O ano letivo de 2016/2017 foi um ano bem sucedido em termos de aproveitamento escolar: teve a mais baixa taxa de chumbos da última década, ao mesmo tempo que teve a maior taxa de conclusão do ensino básico (até ao 9º ano) nesse período. Ainda assim, a presidente do Conselho Nacional de Educação, Maria Emília Brederode Santos, está preocupada com as elevadas taxas de retenção: cerca de 30% dos alunos chumbaram pelo menos uma vez até aos 15 anos.
Nos últimos anos, a taxa de chumbos tem tido uma evolução positiva em todos os ciclos do ensino básico, mas os níveis continuam a ser particularmente altos nos anos de transição entre ciclos, como o 5.º e 7.º ano, e também no 2.º ano (quando se podem chumbar os alunos pela primeira vez). Estes factos levam a presidente do CNE a considerar que “a própria organização do sistema deveria ser repensada e as didáticas mais fortemente apoiadas”.
Aos jornalistas, durante a apresentação do relatório anual sobre o estado da educação, Maria Emília Brederode Santos disse que um dos pontos a avaliar nessa possível reorganização é a remodelação do 2.º ciclo, embora não tenha explicado como. O objetivo é reduzir a taxa de retenções. O Observador quis ouvir pessoas ligadas à educação para perceber até que ponto faz sentido acabar com o 2.º ciclo e se isso levaria a uma redução do insucesso escolar.
Faz sentido ter três ciclos no ensino básico?
O ensino básico em Portugal, do primeiro ao nono ano de escolaridade, está dividido em três ciclos: os quatro anos da antiga escola primária, os dois anos do antigo ciclo preparatório e mais três anos que, no passado, já fizeram parte do ensino secundário. Esta terça-feira, a presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Maria Emília Brederode Santos, defendeu que a organização em três ciclos deveria ser repensada, em particular a existência do 2.º ciclo que tem apenas dois anos — um de entrada e outro de saída.
O 2.º ciclo do ensino básico, que inclui o 5.º e o 6.º ano, é um assunto mal resolvido, mas não é de agora. “Foi um ciclo criado para reforçar a escolaridade de seis anos, adotada em 1964, e depois nunca se resolveu”, disse ao Diário de Notícias David Justino, ex-ministro da Educação e, então, presidente do CNE, em 2016. Este ciclo preparatório do ensino secundário serviria de transição entre o ensino primário (até à então quarta classe) e o ensino secundário (o agora sétimo ano).
Era uma ideia experimental que foi ficando, disse ao Observador Joaquim Azevedo, professor da Universidade Católica Portuguesa. Com a Lei de Bases do Sistema Educativo, criada em 1986, perdeu-se a oportunidade de decidir se este ciclo era incluído no ensino primário ou não. Acabou por ficar pendurado e autónomo. A discussão sobre a alteração da organização dos ciclos começou logo no final dos anos 1990 e chegou mesmo a ser votada em Assembleia da República, em 2004, quando David Justino tutelava essa pasta. Mas a Lei de Bases da Educação, que alterava a lei de 1986, acabou por ser vetada pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, que defendia que era preciso um consenso parlamentar mais alargado para um compromisso que se quer para muitos anos. Na altura, só a coligação PSD/CDS-PP votou a favor.
À semelhança do que era defendido nessa proposta de alteração à lei de bases, Joaquim Azevedo defende que o primeiro ciclo de ensino tenha seis anos, porque a infância só termina aos 11 ou 12 anos e não faz sentido obrigar a criança a uma transição tão grande aos 9 anos — mudar de um professor na escola primária para muitos professores com disciplinas específicas a partir do 5.º ano. “Perturba o desenvolvimento”, disse o especialista em políticas de educação. “A maior parte dos países resolveu a questão mantendo o ensino primário a acompanhar a infância, mas em Portugal não se resolveu no momento certo.”
Quem tem a responsabilidade de promover esta alteração é a Assembleia da República, afirmou Joaquim Azevedo, que acusa os sindicatos dos professores de serem os principais opositores a esta mudança. Ter um ciclo de seis anos poderia implicar que os professores do 5.º e 6.º ano passassem a trabalhar por áreas de saber e não por disciplinas e os sindicatos preocupam-se com a perda de lugares para professores nas escolas. A verdade, diz Joaquim Azevedo, é que “não existem estudos sobre as implicações da afetação dos lugares dos professores” caso estas alterações aconteçam. Logo, não se sabe se poderá ser prejudicial para os professores ou não.
João Dias da Silva, secretário-geral da Federação Nacional da Educação (FNE), confirmou ao Observador que a mudança dos grupos de recrutamento — professores de 1.º e 2.º ciclo a serem recrutados num único ciclo — poderia ter consequências para os professores, nomeadamente na previsibilidade da colocação. No entanto, “não é a questão determinante”, afirmou. “Não são os interesses dos professores que estão em causa, mas o que é melhor para os alunos.” Certo é que os professores têm de estar convencidos das vantagens das mudanças porque são eles que as vão implementar.
A proposta de alteração da lei de bases não se focava só os seis anos de ensino básico, sugeria também um ciclo de seis anos para o ensino secundário. Uma ideia que também é defendida por Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas. “Esta discussão tem de ir até ao secundário”, disse ao Observador. “Porque o modelo de acesso ao ensino superior dá primazia aos exames. O secundário é um ciclo perdido, porque os alunos só se preocupam em ’empinar’ para os exames nacionais.”
Joaquim Azevedo e Filinto Lima concordam que este tema merece uma discussão séria e alargada, porque é preciso mexer nos alicerces do sistema educativo. Ambos referem que seria a melhor solução para os estudantes, em particular para os alunos nos primeiros seis anos do ensino básico.
Acabar com o ciclo de dois anos diminuiria os chumbos?
As dificuldade apresentadas pelos alunos nos anos de transição, como o 5.º e o 7.º ano, são um dos motivos que justificam as propostas de alteração que têm surgido nos últimos cerca de 30 anos. Com um único ciclo do ensino básico, até ao 6.º ano, e um ciclo de ensino secundário, do 7.º ao 12.º ano, passaria a haver apenas um ano de transição. Se tudo corresse bem, os alunos chegariam muito melhor preparados a esta fase.
Mas se diminuir a transição entre ciclos, como a que acontece entre o 4.º e o 5.º ano — do primeiro para o segundo ciclo — é uma ideia bem acolhida por Joaquim Azevedo e Filinto Lima, o mesmo não podem dizer sobre a ideia de que eliminar as transições faça diminuir os chumbos, como propôs Maria Emília Brederode Santos na apresentação do relatório “Estado da Educação 2017”. Citada pela Agência Lusa, a presidente do CNE disse que a existência do 2.º ciclo “não é uma boa prática” tendo em conta o elevado número de reprovações, mas o professor da Universidade Católica e o presidente da Associação de Diretores de Agrupamentos não concordam que a alteração dos ciclos tenha uma influência direta nas taxas de retenção.
A reorganização dos ciclos de ensino não pode ser feita a pensar na diminuição dos chumbos, “deve ser feita tendo em conta os princípios educativos e de desenvolvimento das crianças”, afirma Joaquim Azevedo. Saber porque é que os alunos reprovam de ano é um assunto completamente diferente, depende das crianças, das condições em que vivem, das escolas e das práticas pedagógicas.
Por sua vez, o ministro da Educação, na reação à ideia, lembra que as taxas de retenção no 2º ciclo do ano letivo de 2016/2017 são muito inferiores às de 2012/2013 — quando se atingiram os níveis mais altos dos últimos 10 anos. “Não nos parece, pelos números que vemos, que este 2.º ciclo tenha uma implicação na reprovação e cultura de retenção, como é dito”, disse Tiago Brandão Rodrigues, que lembra que é preciso “mitigar os efeitos de mudar de escola, mudar de ciclos, de mudar da monodocência para a pluridocência”.
Ministro da Educação contesta que 2.º ciclo tenha impacto na “cultura” do chumbo
É certo que a transição do 4.º para o 5.º ano pode ser perturbadora para algumas crianças, mas isso acontece porque as crianças já trazem dificuldades do primeiro ciclo, garante Joaquim Azevedo. “Os professores dizem que os alunos vêm mal preparados”, confirma Filinto Lima. E isso pode justificar porque é que o 5.º ano tem um taxa tão elevada de retenções. Mas a taxa de chumbos mais alta continua a ser a do 7.º ano e aqui, mesmo com a alteração dos ciclos de ensino, continuaria sempre a existir uma transição entre o 6.º ano (do ciclo do ensino básico) com o 7.º ano (do ciclo do ensino secundário).
Um ciclo de seis anos poderia, eventualmente, diminuir os chumbos no 7.º ano, mas não pela medida em si, diz Filinto Lima. Se houvesse uma visão mais integrada do ensino não superior, se a avaliação fosse pensada ao nível de cada ciclo e se os alunos terminassem o primeiro ciclo de ensino (os tais seis anos) com os conhecimentos básicos bem consolidados, aí sim, seria possível acreditar que as retenções iriam diminuir.
Também é por isso que Joaquim Azevedo defende que se devia dar mais atenção ao que acontece às crianças no 1.º ciclo. “Se as dificuldades de aprendizagem não ficam resolvidas duram toda a vida. Se os alicerces não forem bem construídos à partida, nunca mais se vai resolver.”
Devia acabar-se com a possibilidade de chumbar alunos?
Na introdução ao relatório sobre o estado da educação, Maria Emília Brederode Santos critica a “cultura de retenção” e diz que é “incompatível com o direito de todos a uma educação de qualidade”. Filinto Lima coloca o problema de outra forma: “Se houvesse uma educação de qualidade, não deveria haver retenção”. E questiona mesmo: “O que é uma educação de qualidade?”. Para o diretor do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, é ter um ensino mais personalizado, com turmas mais pequenas no 1.º ciclo — que tenham muito menos do que os 24 alunos permitidos — e sempre com dois professores na sala de aula (o professor que acompanha a turma e mantém o vínculo pedagógico, auxiliado pelo professor da área de especialidade que estiver a ser tratada). “Um primeiro ciclo bem feito iria reduzir substancialmente os chumbos nesse ciclo e nos ciclos seguintes.”
“A prática da retenção e repetição de ano revela-se ineficaz e pedagogicamente inútil”, escreve a presidente do CNE, citando o projeto aQeduto — Avaliação, qualidade e equidade em educação. “O chumbo é, normalmente, desmotivador”, concorda Filinto Lima, acrescentando que as escolas e professores “devem fazer tudo por tudo para que o aluno tenha sucesso” — mas um sucesso real, não uma passagem administrativa (em que mesmo sem notas para passar, os professores decidem não chumbar o aluno). E apoiar os alunos passa por muito mais do que o trabalho que é feito no contexto de sala aula, diz o diretor do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos. As tutorias — uma estratégia de apoio e orientação pessoal e escolar do aluno —, o desporto escolar ou outras formas de envolvimento do aluno com a escola podem ajudar a que se sinta mais motivado para prosseguir os estudos e conseguir ter melhores resultados. “Os alunos não são burros”, afirma Filinto Lima. “Os alunos são espertalhões e, se forem devidamente acompanhados, têm sucesso.”
Maria Emília Brederode Santos critica não só a existência de retenção, como que esta comece tão cedo. O único ano em que as crianças não podem chumbar é no 1.º ano, mas a taxa de retenção no 2.º ano — a mais alta de todo o 1.º ciclo — revela que muitos alunos não estão preparados para avançar. Joaquim Azevedo admite que pode fazer sentido reter crianças em alguns anos da escola primária porque há alunos que demoram mais do que quatro anos para consolidar as aprendizagens básicas, como aprender a ler e escrever, saber calcular ou conhecer o meio que nos envolve. O que não pode é haver crianças que chegam ao final do 2.º ciclo com dificuldades nessas áreas. Com o formato atual do 2.º ciclo, os professores do 5.º e 6.º ano não têm tempo para ajudar os alunos a adquirir essas competências básicas. Um ciclo de seis anos daria mais tempo para que essas aprendizagens fossem melhor consolidadas.
Para Joaquim Azevedo e Filinto Lima, é claro que não se pode simplesmente acabar com os chumbos, o que se pode é melhorar a qualidade do ensino para aumentar o sucesso escolar e, aí sim, diminuir o abandono, o insucesso e as retenções. E melhorar a qualidade do ensino passa por fazer mudanças na organização, quer na estrutura dos ciclos, quer, por exemplo, na flexibilidade dos currículos.
As escolas têm capacidade para estas alterações?
“Nunca estamos preparados para a mudança”, diz Joaquim Azevedo, que acredita, no entanto, que as escolas tenham capacidade para se adaptar. Em termos de infraestruturas será o mais fácil. Quanto ao resto, como o número de professores por ciclo, as áreas de conhecimento ou as cargas horárias, é preciso desenhar cenários, investigar as implicações práticas de cada um desses cenários e chegar a um modelo. Tendo esse modelo, é preciso traçar um plano para a mudança, porque não vai acontecer de um dia para o outro.
João Dias da Silva reforçou que é um processo complexo e que a mudança, a acontecer, deve ser lenta e progressiva. O secretário-geral da FNE não nega que o debate possa ser feito, mas considerou que “não é um debate urgente”. É preciso identificar o melhor caminho, definir as condições de alteração e conseguir um amplo consenso que garanta a durabilidade da mudança, porque não se devem fazer alterações a cada ciclo político.
Para os primeiros anos, Joaquim Azevedo defende que deveriam existir mais professores aproximando-se mais do que acontece hoje em dia com o 2º ciclo, mas, por outro lado, o 5.º e 6.º ano deveriam ter uma estrutura mais próxima do 4º ano do que do 7º. Filinto Lima acrescenta que, a partir do 3.º ano, os alunos deveriam ir além da língua portuguesa, matemática e estudo do meio, e incluir outras áreas do conhecimento. Como as competências dos professores passariam a estar relacionadas com áreas do saber e não com disciplinas, isso implicaria, necessariamente, uma alteração dos cursos no ensino superior, o que obrigada a um envolvimento das universidades e reitores neste processo. As mudanças da formação inicial e contínua dos professores também são uma das preocupações apontadas por João Dias da Silva.
Mas antes de perguntar se as escolas estão preparadas para a mudança, é preciso perguntar se o Governo e os restantes partidos com assento parlamentar estão preparados para a mudança, porque incluir o 2.º ciclo num 1.º ciclo de seis anos implicaria uma mudança à Lei de Bases do Sistema Educativo. Em 2016, pais, professores e diretores de escola já se tinham mostrado a favor da alteração para dois ciclos de seis anos cada um.
Ano letivo de 2016/17 com valor mais baixo de “chumbos” da última década
Ter um 2.º ciclo de dois anos é uma “originalidade portuguesa”?
“O 2.º ciclo é uma originalidade portuguesa”, disse a presidente do CNE à agência Lusa. “Só nós é que temos aqueles dois anos: que é um ano para entrar e um ano para sair e já se viu que não é uma boa prática.”
A forma como estão estruturados os ciclos do ensino obrigatório (até ao 12.º ano) e os currículos associados até podem ser uma ideia exclusivamente portuguesa, mas existem outras originalidades e muita diversidade em termos europeus, como mostra o relatório da rede Eurydice da Comissão Europeia, um organismo que fornece informações sobre os sistemas educativos de 38 países (os 28 Estados-membros da União Europeia mais 10 países que participam no programa Erasmus+).
Para o ano letivo de 2018/2019, a rede Euridyce analisou 43 sistemas educativos destes 38 países e classificou-os em três grupos principais:
- Aqueles cujo ensino é contínuo sem distinção entre ciclos, como na Dinamarca ou na Letónia;
- Aqueles que depois do ensino primário entram num primeiro nível de ensino secundário (que corresponde ao nosso 3.º ciclo) que é comum a todos os alunos, como em Portugal ou no Reino Unido;
- E aqueles que o primeiro nível do ensino secundário já é diferenciado e especializado, como na Alemanha ou na Áustria.
Apesar de considerar que, do 1.º ano ao 9.º ano, Portugal tem três ciclos de ensino básico, a Eurydice, baseada na Classificação Internacional Tipo da Educação, considera que o 3.º ciclo é a primeira etapa do ensino secundário e que o 1.º e 2.º ciclo, entre os seis e os 12 anos, fazem parte do ensino primário. Tendo esta classificação em conta, Portugal não é o único com mais do que um ciclo no ensino primário: França tem dois ciclos, um de três anos e outro de dois, entre os seis e os 11 anos de idade, e o Luxemburgo tem três ciclos, de dois anos cada um, entre os seis e os 12 anos.
A Eurydice assume que o normal é que o ensino primário tenha seis anos, mas assinala que o número de anos pode variar entre os quatro e os sete. Entre os países cujo ensino primário não chega aos 12 anos de idade está o Chipre, que termina aos onze anos e meio; Itália e Inglaterra, onde termina aos 11; Alemanha e Áustria aos 10 anos; e Turquia aos nove anos e meio. Comum a todos os países é a frequência obrigatória pelo menos até aos 15 anos de idade (14,5 no caso da Sérvia).