Acontece sempre da mesma maneira: quando ocorre a alguém perguntar qual o maior disco da música portuguesa há quem se esqueça de Zeca ou de Sérgio, quem desmereça décadas de pop-rock, mas quase toda a gente menciona Por Este Rio Acima, a mais conhecida obra-prima de Fausto Bordalo Dias. Se todo o criador aspira a que a obra seja maior que ele próprio, então o objetivo foi alcançado: Fausto Bordalo Dias morreu, Por Este Rio Acima continuará vivo e a ser falado durante décadas.
E é-o merecidamente, diga-se: poucas obras pegam num tema de tal dimensão (as descobertas) e explora cada sub-enredo (o horror, o medo, o sonho, a saudade) com tanta ambição e pujança musical: as letras são gigantes e precisas, os arranjos inabaláveis e são usados tantos instrumentos que se Fausto quisesse reproduzir ao vivo exatamente o que está em disco teria de chamar duas equipas de rugby de músicos (flautas, cavaquinhos, raios, só para adufes seria necessária uma equipa de basquete).
Não é raro que um criador veja a sua obra ser assombrada ou quase diminuída por uma das suas criações e temos de admitir que isso aconteceu com Fausto: Por Este Rio Acima é tão grandioso, foi tão bem recebido, atravessou tantas gerações, que Fausto acaba por ser medido quase exclusivamente por esse disco, como se não tivesse outra (e igualmente extraordinária) obra.
O que, sejamos honestos, é uma tremenda injustiça: Para Além das Cordilheiras (de 1987) é um disco preciosíssimo, extraordinário mesmo, e faria figura de magnum opus na obra de qualquer outro criador (tendo vencido o Prémio José Afonso, em 1988); e quem não gostaria de ter na sua discografia discos como Madrugada dos Trapeiros (de 1977), Histórias de Viageiros (de 1979), O Despertar dos Alquimistas (de 1985), Crónicas da Terra Ardente (de 1994) ou mesmo esse disco mal-recebido que foi A Ópera Mágica do Cantor Maldito (2003)?
Raios, peguem em Lusitana, a canção que abre Para Além das Cordilheiras e digam-me que não ficam com a pele arrepiada com aquelas subidas, o admirável acordeão, o balanço, sempre o balanço – Fausto tinha um sentido de ritmo quase africano, que em nada devia a Zeca, por mais que pareça quase sacrilégio dizer isto; mas é mais absoluta verdade: talvez ninguém tenha sido tão bom a criar ritmos de embalar, roliços, simultaneamente dançáveis e mornos como Fausto (grande, grande Fausto) foi.
E como se resiste à africaníssima Foi Por Ela (“foi por ela que eu já danço a valsa em pontas / que já passei as minhas contas / foi por ela”), com aquela guitarra gingona e os assomos de flautas, que dá lugar à espantosa Prego a Fundo? Como se resiste a Europa, Querida Europa, com aqueles pianos delicados? É um Fausto politizado, o que surge em Para Além das Cordilheiras, como não raro Fausto era – e era-o com uma simplicidade desarmante – em Rosalinda, canção do ótimo Madrugada dos Trapeiros, ele tornava uma simples balada, aparentemente inocente, num panfleto ambientalista e possivelmente anti-capitalista:
“Rosalinda
se tu fores à praia
se tu fores ver o mar
cuidado não te descaia
o teu pé de catraia
em óleo sujo à beira-mar
a branca areia de ontem
está cheiinha de alcatrão
as dunas de vento batidas
são de plástico e carvão (…)”
Fausto podia ser político, podia ser épico, podia ser amoroso, era sempre inquisitivo e era tudo isto enquanto respigava o folclore português e o fundia com a música africana de que tanto gostava e que lhe saía com naturalidade: A Preto e Branco, de 1989, acaba com a extraordinária Quando Eu Morrer, e aquela guitarrinha e aqueles coros são africanos até ao tutano e no entanto quando a re-escutamos agora pensamos que é uma só coisa – é Fausto, porque Fausto tinha esse condão dos génios de, roubasse o que roubasse, tornar tudo seu, o fado, o folclore, a marrabenta, o que fosse. O que ele fazia era música de autor a partir de música sem autor (o chamado folclore).
A origem desta tendência para a miscigenação talvez remonte ao próprio nascimento de Fausto, que veio ao mundo dentro do navio Pátria, numa viagem entre Portugal e Angola, acabando por ser registado em Vila Franca das Naves, Trancoso, em 1948. Foi aí que fundou a sua primeira banda, chamada Os Rebeldes, e que começou a unir a música portuguesa aos ritmos africanos, que marcam a sua obra.
Posteriormente, Fausto veio para Lisboa, para estudar Ciências Políticas e Sociais, uma influência que se nota em toda a sua obra. Um ano depois lançava o seu primeiro EP, Fausto, mas só voltou a editar em 1974, com P’ró Que Der e Vier. Por essa altura fundou o GAC, com José Mário Branco, entre outros.
Uma biografia de Fausto aproxima-se quase de um plágio à sua discografia – em parte devido à sua postura avessa a publicidade e qualquer tipo de manifestação pública: Fausto dava pouquíssimas entrevistas e às vezes escolhia dá-las a jornais da Galiza em vez de rádios ou televisões portuguesas. Essa ausência do espaço público talvez o tenha impedido de defender o resto da sua obra face a (e se havia coisa que o aborrecia era que o identificassem quase só como o autor de Por Este Rio Acima).
A obra, no entanto, defende-se sozinha: depois de uma primeira fase em que foi um cantautor politizado, como era timbre na época, rapidamente Fausto se estabeleceu como um escritor único, não só de letras como de melodias (era um melodista de exceção) e de ritmos. (Também era um ótimo arranjador ou, pelo menos, ótimo a contratar os arranjadores certos para as suas canções.) Uma canção tão simples como Era No Tempo dos Tamarindos, que abre A Preto e Branco, está acima de quase tudo o que quase todos fazem, e qualquer criador era capaz de dar um braço para escrever uma canção assim.
E há tanta coisa que não é tão falada e é extraordinária: tirem uns minutos da vossa vida para ouvir Ao Som do Mar e do Vento, de Crónicas da Terra Ardente, mais uma irresistível fusão do folcore nacional com música africana, marcada por aquela capacidade única de Fausto de tornar cada canção num épico (talvez o único homem a conseguir fazer épicos de canções dominadas por acordeões). Por Deus, parem em A Chusma Salva-se Assim e naqueles gritos “Cai ao mar, cai ao mar”. Como é que se resiste a isto?
Com o tempo, a sua influência fez-se notar nas gerações seguintes: toda aquela malta nascida da FlorCaveira é claramente marcada pela música de Fausto – a Luzia, canção dos Diabo na Cruz, é praticamente uma homenagem a Fausto, e uma tremenda homenagem (já que é uma das canções mais belas na língua portuguesa). Mas toda essa gente – Samuel Úria, B Fachada, Filipe Sambado – tem a sua dívida para com Fausto.
A morte de Fausto é mais uma daquelas pequenas tragédias diárias, que provocam sofrimento nos que lhe são próximos (e nos fãs). Mas, como acontece por vezes com os mais extraordinários músicos, a música que compôs continuará a ser ouvida – seja em nome próprio (os seus discos serão escutados), ou no de outros (a sua influência nota-se e notar-se-á em discos que foram, estão a ou vão ser feitos).
Não teremos mais música nova de Fausto – mas a que temos é da melhor música alguma vez feita e não apenas em português.