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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Ex-cônsul garante que ninguém o contactou por causa do caso das gémeas — mas deputados têm "dificuldade em acreditar"

Paulo Jorge Nascimento, antigo cônsul português em São Paulo, respondeu aos deputados garantindo que só soube do caso das gémeas pelas notícias. Foi um entre milhares de processos normais, garantiu.

O embaixador Paulo Jorge Nascimento, antigo cônsul-geral de Portugal na cidade brasileira de São Paulo, foi esta sexta-feira ouvido durante mais de duas horas pelos deputados da comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas luso-brasileiras tratadas em Portugal com um dos medicamentos mais caros do mundo — numa audição em que repetiu até à exaustão que o processo de atribuição de nacionalidade portuguesa às duas crianças nascidas no Brasil respeitou integralmente os processos normais e em que garantiu que só teve conhecimento dos contornos do caso quando eles se tornaram públicos na imprensa portuguesa.

A comissão retomou esta sexta-feira os seus trabalhos após as férias parlamentares com a audição do diplomata que entre 2018 e 2022 liderou o consulado-geral português em São Paulo — a dependência consular onde foi tratado o processo de atribuição de nacionalidade às gémeas em 2019. A comissão está a investigar se houve algum tipo de favorecimento destas gémeas para receber o tratamento em Portugal e tem, no centro da polémica, o empresário Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República, que vive no Brasil e terá procurado influenciar várias instâncias do Estado português (incluindo Belém e o Governo) no sentido de favorecer o tratamento das gémeas no Hospital de Santa Maria.

As duas crianças sofrem de atrofia muscular espinhal e foram tratadas com o medicamento Zolgensma em 2020, tendo tido alta em maio. A comissão pretende, contudo, perceber se as duas crianças acederam de forma legítima ao SNS e se houve algum tipo de práticas de corrupção envolvendo o filho de Marcelo Rebelo de Sousa, o próprio Marcelo Rebelo de Sousa e membros do Governo, como o então secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales.

No centro da audição desta sexta-feira esteve o papel da representação diplomática portuguesa em São Paulo em todo este caso. Os deputados quiseram saber se Paulo Jorge Nascimento tinha tido conhecimento do caso naquela época, se o consulado-geral tinha dado algum tratamento especial a estas crianças e se o diplomata tinha sido um dos responsáveis contactados por Nuno Rebelo de Sousa nos seus esforços para ajudar a família das gémeas luso-brasileiras.

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Paulo Jorge Nascimento, contudo, arrumou a maioria das respostas no primeiro conjunto de perguntas, colocadas pelo deputado António Rodrigues, do PSD — o que levou vários outros deputados a repetir incessantemente as mesmas perguntas (e a ouvir as mesmas respostas) ao longo de mais de duas horas.

"Nunca ouvi falar deste caso até ele ser ventilado publicamente."
Paulo Jorge Nascimento, ex-cônsul de Portugal em São Paulo

O agora embaixador de Portugal em Pequim assegurou que a primeira vez que teve conhecimento do caso das gémeas foi já em 2023, quando vieram a público as notícias sobre o alegado envolvimento do filho de Marcelo Rebelo de Sousa. Antes disso, o pedido de nacionalidade das gémeas tinha sido apenas um dos milhares de casos que passam anualmente pela estrutura consular portuguesa em São Paulo — de que se ocupam os funcionários consulares sem uma intervenção direta do cônsul-geral.

“Recordo-me em função do trabalho de pesquisa que foi efetuado em função desta CPI”, disse, quando foi questionado sobre se tinha alguma memória do caso das gémeas. “Antes disso não tinha memória deles.”

Ao longo da audição, Paulo Jorge Nascimento reiterou várias vezes que o processo de atribuição de nacionalidade seguiu os trâmites habituais e lembrou que o consulado-geral tinha cerca de 250 atendimentos diários, pelo que era impossível ter memória de cada um dos casos. Segundo o diplomata, o pedido foi feito a partir da plataforma informática e seguiu o processo “habitual”, tendo tido uma conclusão num tempo considerado normal — entre o pedido feito em abril de 2019 e a atribuição da nacionalidade em setembro do mesmo ano decorreu um período “normal” tendo em conta a baixa complexidade deste processo.

Contudo, em novembro do ano passado, o Ministério da Justiça apontava outras datas — e uma celeridade diferente — no processo de atribuição da nacionalidade às duas crianças. A tutela referia1 então que os processos “tiveram início no Consulado Geral de Portugal em São Paulo (Brasil) a 02/09/2019”, tendo “nessa mesma data [sido] remetidos, através do Sistema Integrado do Registo e Identificação Civil, à Conservatória dos Registos Centrais (Lisboa)”.

Gémeas luso-brasileiras que foram tratadas no Santa Maria tiveram nacionalidade portuguesa em 14 dias. IRN diz que processo não foi urgente

O assento de nascimento, segundo as mesmas respostas respostas do ministério, foi registado pouco depois, “no dia 16/09/2019”, assumia há pouco menos de um ano a área do governo com a tutela do Instituto dos Registos e Notariado, garantindo ao Observador que o instituto “não localizou qualquer pedido de urgência relativamente aos processos em causa”.

Deputados com “dificuldade em acreditar” na palavra do embaixador

O diplomata também garantiu várias vezes ao longo da audição que nunca foi contactado pela mãe das gémeas, pelo filho de Marcelo Rebelo de Sousa ou por qualquer pessoa na comunidade portuguesa para interceder em favor das duas crianças doentes — o que levou alguns deputados, nomeadamente do Chega e da Iniciativa Liberal, a considerarem “difícil de acreditar” que ninguém tenha falado com a única pessoa que podia efetivamente ajudar as crianças com a atribuição da nacionalidade (indispensável para o acesso ao SNS).

“Nunca ouvi falar deste caso até ele ser ventilado publicamente”, assegurou Paulo Jorge Nascimento. Questionado pelos deputados sobre se conhecia Nuno Rebelo de Sousa, o diplomata não escondeu que o conhecia bem: cruzaram-se múltiplas vezes em São Paulo, um como cônsul-geral, outro como presidente da câmara de comércio, e eram presença assídua em todo o tipo de eventos da comunidade portuguesa. Contudo, garantiu o diplomata, apesar dos “variadíssimos” contactos, o filho de Marcelo nunca lhe falou deste caso. “A mim nunca ninguém me falou do assunto”, reiterou. Nem a Presidência da República, garantiria de seguida.

Assumindo que o tema até pode ter circulado entre a comunidade portuguesa emigrada no Brasil, devido à preocupação que suscitou em torno do estado de saúde das gémeas, Paulo Jorge Nascimento garantiu que o tema nunca chegou aos seus ouvidos. “Não tenho memória de este caso alguma me vez ter sido trazido ao meu conhecimento até ele sair nos meios de comunicação social”, assegurou, descrevendo o caso como “um processo como milhares de outros que eram tratados no consulado-geral de Portugal em São Paulo anualmente”. Concretamente, só em 2019 foram processados “mais de 90 mil” casos naquela representação diplomática.

Mas os deputados de dois grupos parlamentares — Chega e IL — consideraram “difícil de acreditar” que Paulo Jorge Nascimento nunca tenha sido contactado por ninguém, especialmente por Nuno Rebelo de Sousa, que chegou a afirmar que estava a fazer todos os possíveis para ajudar as crianças.

O presidente do Chega, André Ventura, recordou o famoso email enviado a 21 de outubro de 2019 por Nuno Rebelo de Sousa ao seu pai, o Presidente da República, a dizer que já tinha sido possível tratar da primeira fase da ajuda às gémeas — os cartões de cidadão portugueses — e que agora era necessária uma “ajuda maior”, uma expressão que tem estado no centro das suspeitas de favorecimento no caso. Ventura perguntou ao diplomata “como é que nos quer fazer acreditar” que Nuno Rebelo de Sousa nunca falou com ele sobre o caso. “É difícil de acreditar.”

“Eu não tenho de fazer acreditar coisa nenhuma a ninguém. Eu tenho de dizer a verdade”, respondeu o ex-cônsul. “Que nunca falaram comigo é a verdade.”

"A mãe das crianças fala com todas as pessoas com que consegue, o Dr. Nuno Rebelo de Sousa fala com todas as pessoas com que consegue, e ninguém fala com o cônsul?"
Joana Cordeiro, deputada da IL

Mas André Ventura não deixou cair o tema e insistiu com o diplomata, apontando que era “estranho” que Nuno Rebelo de Sousa nunca tivesse falado com a “única pessoa” que podia efetivamente ajudar. O líder do Chega disse mesmo que era estranho que o filho de Marcelo, que “moveu mundos e fundos” para tentar ajudar a família das gémeas, falando com a Presidência da República e com o Governo, não tenha falado com o representante do Estado português em São Paulo, o cônsul, que ainda por cima conhecia bem dos eventos sociais.

Questionado, mais tarde, pela deputada Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, sobre se tinha alguma ideia do que é que Nuno Rebelo de Sousa poderia ter feito no sentido de ajudar a família das gémeas, Paulo Jorge Nascimento foi taxativo a responder que não.

Joana Cordeiro, da Iniciativa Liberal, seguiu o mesmo caminho e usou também a expressão “difícil de acreditar” para classificar as palavras do embaixador. “A mãe das crianças fala com todas as pessoas com que consegue, o Dr. Nuno Rebelo de Sousa fala com todas as pessoas com que consegue, e ninguém fala com o cônsul?”, perguntou a deputada, para ouvir uma resposta desarmante: “Exatamente. Ninguém falou comigo.”

“Nunca a mãe falou comigo, nunca ninguém na comunidade portuguesa falou comigo, nunca recebi nenhum email sobre esta matéria”, assinalou o ex-cônsul, dizendo até aos deputados que, depois das primeiras notícias sobre o caso, fez várias pesquisas no seu email em busca de eventuais mensagens sobre o assunto que lhe pudessem ter escapado. “Fiz uma pesquisa tão cuidadosa quanto consegui. Não tenho nenhum contacto sobre isto nos meus emails.”

Funcionários consulares foram ao hospital — mas isso não é anormal

Outro tema que esteve em cima da mesa na audição desta sexta-feira foi a deslocação de funcionários do consulado-geral de Portugal em São Paulo ao hospital onde estavam as gémeas para a recolha dos dados biométricos. Os deputados fizeram uma miríade de perguntas sobre esta matéria, querendo designadamente saber se este processo era habitual, se representava algum tipo de facilitação do processo, se necessitava de uma autorização específica por parte do cônsul ou até se eventualmente os cartões de cidadão foram entregues aos pais das gémeas no hospital. Na prática, os deputados quiseram saber se o consulado tratou esta família de forma especial (e se isso se deveu a alguma influência, designadamente por parte de Nuno Rebelo de Sousa).

O diplomata, porém, desfez as dúvidas afirmando que, embora não seja comum, a possibilidade de deslocação de um funcionário do consulado para a recolha dos dados biométricos destinados à produção do cartão de cidadão é possível, está prevista e até há um valor para ela na tabela dos emolumentos dos atos praticados pelo consulado. Habitualmente, explicou Paulo Jorge Nascimento, os dados biométricos são recolhidos no consulado; porém, situações excecionais como o internamento hospitalar ou outras condições podem justificar que um funcionário se desloque ao hospital ou a outro lugar com um equipamento próprio para a recolha destes dados.

Gémeas do Sta Maria. Ex-cônsul diz não ter sido contactado por Belém ou Nuno Rebelo de Sousa. “Difícil de acreditar”, dizem deputados

Foi o que aconteceu no caso das gémeas luso-brasileiras, salientou Paulo Jorge Nascimento, explicando que não teve conhecimento deste facto porque não passou de uma prática normal — que não precisava de uma autorização especial. Os funcionários do consulado, disse, têm “autonomia” para tomar uma decisão destas.

Os deputados voltariam várias vezes a este tema, procurando perceber se a deslocação de funcionários consulares ao hospital denotaria uma atenção especial a este caso. Contudo, Paulo Jorge Nascimento repetiu várias vezes que a recolha de dados biométricos no hospital não era irregular. “A única deslocação de funcionários do consulado de que eu tenho conhecimento”, afirmou, quando questionado sobre se tinha havido alguma outra deslocação ao hospital.

Ex-cônsul tentou justificar dificuldades de acesso ao consulado

O momento mais tenso da audição — e também aquele que Paulo Jorge Nascimento teria mais dificuldade em explicar — aconteceria na reta final, num tema aparentemente secundário: o modo de funcionamento dos agendamentos no consulado-geral português em São Paulo.

André Ventura, do Chega, abriu o tema trazendo várias notícias e publicações na internet sobre as dificuldades dos cidadãos em aceder a vagas de atendimento no consulado. Ventura disse mesmo que queria ouvir a comunidade portuguesa no Brasil para dar conta do “inferno” que é o acesso ao consulado. Para o líder do Chega, é incompreensível que o caso das gémeas tenha sido “tratado da forma normal”.

Paulo Jorge Nascimento, por seu turno, reconheceu as dificuldades nas marcações, explicando que é “normal” que num consulado com a dimensão daquele, “por muito que fosse feito um esforço”, o atendimento ficaria “sempre aquém” das expectativas dos utentes. “Ouvi essas queixas presencialmente”, garantiu Paulo Jorge Nascimento, lembrando que no ano de 2019 foram emitidos milhares de cartões de cidadão e passaportes, sendo o consulado em São Paulo o terceiro da rede consular com mais atos consulares praticados. “Reitero que me parece que o processo decorreu com normalidade.”

A deputada Joana Cordeiro, da IL, também pegou no tema das dificuldades em aceder a marcações no consulado e recordou as palavras da antiga secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, Berta Nunes, que na CPI chegou a afirmar que existiam empresas externas a gerir os agendamentos no consulado. No entender de vários deputados, é imperativo perceber como funcionam as marcações no consulado para compreender se, eventualmente, as grandes dificuldades em aceder a uma marcação poderão ter estado na origem da necessidade da família das gémeas de pedir ajuda e influência a Nuno Rebelo de Sousa.

"Havia situações, e eram-nos reportadas, em que os chamados escritórios de despachantes, ficavam todo o dia a tentar agendar pessoas no consulado-geral. Depois de terem agendado pessoas, vendiam estas vagas."
Paulo Jorge Nascimento, ex-cônsul de Portugal em São Paulo

O tema levou, porém, a uma espécie de mal-entendido na audição. O ex-cônsul garantiu que “não havia uma empresa externa a gerir os agendamentos”, mas, perante as perguntas da bloquista Joana Mortágua, reconheceu que existia um outro problema: os chamados “escritórios de despachantes”, ou seja, grupos organizados que passavam dias inteiros ao computador com o objetivo de açambarcar as vagas do consulado, para depois as vender a elevado preço aos cidadãos que delas precisavam. Muitas fazem até publicidade na internet com expressões como “consulado express”.

“Pode haver situações, e havia situações, e eram-nos reportadas, em que os chamados escritórios de despachantes ficavam todo o dia a tentar agendar pessoas no consulado-geral. Depois de terem agendado pessoas, vendiam estas vagas”, explicou Paulo Jorge Nascimento, sublinhando que o consulado implementou várias medidas no sentido de mitigar este tipo de burlas — lançando alertas à população, libertando as vagas gradualmente e procurando estar atentos a marcações em massa.

O ex-cônsul disse aos deputados que não podia ter a certeza de que a marcação concreta para o caso das gémeas tenha feita efetivamente pela família das crianças — ou se poderá ter sido feita por Nuno Rebelo de Sousa ou até comprada a uma destas empresas. O diplomata lembrou também que a partir de 2021 o consulado-geral passou a estar integrado num sistema de agendamentos centralizado, gerido a partir de Lisboa para toda a rede consular. Paulo Jorge Nascimento admitiu, ainda assim, que o problema pode não ter ficado totalmente resolvido.

No final da audição, o agora embaixador de Portugal em Pequim foi ainda questionado sobre questões técnicas, nomeadamente sobre como é que era possível que o sistema informático permitisse que alguém fizesse uma marcação com um nome e, depois, a vendesse a outra pessoa sem que isso levantasse um alerta no consulado. Paulo Jorge Nascimento escudou-se em questões informáticas para assinalar que não sabia detalhadamente como é que essa venda era possível.

A comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas continua nas próximas semanas, com destaque para as audições dos ex-ministros da Saúde Marta Temido e Manuel Pizarro no dia 27 de setembro.

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