Há duas semanas, Celina Pereira, 65 anos, fechou o salão de cabeleireiro de que era proprietária, no Chiado, em Lisboa. “Não havia trabalho. Na primeira semana em que abrimos, após o confinamento, tivemos muitos clientes, muitas pessoas desejosas de ter o cabelo arranjado. Mas depois acabou“, conta ao Observador. Os clientes têm “medo do vírus” e “há muita incerteza — não sabem se os filhos ficam sem emprego e se têm de os ajudar”. E muitos dos que vinham de transportes públicos, a forma mais fácil de ali chegar — pelo menos desde que o estacionamento na rua ficou vedado aos não-residentes —, evitam agora esses meios de transporte.
Além de portugueses, os turistas representavam uma fatia significativa de quem procurava o salão. E também estes agora escasseiam nas ruas de Lisboa. “Vêm com o dinheiro contado e não se querem expor“, salienta Celina. Com quatro funcionárias a cargo, a solução, logo no início da pandemia, foi o layoff simplificado e uma linha de crédito — mas o dinheiro “demorou imenso tempo a chegar”. “Usei o meu dinheiro para pagar Segurança Social e IVA, porque se tivesse dívidas não tinha direito ao apoio”.
Antes da pandemia, os rendimentos com o salão davam para pagar as despesas e abater no investimento feito pela empresária quando, em março do ano passado, se mudou para aquele espaço. Com a chegada do vírus, e a falta de clientes, a situação complicou-se. Perante estes encargos, Celina e o marido optaram por vender a casa e comprar outra, mais pequena. Se pensa em voltar a abrir o negócio daqui a uns tempos, quando a situação estiver mais calma? “Não é hipótese, é impensável abrir. Não estou com saúde“, lamenta a empresária, que o é desde 1982.
Menos encerramentos, menos nascimentos. É a incerteza
No caso de Celina Pereira, o negócio não aguentou o verão e a decisão foi definitiva. Como ela, estão outras empresas: segundo os dados da Informa D&B, de janeiro a agosto deste ano foram 7.684 a cessar atividade. Poderia esperar-se, num contexto de pandemia, que o número excedesse os do ano passado. Mas não: os encerramentos diminuíram 15,8% do que no mesmo período de 2019 (nesses meses, fecharam portas 9.865 empresas).
Esta diminuição não é necessariamente positiva, mas o resultado de “grande incerteza” — até porque também há menos empresas a nascer.
“Não existe uma relação de causa e efeito entre os dois fenómenos [nascimentos e encerramentos], mas o motivo que está na origem de ambos é o mesmo. A Covid-19, e em especial o período de estado de emergência, provocou um alerta no tecido empresarial e nos empreendedores, que ficaram em suspenso”, diz ao Observador Teresa Cardoso de Menezes, diretora geral da Informa D&B.
Isto significa, por um lado, que muitas empresas que deveriam ter sido criadas nesse período “viram a sua constituição adiada ou eventualmente cancelada“. Por outro lado, as empresas que enfrentam dificuldades “também poderão ter adiado o seu encerramento” e veem até onde conseguem ir (por exemplo, com os apoios criados pelo Governo, como o layoff). “Muitas decisões foram adiadas em resultado de uma grande incerteza.”
Nos primeiros oito meses do ano foram constituídas menos 20,3% de empresas do que no mesmo período de 2019: se este ano nasceram já 24.104 empresas, no ano passado tinham sido, nos meses meses, 34.339. Regra geral, ainda antes da pandemia chegar oficialmente a Portugal, em março, já havia uma tendência menor de constituição de empresas. Mas a diferença atingiu outra dimensão em abril — a quebra face a abril de 2019 foi superior a 70%.
Desde então, “nota-se claramente uma recuperação“, refere Teresa Cardoso de Menezes. A partir de maio, os registos de novas empresas começaram a subir. E se olharmos só para agosto, a diferença nem é muito expressiva — nasceram 2.685 empresas, apenas menos 178 (6%) do que no mesmo mês de 2019.
Mas verifica-se uma tendência semelhante com as insolvências, que envolvem “alguma complexidade e diversos atores, entre eles os tribunais, que também viram a sua própria atividade muito afetada com a pandemia”. Nos primeiros meses da pandemia até houve um recuo face a 2019, mas a partir de junho já se registou um aumento em relação ao ano passado.
O embate foi maior na restauração e nos transportes. Houve alguma recuperação, mas veio para ficar?
Leopoldo Calhau, 44 anos, abriu o Bla Bla Glu Glu, um bar de snacks e vinhos, em agosto, como contou à Rádio Observador. As obras começaram a cerca de um mês do início da pandemia e o vírus parou a obra, que foi retomada no final de maio. A abertura aconteceu em agosto. “Preferi acabar a obra e lançar o projeto do que ficarem as coisas a meio”, explica.
O empresário é dono de um outro restaurante, a Taberna do Calhau, e refere que não foi fácil lidar com os efeitos do confinamento no negócio. “Tive de contrair empréstimos, dívidas que não estavam pensadas para pagar ordenados e a obra.” E deixa críticas: “Estou há 7 meses sem receber nada, pessoalmente. Como sócio-gerente de uma empresa fui marginalizado como muitos outros.”
A restauração foi um dos setores que, a par do alojamento, mais sentiu as consequências da pandemia. Segundo os dados da Informa D&B, nos primeiros oito meses do ano, nasceram no setor menos 34,4% de empresas do que no mesmo período do ano passado. Só em abril, porém, a quebra foi de 78,6%. Agosto já mostra alguma recuperação — nesse mês até nasceram mais 13,8% de empresas do que em 2019, mas, com a chegada do outono e do inverno, não é certo que esta evolução esteja para ficar. Até porque, só em agosto, os processos de insolvência no setor mais do que duplicaram (aumentaram 108,3%).
Este número foi ainda maior no setor dos transportes — 150% —, que, como relatam ao Observador João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio (CCP), e Jorge Pisco, presidente da Confederação das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME), ainda estão longe de recuperar. “Há empresas com carros parados”, explica Vieira Lopes.
Jorge Pisco acrescenta que o setor dos transportes de turismo está praticamente sem atividade: “As empresas de rent-a-car estão paradas, os autocarros de turismo estão parados. Há centenas e centenas [de empresas] que não trabalham. Mesmo as atividades com câmaras municipais, com escolas, não estão a acontecer”.
De janeiro a agosto, nasceram 1.509 empresas de transportes, uma quebra de 46,9% face às 2.844 que foram constituídas no mesmo período de 2019. Mas de todos os setores analisados pela Informa D&B foi o único que viu, nesses meses, subir o número de encerramentos — foram 378, um aumento de 8,3%.
Por outro lado, em agosto, os setores que em termos percentuais mais recuperavam nos nascimentos eram a indústria e a agricultura. Mas, se somarmos à equação os encerramentos, é na construção — um setor com encerramentos pontuais de atividade durante a pandemia, devido a surtos — que, em agosto, estavam a ser criadas mais empresas (8,5) por cada uma que encerra.
Em 100 empresas, apenas 1 fechou portas definitivamente
“Não ignoramos que é possível, que é provável, que algumas empresas não consigam aguentar e que, com isso, haja um crescimento de insolvências e um crescimento do desemprego.” Quando o Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou uma quebra de 16,5% do PIB português no segundo trimestre do ano, o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, antecipava assim o encerramento de “algumas empresas”, apesar da “ligeiríssima recuperação” da economia em junho. Uma situação “lamentável, mas expectável”, motivada pela pandemia.
“Perante a magnitude da quebra da receita, todos os apoios públicos são insuficientes. Nós não conseguimos compensar as empresas, manter o nível das receitas das empresas àquele que anteriormente tinham. O que estamos a tentar fazer é disponibilizar às empresas portuguesas um conjunto e uma panóplia alargada de apoios que poderão escolher em função da sua situação específica”, disse aos jornalistas, em reação aos números do INE.
Para já, o encerramento definitivo de empresas tem sido “muito residual”. É essa a conclusão do Banco de Portugal, num inquérito a mais de 8.800 empresas, realizado em julho. “Quanto ao encerramento definitivo, a evidência aponta para uma percentagem muito residual de empresas nesta situação (cerca de 1%), destacando-se as de micro dimensão e do Alojamento e restauração”, pode ler-se. Entre as principais razões para o encerramento definitivo estão “as restrições existentes durante o estado de emergência e a quebra na procura”. O número pode, porém, ser superior (o inquérito é feito apenas a uma amostra).
Os encerramentos temporários foram mais comuns. “A proporção de empresas encerradas temporariamente foi significativa em abril (16%), reduzindo-se gradualmente desde então (mais notoriamente a partir da primeira quinzena de maio)”. Já na primeira metade de julho, apenas cerca de 1% das empresas se encontrava encerrada temporariamente.
O último trimestre traz “preocupação”. “O Inverno vem aí”
Jorge Pisco, presidente da Confederação das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME), defende ao Observador que o pior está para vir. Muitas empresas estiveram fechadas durante o confinamento e reabriram a partir de maio para ver como o negócio reagia. Em muitos casos, os meses de verão trouxeram alguma atividade, mas menos do que em anos anteriores — e não suficiente para compensar as perdas. Os próximos meses não se afiguram mais positivos. Até pelo contrário, diz.
“Muitas empresas podem agora ter de encerrar“, prevê Jorge Pisco. É que as obrigações fiscais e contributivas que foram antes adiadas começaram, no segundo semestre do ano, a terem de ser pagas. É o caso das contribuições para a Segurança Social — parte destes montantes pôde ser adiado para a segunda metade do ano (de julho a setembro, ou de julho a dezembro) — ou do pagamento por conta de IRC — para algumas empresas, o primeiro e o segundo pagamentos por conta deste ano podem ser pagos depois da data prevista e até à data limite de pagamento do terceiro pagamento (15 de dezembro).
Covid-19: despacho confirma suspensão do pagamento por conta para quase todas as empresas
“Ainda há aquelas empresas que estiveram na expetativa, que tentaram ver se se safavam no período do verão. Mas agora o Inverno vem aí”, afirma Jorge Pisco. A partir de outubro, considera, é que “vamos ter noção” do real impacto do novo coronavírus. “Aguardamos com preocupação este último trimestre.”
Foi a antecipar estas decisões que o Governo decidiu fazer mexidas no apoio à retoma progressiva (o sucedâneo do layoff simplificado), passando a permitir, por um lado, que as empresas com quebras superiores a 75% possam reduzir os horários a 100% e, por outro lado, que as que têm quebras entre os 25% e os 40% (e cujo acesso estava antes vedado) também tenham oportunidade de aderir ao apoio, com uma redução parcial dos horários. Só que estas alterações não são suficientes para convencer Jorge Pisco de que as suas previsões venham mudar muito. “Duvidamos que [os encerramentos] não venham a acontecer. Mas vamos ter de aguardar para ver.”