je m’en vais”. “Baiser”, calão grosso que significava fazer amor ou copular, era coisa natural, corrente, corriqueira. Tout le monde baisait avec tout le monde. Mudava-se de amante como quem muda de camisa. Quem não tivesse vários ou várias amantes, sucessivos ou sucessivas, ou ao mesmo tempo, ficava de imediato marcado com o ferrete de puritanismo, coisa obsoleta e residual de um passado que já passara.

Em Genève, em 1966, a pílula comprava-se em qualquer farmácia sem necessidade de receita médica nem idade mínima obrigatória, com a mesma facilidade com que se comprava aspirina ou pasta dos dentes. As raparigas não se estavam a emancipar, estavam já emancipadíssimas. Também não faltavam marijuana e oficiantes da iniciação no culto afrodisíaco da erva que afiava os sentidos e autorizava toda a espécie de libertações. Geralmente à noite, em quartos ou saletas ou mansardas mal iluminadas, com música ou sem ela. Pelas três, quatro ou cinco da manhã, o pessoal desandava, cada par ou cada um para seu lado, inspirando libertação no ar fresco ou frio ou gelado da madrugada. Maio de 68 antecipado.

Os estudantes enfrentam a polícia

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Genève em ebulição

As notícias de Paris, começadas a chegar em Março de 1968, electrizaram de imediato o meio estudantil da pequena Genève. É muito cansativo acreditar em algo que nunca mais acontece! Mas, finalmente, a inveterada tradição revolucionária da França ressuscitara e abalaria o mundo. Um mundo que, aliás, já entrara em ebulição no Vietname, no Japão, no Brasil, no México, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Itália. Mas estas ebulições tinham todas uma razão de ser local, específica. Só em França, esse antigo farol das velhas revoluções do século XIX, a explosão de cólera e fúria remexeu toda a sociedade de cima a baixo. O que terá operado tal milagre? Não as referências imaginárias, que aliás não faltavam, mas a imaginação contestatária, como adiante se verá.

Nós, em Genève, à falta de imaginação própria, copiámos a da juventude francesa. (Que me lembre, o operariado não fez por lá nenhuma aparição.) Num ápice ocupámos a Universidade, apossámo-nos das cadeiras e dos púlpitos dos lentes, e transformámos cada sala de aula, cada auditório, em comícios permanentes. Queríamos, exigíamos, a auto-gestão universitária. Demitimos todas as chefias, destruímos todas as hierarquias, e decretámos que a Escola, e portanto o Saber, nos pertenciam. A nossa Escola, o nosso Saber, não eram a Escola nem o Saber da burguesia, do capital, da classe dominante. A nossa Escola seria democrática, popular, sem caciques académicos ou sabichões vendidos ao capitalismo – e sabiamente dirigida pelos estudantes. Os professores ensinariam, a mando nosso, o que nós quiséssemos, e o que nós queríamos era formar intelectuais revolucionários. A Universidade, a nossa Universidade, não mais seria um instrumento de reprodução da ordem social vigente; pelo contrário, seria um instrumento da sua liquidação e o solo fértil onde abrolhariam os revolucionários preparados para provocar o parto de um novo mundo idílico: fraterno, justo, igualitário, livre da exploração do homem pelo homem (ou da mulher pela mulher).

A Universidade, a nossa Universidade, não mais seria um instrumento de reprodução da ordem social vigente; pelo contrário, seria um instrumento da sua liquidação e o solo fértil onde abrolhariam os revolucionários preparados para provocar o parto de um novo mundo idílico: fraterno, justo, igualitário, livre da exploração do homem pelo homem (ou da mulher pela mulher)

Portanto, Paris. Paris despertara do enfadonho letargo a que nos condenava a sociedade contabilista, racionalmente organizada, legalmente regulamentada, parida há uns 150 anos pela máquina a vapor, prolongada no século XX pelo desumano travail à la chaîne, que embrutecia e desapossava as pessoas de si mesmas, perpetuando a alienação propícia à contínua reprodução do capitalismo burguês;  paralisando ou adormecendo as vibrações mais genuínas e espontâneas, ferventes nos nossos peitos e cabeças; gerando um “homem unidimensional” (Marcuse), incapaz   ou impotente para recusar, para se opor à cilindragem formatadora engendrada e aplicada pela tecno-burocracia burguesa e capitalista. Mãos e pés à obra! Ocupada (e destruída) a Universidade, decidimos ocupar também as ruas pelas quais se pavoneava a opulência ofensiva da classe dominante genebrina: invadimos a “Vieille Ville”, onde muitos de nós, como eu própria, residiam. Contraditório? Incoerente? Paradoxal? Oh! Mais qu’est-ce que cela serait con comme raisonnement! Maio adentro, o cortejo regular dos manifestantes anticapitalistas, antiburgueses, anti-tudo, atravancava as ruelas da Cidade Velha, apedrejando aqui e ali, de vez em quando, uma ou outra montra dos luxuosos antiquários que por lá havia. Estava criado, finalmente, um problema de ordem pública.

O governo não podia fechar os olhos, a polícia foi obrigada a intervir. Recordo uma noite em particular, mas não sei dizer a data; de certo, apenas sei que corria o mês de Maio. Pelos jornais e transístores, todos nós lêramos ou ouvíramos reportagens atrozes sobre a violência bestial dos CRS  franceses, apropriadamente alcunhados de CRS-SS. Por comparação, a polícia de choque suíça era quase cortês. Um ou vários pelotões de flics (chuis) barraram-nos a passagem. Ululámos, provocámos, insultámos, mas a polícia mantinha-se estática, como que petrificada. Até que um incidente qualquer funcionou como um raio salvífico que ateou a pancadaria. Sim, queríamos mártires porque precisávamos de heróis. Os polícias atiraram-se a nós como um só homem, de bastão em punho. Choveram as tão desejadas e esperadas bastonadas, a torto e a direito. Levámos uma sova – ganhámos. Em pouco tempo dali escorraçados, verificámos as medalhas. Pessoalmente, nada tinha para exibir. Mas as costas do meu namorado da altura, um assistente universitário que fizera, como eu, a sua “opção de classe”, estavam vermelho-negro de alto abaixo. Levei a noite a esfregá-las de mansinho, a untá-las devagarinho com vaselina ou qualquer outra mezinha gordurosa encontrada lá por casa. Tinha ali o meu herói, dorido como o caraças, mas sem dar um suspiro nem um ai. E eu, com 19 anos, fazia-lhe festas metendo os dedos nos seus cabelos loiros e longos. Não para o consolar – nunca! – mas para lhe dar amor e ânimo, porque a nossa jornada revolucionária mal estava a começar.

Uma manifestação de estudantes na Praça Denfert Rochereau a 7 de maio

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Paris: no olho do furacão

Mas não se via o que mais poderíamos desencantar para fazer, encerrados na pequena Genève, onde até a polícia de choque era civilizada. Queríamos estar no olho do furacão, participar na revolta ao rubro vergastada pelos CRS de Paris. Para lá nos mudámos, num velhíssimo Citroën de dois cavalos, que já não tinha faróis de iluminação ao longe, apenas uns médios ranhosos, e cujos travões só travavam devagar. Insouciance. Eu guiava sendo menor, estrangeira e sem carta de condução. Irresponsabilidade total. On s’en foutait. Complètement. Não sei onde, exactamente, ficámos em Paris. Decerto na casa de um copain de um amigo que era amigo de outro copain, etc. Peu importe. Para todos os efeitos, o que queríamos era ir para a rua e estar na rua. Participar nas gigantescas manifestações que de imediato se tornavam lendárias no próprio momento de acontecerem.

Os momentos mais exaltantes eram aqueles em que a manif refluía perante a arrancada súbita e bruta dos CRS, para depois, quando nos julgavam rendidos, avançarmos de novo com redobrada fúria contra o inimigo. Sim, as barricadas, muitas barricadas feitas com tudo o que viesse às mãos, mas a principal matéria-prima eram os paralelepípedos, muitos, muitos paralelepípedos arrancados com gana e raiva ao pavimento das avenidas e ruas empedradas

Os momentos mais exaltantes eram aqueles em que a manif refluía perante a arrancada súbita e bruta dos CRS, para depois, quando nos julgavam rendidos, avançarmos de novo com redobrada fúria contra o inimigo. Sim, as barricadas, muitas barricadas feitas com tudo o que viesse às mãos, mas a principal matéria-prima eram os paralelepípedos, muitos, muitos paralelepípedos arrancados com gana e raiva ao pavimento das avenidas e ruas empedradas. E as pancartas, as compridas pancartas que iam de um lado ao outro da rua e anunciavam, a preto e vermelho, ao que vínhamos, o que exigia aquela mole humana que apenas dois meses antes se aborrecia de morte, vadiando sem destino pela cidade, para depois, findo o dia, se afundar nos sofás dos seus apartamentos repletos de monotonia. Sim, “la France s’ennuiait” (P. Viansson-Ponté), farta de paz e sossego como há muitos anos se não via, envolta numa atmosfera indolente e indiferente, apática, pesada, feita de ar parado.

Partido Comunista Francês: como travar a revolução?

Na noite de 24 para 25 de Maio, a revolução que o não foi – ninguém pensou em tomar o poder – atingia o clímax com manifestações imponentes em toda a França; toda a França desfilou por todos os cantos do hexágono, num momento de genuíno interclassismo, num autêntico movimento de massas. Foi, porventura, o único acto do drama revolucionário em que aconteceu uma convergência sincera entre o operariado jovem e a juventude estudantil. Mas a CGT (Confédération Générale des Travailleurs), comandada pelos comunistas da velha guarda, não abdicou de um cortejo próprio, seu e dos seus. Havia mais de duas semanas que os operários se vinham revoltando nas respectivas fábricas, ocupando-as, sequestrando patrões e directores, fazendo greve atrás de greve ante a contumácia patronal. Porém, todos, ou quase todos, guardados à vista pelos funcionários sindicais da CGT, de longe a maior central sindical, inteiramente dominada pelo Partido Comunista Francês.

Mais um momento tenso entre estudantes e

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O PCF, como não espanta nem espantou ninguém já nesse tempo, abominava a “imaginação”, os “sonhos”, as “praias” jazentes sob as pedras da calçada. Para resistir e conter, para sobreviver e liderar, juntou-se à festa, mas com os dois pés atrás e ideias muito reservadas. Georges Marchais, então apenas um candidato ao cargo de secretário-geral do PCF, vilificou no L’Humanité de 3 de Maio o quotidiano do partido, os execráveis “grupúsculos esquerdistas” que desencadeavam, por onde quer que passassem, um frenesim revolucionário sem ordem, sem rumo, sem estratégia nem liderança: não passavam de “falsos revolucionários que era preciso desmascarar”. Basta uma curta amostra dos slogans e palavras de ordem gritados nas manifes ou inscritos em cartazes e pancartas, para se perceber o intransponível abismo que divorciava os comunistas pró-soviéticos da juventude em festa: L’imagination au pouvoir. C’est interdit d’interdire. Sous le pavé, la plage. Prenons nos rêves pour la réalité; etc. Para arrumar desde já a questão de um PCF que, basicamente e em essência, pretendia liquidar no ovo o Maio de 68, recordemos que a 23, os representantes sindicais, seguindo as indicações do PCF, se sentaram à mesa com os patrões, num inédito diálogo social. A 24, a França permanecia paralisada, não apenas pela greve geral, mas também pela generalizada falta de gasolina, o que impedia deslocações e, portanto, a formação de um movimento nacional. Nos chamados “acordos de Grenelle”, o patronato fez concessões, algumas nada despiciendas,  que bastaram para os comunistas tocarem a reunir.

E De Gaulle? O presidente fora à Alemanha para convencer o general Massu, comandante das quatro divisões francesas ali estacionadas, a avançar sobre Paris. Massu exigiu, como condição, uma amnistia geral para os oficiais franceses da OAS ainda presos. Quatro colunas pararam a 40 kms da capital. A 29, uma gigantesca e ruidosa manifestação da “maioria silenciosa” concentrou-se nos Campos Elísios, sob a protecção de um cordão envolvente de antigos «Páras» mobilizados pelas suas associações de veteranos. O regresso de De Gaulle achou-se deste modo legitimado. Nesse mesmo dia, o general falou pela rádio, anunciando a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de eleições. De Gaulle e o PCF juntaram-se numa insólita frente comum, e mutuamente se salvaram.

Sem muitos mortos e muitíssimos feridos, a França, em greve geral, sem combustível, com fábricas, lojas, escolas e universidades paralisadas, era um protesto forte, espectacular, mas não era a iminência de uma Revolução a sério; era quando muito uma ameaça, mas que não iria mais além

Voltemos ao 24/25 de Maio em Paris, o último acto da tragicomédia “Maio de 68”. Durante a violência nocturna, houve duas vítimas mortais. Logo apareceu quem contrapusesse que no fim de semana anterior se tinham registado nada menos do que 70 mortos nas estradas da França. Não há, de facto, verdadeiras revoluções sem muitos mortos e muitíssimos feridos. Sem muitos mortos e muitíssimos feridos, a França, em greve geral, sem combustível, com fábricas, lojas, escolas e universidades paralisadas, era um protesto forte, espectacular, mas não era a iminência de uma Revolução a sério; era quando muito uma ameaça, mas que não iria mais além. À superfície, as instituições tremeram; mas lá nos seus fundos, o Estado, esse, permaneceu hirto e robusto, mais forte do que se pensara. O Estado francês resistiu energicamente à generalizada pagaille, ao universal chambardement da sociedade.

Muitas, inúmeras greves, sim, a França inteira em greve, “grève active”, mas não exacta e propriamente “grève revolutionnaire”. Para isso, teria sido preciso radicalizar muito mais o operariado, recusar em absoluto qualquer negociação com o patronato, e promover a “reapropriação dos meios de produção”, tudo o que o PCF se encarregou de impedir. No 24/25 de Maio, desencadeou-se um tímido incêndio na Bolsa de Paris, nada de espectacular: “C’était quelques poubelles! On est loin de l’incendie du Reichstag!” (Alain Geismar, líder do Maio de 68 estudantil). A ninguém ocorreu assaltar um ministério ou a Assembleia Nacional ou o Eliseu. Por outras palavras: a ninguém ocorreu tomar ou tentar tomar o Poder. Geismar explica porquê: “Tal era impossível sem um partido revolucionário. O único que poderia [tomá-lo] era o PCF, e este não o queria.” Os esquerdistas de vários pêlos queriam, mas, sobre guerrearem-se entre si, careciam de toda e qualquer organização operacional e de toda e qualquer hierarquia respeitada, obedecida, para já nem mencionar uma base ideológica consistente ou uma perspectiva política clara e partilhada.

O magnífico “Eu” ao poder

Escreveu António José Saraiva: “Maio morreu como morrem as estações.” Bela frase, à primeira vista verdadeira, mas no fundo enganadora. Sim, Maio enquanto desafio lançado ao Poder, enquanto espectáculo contestatário, morreu, sem dúvida. Tal como o Maio da rebeldia colectiva, da ousadia colectiva, da coragem colectiva e até de uma nesga de heroísmo individual e colectivo. Digo nesga, porque heroísmo propriamente dito é coisa mais grande e mais grave, que pertence à antiquíssima saga épica da Humanidade, que naquele tempo talvez ainda fosse levada a sério; hoje em dia, perdeu-se por completo o sentido do heróico e do épico. Toda a gente que perde uns minutos por dia a pensar, reconhece as várias dimensões que definiram o Maio de 68, da lúdica à libertária, da ideológica à política, da social à económica, e por aí fora. Mas, em geral, Maio é visto em bloco, como um puzzle único composto de diversas peças que encaixam harmoniosamente umas nas outras. Estas peças, sim, estas desapareceram, pelo que o Maio de 68 se assemelharia a flores sem fruto. Acontece, porém, que deixou sementes que deram em árvores, de cujas copas frondosas e úberes penderiam frutos tristemente esplendorosos. (Não há aqui contradição, apenas ironia.) Frutos que, por seu turno, uma vez caídos no solo, se converteram em renovada sementeira de uma cultura que, nos nossos dias, abdica de si mesma.

É que em Maio de 68, por entre ou sob o alarido de um gregarismo ruidoso, estridente, gorgolava, baixinho, o nosso “EU” mais íntimo e magnífico, encapsulado na caixa torácica definida pelas costelas e o esterno. Não era um simples pronome pessoal. Era o nosso “Eu” interior e autêntico, o caroço do nosso ser mais vibrante e mais carente de se expressar, e de se afirmar.

É que em Maio de 68, por entre ou sob o alarido de um gregarismo ruidoso, estridente, gorgolava, baixinho, o nosso “EU” mais íntimo e magnífico, encapsulado na caixa torácica definida pelas costelas e o esterno. Não era um simples pronome pessoal. Era o nosso “Eu” interior e autêntico, o caroço do nosso ser mais vibrante e mais carente de se expressar, e de se afirmar. Maio reactualizou e legou-nos a soberania do “Eu”, cujos desejos, ímpetos e caprichos hoje em dia, e há pelo menos duas décadas, reinam, imperam e orientam a nossa demanda acerca da misteriosa natureza dos homens e da enigmática índole do mundo. A soberania do “Eu” desqualificou, despromoveu, enxotou as antigas prerrogativas cognitivas da Razão, actualmente apenas tolerada por favor, ou até transmutada em objecto de irrisão.

Maio reactualizou, recuperou a primazia do “Eu”, mas não a inventou. Inventou-a o Romantismo alemão, que irrompe em finais do século XVIII e se expande a toda a Europa a partir do início de XIX (Isaiah Berlin, The Roots of Romanticism, 1999). Afirma De Staël, a primeira femme de lettres que descortinou a revolução romântica germinada na Alemanha: “O que há de verdadeiramente divino no coração do homem não pode ser definido” (Madame de Staël, De L’Allemagne, 1813). Para tanto, faltam as palavras exactas, como igualmente as não há para penetrar “no mistério da verdadeira beleza” em todos os géneros artísticos. Somente uma forte inspiração religiosa poderá levar-nos a palpar, no mais íntimo de nós mesmos, “a presença da divindade” (idem). Ora, a remissão da capacidade criadora do ser humano para o divino pressupõe uma ligação umbilical entre o artista e uma entidade supra-terrestre invisível: Deus, o Criador primordial, que nos confiou um mundo não pré-atestado nem, por conseguinte, pré-ordenado. Essa ligação umbilical, cravada nas concavidades do coração humano, confere ao artista um estatuto de superioridade indisputável, uma dimensão sobre-humana, que roça o divino. Se bem que todos os homens sensíveis transportem um potencial poético, apenas os criadores de imagens, alegorias e metáforas são capazes de expressar “o que se passa neles de inexpressável”: um acometimento poiético. Os artistas, os poetas, são portanto os intérpretes e criadores de um mundo vazio e mudo, que Deus deixou indecifrado.

O Romantismo revolveu as entranhas de uma tradição ocidental com dois mil anos de existência; removeu-lhe as suas vetustas e respeitáveis raízes; fez ruir pela base os pilares e as traves mestras em que, confiante, se sustentava. Sempre se presumira possível o conhecimento da “natureza das coisas” e dos “relacionamentos entre todas as coisas de que se compõe o universo” (I. Berlin). Por conseguinte, também sempre se presumira a existência objectiva de uma ordem factual a que os homens teriam de se submeter ou de se adaptar. A estas presunções, o Romantismo contrapôs a negação da pré-existência de quaisquer estruturas, factos ou padrões, e, portanto, logicamente, a negação da possibilidade de conhecer ou saber coisas objectivamente inexistentes. A tarefa dos seres humanos divinamente inspirados consistiria, então, na criação de “valores, objectivos, finalidades” que permitissem desenhar uma visão do mundo inteiramente pessoal e privativa. No princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus, e o que existia era o Nada.

Carros em frente a uma esquadra da polícia no Quartier Latin

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Para os românticos, o mundo apresentava-se-lhes como uma imensa tela em branco, que lhes competia preencher e modular com poesia ou com prosa, com pintura ou com música, com abóbadas ou com vitrais; em suma, com arte, com o seu labor criativo, cuja nascente se albergava nos cantos mais recônditos do “Eu”, a que alguns chamam espírito ou alma, residentes nas nossas secretas moradas interiores. A partir delas, dentro delas, cada um comporia livremente um Universo com a  forma da sua preferência subjectiva, servindo-se da sua força criativa pessoal, destinada para alimentar uma “perpétua autocriação” (I. Berlin). Neste processo sem fim, o “Eu”, a alma ou o espírito afeiçoavam um Universo auto-criado, e por isso moldado a seu gosto e à sua vontade. O “Eu” e o Universo eram homólogos, residindo nessa homologia a possibilidade de uma verdadeira Liberdade: a total libertação de imposições ou constrangimentos exógenos. Se bem me recordo, era um poder imaginativo e libertador assim entendido que motivava grande parte da juventude revolucionária que fez o Maio de 68. Era certamente o que me motivava a mim.

A irrupção do Romantismo

Não por acaso se associa quase sempre um romantismo juvenil ao Maio de 68. E, tudo bem visto e ponderado, foi precisamente esta a herança que ficou e perdurou, exacerbada pelo aggiornamento pós-modernista, que não passa de um hiper-romantismo que entronizou como valor supremo os direitos da soberania do “Eu”: a ditadura do subjectivismo radical; o sujeito como critério de tudo, da verdade e da mentira, do belo e do feio, do bem e do mal. Maio de 68 não tinha uma agenda política definida e coerente. Mas toda a gente, ou muita gente, tinha uma agenda pessoal pressurosa: libertar o “Eu” das regras e convenções que o silenciavam e que, silenciando, matavam. O nosso “Eu”, reduzido a um sussurro clandestino, ora lírico, ora gemente, precisava de ar para respirar e gritar alto as suas dores, e as suas exigências.

No bairro de Saint-Germain, as ruas ficaram cobertas de projéteis depois dos confrontos entre polícia e estudantes

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A ditadura do subjectivismo radical não poderia impor-se sem que, previamente e em simultâneo, se legitimasse o co-relacionado relativismo absoluto dos valores éticos e estéticos e dos méritos civilizacionais e culturais do Ocidente. Muito compreensivelmente, e muito logicamente, tanto relativismo veio a desaguar num niilismo epistemológico que inibe o pensamento e desmotiva a pesquisa. Porquê e para quê demandar a Verdade, se ela não existe e nada se pode conhecer ao certo? Por outro lado, coisa não menos nefasta, a rendição intelectual do Ocidente ao multiculturalismo, facilitada, se não promovida, por aquilo que, tendo sido no passado uma nobre e única tradição de autocrítica, degenerou em auto-maldição masoquista, abriu caminho às obsessões identitárias – pessoais, étnicas, linguísticas, nacionais, religiosas, sexuais, regionais ou de género, e talvez outras mais que agora me não ocorrem.

A Europa, o coração do Ocidente, existe hoje em dia recoberta por um mosaico cultural caleidoscópico. Se o apagão da nossa criatividade intelectual e artística for suficientemente prolongado, como tudo indica que será, a nossa cultura será desfeita em estilhaços e acabará por se destruir a si mesma e também a nós, europeus, cuja cultura, forjada ao longo de dois mil anos, constitui o nosso insubstituível bilhete de identidade. Tanto mais que faltará, como aliás já vai faltando, uma infra-estrutura religiosa que sirva como factor de coesão civilizacional e de unidade espiritual entre as tão diversas nações europeias. O que restará que nos una? Nada. A própria religião católica, outrora fiadora da unidade espiritual europeia, quer-me parecer, a mim que sou agnóstica, que está em vias de se transformar, lentamente, imperceptivelmente, em apenas mais uma ideologia.

O que restará que nos una? Nada. A própria religião católica, outrora fiadora da unidade espiritual europeia, quer-me parecer, a mim que sou agnóstica, que está em vias de se transformar, lentamente, imperceptivelmente, em apenas mais uma ideologia.

As obsessões identitárias e as obsessões ideológicas não unem, muito pelo contrário, dividem. Quem comporá o Requiem pela morte da Europa? Pouco provavelmente, mas possivelmente, ainda algum de nós, dos que fizeram ou estiveram no Maio de 68, e que olham melancolicamente para essa grandiosa festa da juventude, passada num mundo que está a desaparecer sob os nossos olhos, e do qual somos a última testemunha.

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