Fernando Távora ficou conhecido como um dos arquitetos mais importantes do Porto, cidade onde deixou marcas profundas. Fundador e mestre da chamada “Escola do Porto”, contribuiu para a afirmação da arquitetura como área de estudo no norte do país e para a criação da Faculdade de Arquitetura portuense, em 1979. Seguidor dos grandes nomes internacionais, procurou sempre fazer uma síntese entre a arquitetura tradicional portuguesa e a moderna. Sem nunca se sobrepor ao que já existia, encontrou sempre uma forma de harmonizar o espaço e criar um diálogo entre o passado e o presente, com os olhos no futuro. Foi professor de Álvaro Siza Vieira, com quem colaborou diretamente, e lidou de perto com Eduardo Souto Moura, que lhe chamou o “bisavô da Europa”, “uma figura histórica e universal”. Nos jornais, escreveu para dar voz à cidadania da arquitetura. Sobre si próprio disse um dia: “Eu sou a arquitetura portuguesa”.
Homem de muitas paixões, na vida de Fernando Távora não cabia apenas a arquitetura e o desenho. A descoberta de Le Corbusier e Picasso “marcaram o seu destino” — como escreveu o filho José Bernardo –, mas a de Fernando Pessoa — em quem soube reconhecer o génio antes do tempo — e a dos modernistas portugueses também. Colecionador ávido, começou muito cedo a juntar as peças de um gigantesco quebra-cabeças que continua por desvendar. Colecionava de tudo, compulsivamente, ao ponto de ter de esconder livros dentro de armários, debaixo da cama, e sobretudo longe do olhar atento da mulher, Maria Luísa Menéres, com quem partilhou mais de 50 anos de vida. Quando morreu, em 2005, e os filhos tiveram de levar a cabo a triste tarefa de desmantelar a sua casa e o seu escritório, encontraram a sua coleção espalhada por todo o lado. Porque houve uma altura em que o espaço deixou de ser suficiente.
A biblioteca, gigantesca, é apenas uma pequena parte daquilo que Fernando Távora reuniu ao longo dos anos, onde se incluem marfins, todo o tipo de objetos e fotografias antigas. Mas o grande tesouro da coleção do arquiteto portuense é outro — são os milhares de manuscritos de autores modernistas portugueses que começou a juntar quando estes eram conhecidos e admirados apenas por alguns. Naquela altura, “ainda havia muita gente” a “escrever de costas voltadas para Pessoa”, como explicou ao Observador Ricardo Vasconcelos, especialista na obra de Mário Sá-Carneiro que teve acesso ao espólio Távora. Só a “nata de intelectuais dessa época, dos anos 40 e 50”, é que “o conhecia, é que o procurava e o lia”. Fernando Távora, que nunca tentou fazer parte desses círculos, estava à frente do seu tempo. “Vê-se que havia uma sensibilidade estética muito forte. Havia um apelo às questões estéticas, por ter sido o arquiteto que foi, mas era evidentemente um grande leitor. Não procurava apenas os materiais de alguém que era famoso — começou a pegar num autor que apenas escritores conheciam e a sentir-se fascinado por ele quando era ainda muito jovem”, disse ainda Vasconcelos.
Foi exatamente por ter percebido, naquele tempo, a importância de determinados autores, que o arquiteto portuense conseguiu adquirir documentos que são hoje peças únicas e fundamentais no entendimento do modernismo português. Comprava-os em alfarrabistas que visitava à tarde, depois das aulas (que dava na Universidade do Porto), ou aos fins de semana. Os preços eram muitas vezes modestos e não tinham nada a ver com os que são hoje praticados. À noite, quando se sentava na poltrona da sua biblioteca, lia e relia o que tinha comprado durante o dia. Tomava notas em pequenos papéis, espalhados por toda a coleção e que servem de guia a quem neles esbarra. Desenhava e pensava. Pensava muito. Quando estava demasiado cansado para continuar, fechava os olhos e dormia durante uns minutos. Quando acordava, retomava o trabalho, “descobrindo sempre novas relações entre os livros e os seus autores, os seus desenhos e os projetos que entretanto ia desenvolvendo”, escreveu o filho, José Bernardo, no texto “Fernando Távora: um homem de paixões”.
Enquanto foi vivo, Fernando Távora nunca recusou emprestar um livro, um documento ou um manuscrito. Entre as suas notas é ainda possível encontrar vestígios destes empréstimos. Chegou até a organizar uma exposição com parte da sua coleção, no âmbito do Primeiro Congresso Internacional de Estudos Pessoanos no Porto, em 1978. Quando morreu, o seu tesouro foi esquecido. Durante mais de dez anos, ninguém procurou o que o arquiteto tinha colecionado, ninguém mostrou interesse. A família não entende porquê — as portas nunca estiveram fechadas. Só recentemente, graças ao trabalho de um grupo de investigadores ligados à Pessoa Plural, uma revista internacional de Estudos Pessoanos, é que o espólio de Fernando Távora começou, a pouco e pouco, a ser redescoberto.
A descoberta de um tesouro perdido
Foi em meados de 2016, quando preparava a edição crítica dos poemas de Mário de Sá-Carneiro, que Ricardo Vasconcelos soube da existência da coleção Fernando Távora. Apercebendo-se de que o espólio do arquiteto tinha documentos que lhe interessavam, entrou em contacto com os herdeiros, que o autorizaram de imediato “a consultar tudo o que tinham”. O que o professor da San Diego State University, nos Estados Unidos da América, não esperava era que o “tudo” fosse “imenso”. “Nessa altura, fiquei de facto fascinado com a dimensão e qualidade da coleção”, admitiu ao Observador. “É riquíssima, muito centrada em Pessoa e Sá-Carneiro, mas também com grande relevo para o estudo de Raul Leal.”
Perante a riqueza da coleção, demasiado grande para um homem só, Ricardo Vasconcelos decidiu entrar em contacto com Jerónimo Pizarro que, por sua vez, entrou em contacto com outros especialistas em Fernando Pessoa e no modernismo português. Formou-se então um grupo de estudo — composto pelo investigador colombiano, pelo brasileiro Carlos Pittella e pelos portugueses José Barreto, Filipa de Freitas, Patrícia Silva e Fernanda Vizcaíno –, que começou a visitar a casa do arquiteto ainda no ano de 2016. O processo de consulta foi acompanhado de perto pelo filho de Fernando Távora, José Bernardo Távora, também arquiteto de profissão. “Passou lá o tempo connosco e foi de uma incrível amabilidade”, afirmou Ricardo Vasconcelos, lembrando que José Bernardo sempre fez questão de falar do pai “como colecionador”, um apaixonado por arquitetura, arte e literatura.
Jerónimo Pizarro, que “mesmo estando em Bogotá” arranjou “maneira de ir duas ou três vezes ao Porto”, classificou a experiência como “muito importante”, admitindo que não ficava tão impressionado com uma coleção desde que entrou em contacto com a de José Blanco, “que não é tanto colecionador de manuscritos”, mas mais de livros. Mas houve um lado menos bom: “A mulher do arquiteto Fernando Távora morreu quando estávamos a trabalhar no arquivo”, contou Pizarro, explicando que a consulta decorreu “antes e depois da morte” de Maria Luísa Menéres, numa altura muito complicada para a família. Ainda assim, o trabalho não parou: durante dois dias, ele e os restantes investigadores, consultaram “milhares” de manuscritos e digitalizaram, “pelo menos, cerca de mil páginas”, garantiu Ricardo Vasconcelos. Só Carlos Pittella terá visto cerca de “mil papéis”, como o próprio confessou ao Observador.
Isto só foi possível graças à grande generosidade da família de Fernando Távora, que deixou os investigadores à vontade para continuarem a consultar os manuscritos. José Bernardo deu-lhes a chave de casa e mais não pôde fazer, como o próprio admitiu ao Observador. “Tivemos uma pessoa de uma generosidade difícil, difícil de encontrar, que manteve [as portas abertas] antes e depois da morte da mãe. Tenho a melhor opinião humana do José Bernardo Távora”, afirmou Jerónimo Pizarro, editor e cofundador da revista Pessoa Plural, onde colaboram regularmente os investigadores que viajaram com ele até ao Porto. “Não só acompanhou o trabalho de um dos maiores arquitetos da cidade do Porto, como ainda conseguiu valorizá-lo”, acrescentou Pizarro. Juntamente com as irmãs, José Bernardo “soube conservar a memória do pai”, tornando-se a sua coleção acessível “ao mundo todo” através da doação das “suas coisas de arquitetura” a uma fundação e da abertura da “coleção às pessoas e à pesquisa”.
Mas o que é que tem exatamente esta coleção? E o que é que a torna única? Por um lado, existe Mário de Sá-Carneiro. Quando consultou o espólio do arquiteto portuense, em 2016, Ricardo Vasconcelos chegou mesmo a encontrar alguns inéditos do autor de Dispersão, incluindo “um núcleo de cartas” sobre os manuscritos que o escritor deixou no quarto de hotel de Paris onde cometeu suicídio. Apesar de não desvendarem o mistério do paradeiro dos documentos, estas missivas oferecem novos pormenores sobre o que se passou logo após a morte de Sá-Carneiro, a 26 de abril de 1916. Além destas — datadas dos anos que se seguiram ao suicídio do poeta –, a coleção do arquiteto Fernando Távora inclui ainda “correspondência familiar e pessoal”, até há pouco tempo inédita, nomeadamente cartas de Sá-Carneiro para o avô paterno, José Paulino de Sá Carneiro (sem hífen), com quem tinha uma relação muito próxima.
Este núcleo é composto por 21 postais e cartas, escritos entre 13 de agosto de 1904, quando o escritor era adolescente, e 31 de dezembro de 1915, poucos meses antes da sua morte. Além de ajudarem a “perceber muitas das viagens que Sá-Carneiro fez quando era criança”, na companhia do pai — como explicou Ricardo Vasconcelos –, estas missivas têm também interesse literário, já que o poeta tinha o hábito de enviar “cópias de poemas” ao avô, pedindo-lhe a sua opinião. Não era apenas com Fernando Pessoa que Mário de Sá-Carneiro ia partilhando o que ia escrevendo.
É Pessoa, por quem Fernando Távora tinha uma admiração imensa, que ocupa o centro da coleção. Ao longo de várias décadas, Távora foi reunindo toda a espécie de documentação relativa ao poeta, quando esta era ainda relativamente barata e fácil de encontrar: livros dele e sobre ele, manuscritos, documentos datilografados e impressos, poesia, correspondência e até fotografias (incluindo uma cópia da famosa fotografia do “flagrante delitro” no Abel Pereira da Fonseca, que desencadeou a segunda fase do namoro com Ofélia Queiroz, em 1929, autografada pelo próprio Pessoa). Entre as centenas de documentos que reuniu, havia um que guardava com especial carinho: um pequeno papel com as palavras “Para Fernando Pessoa, o Maior”. A folha não está assinada, mas o arquiteto julgava saber quem tinha sido o seu autor: Mário de Sá-Carneiro.
“Era um pessoano absoluto, apaixonado e incrivelmente informado”, salientou Ricardo Vasconcelos em conversa com o Observador. E foi-o antes de todos: começou a ler e a estudar Fernando Pessoa nos anos 40, quando este era apenas conhecido num meio “relativamente restrito”. Isso mostra a inteligência e a sensibilidade de um homem à frente do seu tempo, que foi acima de tudo, um grande pensador. Como escreveu Vasconcelos para um número especial da revista Pessoa Plural: “Bem cedo o colecionador teve uma consciência clara da profundidade da linguagem e do pensamento pessoanos, que o levou a procurar recolher o maior número possível dos seus escritos, muitas vezes acercando-se daquelas pessoas que com o autor dos heterónimos se tinham comunicado diretamente, como João Gaspar Simões”. Terá sido, aliás, através do escritor e cofundador da revista presença que muitos dos documentos de Pessoa e outros autores chegaram às mãos de Fernando Távora, direta ou indiretamente.
O núcleo mais importante é contudo aquele que diz respeito a Raul Leal, escritor português conhecido pela participação no número dois da revista Orpheu e pelo envolvimento na polémica da chamada “Literatura de Sodoma”. “Fernando Távora adquiriu o espólio de Leal, que é uma espécie de nova arca — mas não no estilo de Pessoa — com manuscritos maioritariamente originais e alguns deles inéditos”, explicou Ricardo Vasconcelos, que foi editor convidado do número da Pessoa Plural dedicado à coleção Fernando Távora. “Há cópias de correspondência, rascunhos que Leal foi guardando e há coisas que são novas.” São centenas e centenas de documentos, maioritariamente inéditos, que se julgaram perdidos durante 40 ou 50 anos. Até que Ricardo Vasconcelos foi bater à porta da família do arquiteto portuense. Estes estavam guardados em duas caixas de cartão e numa pasta, onde Fernando Távora arquivou os mais importantes. E ao lado de cada um deles, uma pequena nota, uma “folhinha a descrever tudo”, desde o local de compra ao conteúdo. “Era uma chatice quando não encontrava a folhinha. Quem me dera saber como é que aquilo tinha ido lá ter!”, lembrou o professor universitário.
A coleção inclui ainda manuscritos de Luís de Montalvor, Alfredo Guisado, José Régio, entre outros escritores portugueses. Até há coisas de Ronald de Carvalho, brasileiro que foi, juntamente com Montalvor, diretor do primeiro número de Orpheu, no qual participou com uma série de cinco poemas. “É muito vasta e essencialmente focada no modernismo. Inclui desde correspondência a manuscritos de poesia, muitas coisas são testemunhos de outros textos que já conhecemos, mas também há coisas inéditas”, disse o especialista na obra de Mário de Sá-Carneiro, fazendo notar a grande “sensibilidade” de Fernando Távora, “figura muito ampla, que vai da arquitetura ao desenho, passando pela literatura”, que “não procurava apenas os materiais de quem era famoso”.
Além dos documentos de diferentes escritores, a coleção inclui ainda “três grandes estantes de primeiras edições ou de edições raras associadas ao período do modernismo”. Este núcleo é tão importante que, nos anos 80, quando o estudo da obra de Fernando Pessoa e dos modernistas portugueses estava a dar os primeiros grandes passos, algumas editoras usaram os livros de Fernando Távora como fonte para edições fac-similadas. Távora foi também um colaborador incansável da Persona, a revista do Centro de Estudos Pessoanos da Faculdade de Letras do Porto (fundado por Arnaldo Saraiva), que foi, durante vários anos, a grande referência no estudo do modernismo em Portugal e que serviu de modelo à Pessoa Plural. “O que é interessante no caso de Fernando Távora, é que ele foi sempre partilhando os materiais com a crítica, com os estudiosos. É evidente o esforço que fez no início dos anos 80 para colaborar [com a Persona], para divulgar de forma desinteressada e para valorizar o que tinha, nomeadamente de Sá-Carneiro”, comentou Vasconcelos. Durante os anos que a Persona existiu, Arnaldo Saraiva divulgou vários manuscritos do autor de A Confissão de Lúcio que estavam na posse do arquiteto do Porto, nomeadamente dois postais que foram depois reproduzidos por Marina Tavares Dias na única fotobiografia do escritor.
O que também é interessante na coleção Fernando Távora é o facto de esta reunir muitas coisas cujo paradeiro era desconhecido. “Fernando Távora, tal como todos os colecionadores, desenvolveu uma coleção de grande profundidade e acabou por fazer um serviço comunitário, reunindo materiais que o tempo foi dispersando”, disse Ricardo Vasconcelos. “Foi isso que aconteceu com a correspondência de Sá-Carneiro para o avô, que lhe chegou às mãos em dois períodos diferentes — com coisas da infância e da idade adulta.” E foi por isto — e por muitas outras coisas — que os diretores da Pessoa Plural (Onésimo Almeida, Paulo de Medeiros e Jerónimo Pizarro) lhe quiseram prestar homenagem, dedicando-lhe o número 12 da revista.
Esta saiu em dezembro do ano passado, com o título New Insights into Portuguese Modernism from the Fernando Távora Collection. Foi quase exclusivamente dedicada ao espólio do arquiteto, dando a conhecer alguns dos manuscritos inéditos e assinalando “a necessidade e a oportunidade” de revistar o espólio de Fernando Távora, um dos mais importantes do género em Portugal, “com vista a desenvolver novas leituras do modernismo português” e dos seus principais intervenientes, sobretudo daqueles que, ao contrário de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e José de Almada Negreiros, nunca viram a sua obra estudada a fundo.
Com este número especial (e com o número que se seguiu, que inclui também muito material da coleção Fernando Távora), os diretores pretenderam também “salientar e perpetuar a ação de Fernando Távora, de divulgar nos anos 70 e 80 a obra de Pessoa e Sá-Carneiro, entre outros, junto de um público que ainda nem sabia o quanto precisava destes escritores e o quanto eles viriam a ser cruciais para a forma como os portugueses se leem e se veem a si mesmos”, escreveu Ricardo Vasconcelos na nota introdutória. Pioneiro “dessas pesquisas”, Távora foi responsável por abrir “várias linhas de leitura” inéditas, que “hoje são tidas como óbvias”. E isso é extraordinário.
De arquiteto para arquiteto, de pioneiro para pioneiro
Depois da viagem dos investigadores ao Porto, a coleção modernista do arquiteto Fernando Távora foi transferida da sua casa para a Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva (FIMS), instalada na Praça Marquês de Pombal da mesma cidade. Foi para aí que, em 2012, começou a ser transportado todo o espólio do arquiteto portuense, depois de um acordo de tratamento, estudo e divulgação ter sido firmado com a família, em abril de 2011. A doação da coleção Fernando Távora à FIMS foi um ato altruísta em memória de um homem altruísta, que nunca se inibiu de partilhar aquilo que tinha, que teve por objetivo precisamente possibilitar o seu estudo e consulta. Afinal, a arte não pertence a ninguém. Távora, que sempre trabalhou para o bem-estar dos outros, sabia disso melhor do que ninguém.
A fundação que recebeu a coleção Fernando Távora não é uma fundação qualquer. Oficialmente criada em 2009 (embora a sua história seja mais antiga), a FIMS tem como principal missão a “promoção científica, cultural, formativa e artística” (onde se inclui também a “classificação, preservação, conservação, investigação, estudo e divulgação”) do “património artístico e arquitetónico” de José Marques da Silva, um dos grandes nomes da arquitetura portuense, como explica o site da instituição. É também a cargo da fundação — instalada na antiga casa-ateliê de Marques da Silva — que estão os espólios da filha Maria José Marques da Silva (a primeira mulher a licenciar-se em Arquitetura no Porto) e do genro, David Moreira da Silva, também arquiteto, e de outros profissionais que marcaram a paisagem da cidade. Seria difícil encontrar um lugar mais adequado para receber a coleção Távora, cuja história está tão intrinsecamente ligada ao Porto.
Muito antes de existir o ateliê — projetado em 1909 –, existia o palacete do outro lado, que hoje também pertence à FIMS. Construído na década de 1870, com a fachada virada para o antigo Largo da Aguardente (hoje Largo Marquês de Pombal), numa zona estratégica do Porto por ordem de Narciso José da Silva, o edifício passou para as mãos dos Lopes Martins em 1886. Marques da Silva frequentava então a Academia de Belas-Artes do Porto e o seu destino ainda não se tinha cruzado com o da família de Santa Maria da Feira. Foi só mais tarde, já depois do seu regresso a Portugal após uma temporada em Paris (onde estudou na na École Nationale de Beaux-Arts, de 1889 a 1896), que José Marques da Silva conheceu Júlia, a “menina no palacete”. A mais velha de oito irmãos, Júlia Lopes Martins casou com Marques da Silva, quando ele já era um famoso arquiteto, em 1901.
Os anos que se seguiram, passados no velho palacete dos Lopes Martins, foram dos mais importantes na carreira de José Marques da Silva. Durante esse período, foi responsável por projetos como o Edifício das Quatro Estações (1905), o Teatro Nacional de São João (1910-1920), a conclusão do Palácio do Conde de Vizela (1920-1923), os liceus Alexandre Herculano (1914-1930) e Rodrigues de Freitas (1919-1933) e por várias casas de habitação unifamiliares, que consolidaram o seu prestígio como arquiteto do Porto. A sua primeira grande obra na cidade que o viu nascer foi, porém, a Estação de São Bento, erguida no local do antigo convento de São Bento de Avé-Maria, na Praça Almeida Garrett, no final da década de 1880 (foi na sequência desta que foi apontado responsável pela coordenação da implementação dos projetos da configuração da Avenida dos Aliados).
Foi depois de terminar o projeto das Quatro Estações, na Rua das Carmelitas, em 1905, que Marques da Silva deu início à construção do seu ateliê, num terreno contíguo ao do palacete dos sogros que pertencia ao tio de Júlia, José Lopes Martins. Projetada em 1909, a moradia é muito diferente do palacete de finais do século XIX. “As próprias casas são em si elementos e testemunhos muito importantes de dois momentos de conceção da habitação na cidade”, afirmou a assessora de produção e de comunicação da Fundação Marques da Silva, Paula Cristina Abrunhosa, que guiou o Observador pelos corredores dos dois edifícios numa tarde fria de fevereiro. O ateliê é mais moderno, espelhando a época em que foi feito e o arquiteto por ele responsável. Mas não é totalmente independente do palacete Lopes Martins, uma vez que foi construído para o complementar: “Toda a casa está orientada em direção ao palacete”, explicou Paula Abrunhosa, assinalando a existência de uma “divisória entre os terrenos porque, durante muitos anos, [as casas] foram núcleos autónomos”, ainda que pertencentes ao mesmo grupo familiar.
Além de ser o local onde José Marques da Silva passou grande parte da sua vida de casado (o arquiteto voltou a viver no palacete depois da morte da sogra, em 1943), a casa-ateliê foi o espaço onde exerceu um período importante da sua carreira profissional. Foi ali que vários arquitetos da geração seguinte, como Rogério de Azevedo, Manuel Marques, Homero Ferreira Dias, Ricardo Spratley, Bruno Reis ou Arménio Losa, completaram a sua formação e que Maria José Marques da Silva aprendeu o ofício, trabalhando de perto com o pai. Mas não foi apenas com aqueles com quem privou mais de perto que Marques da Silva deixou uma marca profunda. Depois da passagem pelo Instituto Industrial e Comercial do Porto, foi nomeado professor de arquitetura da Academia de Belas-Artes. Entre 1913 e 1939, assumiu a direção do organismo, onde tornou a “prática do projeto” o “motor do seu ensino, empenhado em transmitir processos metodológicos estáveis capazes de reagir às múltiplas solicitações da prática profissional”. “Foi uma estratégia que lhe garantiu a estima de várias gerações de arquitetos modernos que, partindo da base académica sedimentada por Marques da Silva, souberam reinventar a prática da arquitetura portuense”, refere o site da FIMS.
Marques da Silva morreu em 1947. O seu património foi herdado por Maria José. A arquiteta — a única herdeira depois da morte da irmã Amélia em 1944 –, que tinha “uma consciência muito grande da importância do património que tinha, acabou por tomar a decisão de fazer uma doação à Universidade do Porto”. Esta foi fortemente influenciada por António Cardoso (cujo espólio também pertence à FIMS), que se doutorou em História de Arte com uma tese sobre Marques da Silva, que viria a ser publicada em livro com o título O Arquitecto José Marques da Silva e a arquitectura no Norte do país na primeira metade do século XX.
A arquiteta queria que a Universidade do Porto criasse uma instituição para preservar a memória do pai, o que viria de facto a acontecer em 1996, com o nascimento do Instituto Arquitecto Marques da Silva. Maria José, contudo, não chegou a assistir a isso — morreu antes disso, em 1994, aos 80 anos. O marido, David Moreira da Silva, sobreviveu-lhe, vivendo até ao final da sua vida no palacete Lopes Martins. Foi só depois da sua morte em 2002, aos 93 anos, que a Universidade do Porto pôde ter “um contacto pleno” com o legado de Marques da Silva, quer em termos de espólio quer em termos patrimoniais (Maria José e David Moreira não deixaram descendentes). Depois de um longo e “silencioso” processo de “contacto, reconhecimento e inventariação”, começou a perceber-se que o organismo tinha “uma missão muito específica, muito concreta, e diferente daquilo que é o projeto académico da universidade”. O instituto transformou-se então “numa fundação para poder focar-se naquilo que é a sua área de atividade — os arquivos de arquitetura –, desenvolvendo depois toda uma atividade que passa pela preservação, pelo estudo, pela salvaguarda, pela cedência para investigação e depois com a contribuição para ações de divulgação”, explicou Paula Abrunhosa. Uma atividade que ganhou um primeiro grande impulso com a chegada da coleção Fernando Távora, em 2012.
Esse “primeiro grande momento”, como lhe chamou a assessora, ajudou “a cumprir um dos desígnios dos fundadores” — o de “começar a alargar este núcleo inicial”. “Foi isso que aconteceu com o arquiteto Fernando Távora que, pela sua importância, acabou por nos ajudar e por nos permitir consolidar um bocadinho os caminhos que estavam a ser percorridos”, afirmou Paula Abrunhosa. Sete anos depois, a FIMS conta com os espólios de outros nove arquitetos, como José Carlos Loureiro, Alcinho Soutinho, João Queiroz ou Manuel Teles. “Já temos um núcleo de arquitetos muito importante, que permite estabelecer pontos entre uns e outros, linhas cronológicas. Todos eles, com a honrosa exceção do José Porto, passaram pela Escola do Porto. Estamos a falar das gerações que se seguem [a Marques da Silva]. É muito interessante perceber os percursos que foram sendo desenvolvidos pelas pessoas que tiveram esta formação inicial em comum.” A ideia é continuar a crescer e transformar a FIMS num sítio de passagem obrigatória para quem quer estudar a arquitetura portuense.
“Venham, o caminho está aberto”
Há um bocadinho de Fernando Távora em quase todas as divisões da Fundação Marques da Silva, a começar pela antiga sala dos arquivos da casa-ateliê (que hoje tem mais ou menos a mesma finalidade). “Isto estava em dois caixotes enormes”, disse José Bernardo Távora, apontando para um conjunto de caixas de cartão com os manuscritos de Raul Leal, um dos tesouros do espólio, empilhadas junto à parede. “Temos aqui um pequeno problema: eu trato isto como se estivesse em minha casa e, portanto, não consigo usar luvas”, admitiu, enquanto pegava numa folha, escrita de uma ponta à outra, com as duas mãos. José Bernardo, que acompanhou o Observador na visita à FIMS, cresceu rodeado pelos papéis e livros do pai. O que enche agora os dois edifícios da fundação, faz também parte da sua história.
“Isto veio em bruto e começa agora a ganhar uma lógica”, disse José Bernardo, frisando que a documentação referente a Leal era, “aparentemente, completamente desconhecida”. Uma pequena parte das centenas de documentos que compõem o núcleo já começou a ser explorada e divulgada (o número 12 da Pessoa Plural contou três artigos dedicados ao escritor modernista e o novo número inclui outros dois), mas há ainda muito trabalho para fazer. Não se sabe, por exemplo, como é que o espólio foi parar às mãos do arquiteto. José Bernardo sabe apenas que o pai comprou “tudo a uma pessoa só” e que guardou os papéis em “duas caixas, que estavam no escritório”. Mas há-de haver uma nota a explicar tudo, tintim por tintim. “Ainda não a descobrir, mas há-de aparecer”, garantiu.
A seguir à sala dos arquivos da casa-ateliê, ficam as bibliotecas. “Há a biblioteca inicial de Marques da Silva, que começou a ser construída em finais do século XIX. E depois temos a joia da coroa, que é a biblioteca do arquiteto Fernando Távora”, composta por aproximadamente 3.800 exemplares. “Aqui temos a biblioteca que estava em sua casa, ali a biblioteca de arquitetura”, disse Paula Abrunhosa, chamando a atenção para as diferentes estantes de metal, coladas umas às outras. “E depois há bibliotecas dentro de bibliotecas.” O núcleo de arquitetura de Fernando Távora, por exemplo, inclui obras sobre Le Corbusier, Alvar Aalto, Frank Lloyd Wright e Mies van der Rohe, teses e dissertações académicas (relacionadas com o trabalho de professor e orientador), tratados e ainda livros que foram de Rogério de Azevedo, importante arquiteto portuense da primeira metade do século XX.
“Ele fez uma coisa interessante. A certa altura, disse: ‘Vou deixar de comprar livros de arquitetura contemporânea e vou começar a comprar os tratados, os livros antigos”, contou José Bernardo Távora, que ficou de comprar “o resto”. “Portanto, a minha biblioteca dos últimos 30 anos é complementar [a esta] e virá acabar esta.” Além dos livros que já estão na fundação do Porto, guardados junto às bibliotecas dos outros arquitetos, existem muitos outros, que ainda não foram levados para a FIMS: há os que foram adquiridos por Távora durante a sua formação — numa altura em que “leu tudo o que é possível e imaginável”, desde a filosofia à história de arte, passando pela história propriamente dita –, a chamada “biblioteca de literatura” e “uma parte final” de história de arte, que está na casa que tinha em Guimarães. Dezenas e dezenas de exemplares que mostram o amor que o arquiteto tinha aos livros e à leitura.
“Esta tem sido uma das nossas lutas”, afirmou José Bernardo Távora. “Não queremos fazer uma biblioteca única, por a, bê e cê, mas a biblioteca do arquiteto.” A ideia não é juntar todos os livros e criar uma biblioteca só — a biblioteca da Fundação Marques Silva –, mas sim mantê-los separados, no seu próprio espaço, e disponíveis para consulta. “Foi por isso que trouxemos a biblioteca toda e agora a de literatura. É a biblioteca do Fernando Távora, que engloba arquitetura, literatura, arte, história, filosofia… Uma série de áreas variadas”, explicou o também arquiteto. “No fundo, tudo isto é global. É muito difícil separar a biblioteca de arquitetura da de escultura, da de pintura; a biblioteca de arte portuguesa da de arte estrangeira ou contemporânea. Isto foi uma questão em que insisti muito — a biblioteca –, porque só assim é que ela realmente faz sentido. Era isso que se devia fazer, de uma forma geral, porque há mais casas destas que vão sendo desmanteladas ao pouco.” De acordo com José Bernardo, a biblioteca do pai “tem meia dúzia de peças extraordinárias”, que não chegam nem de perto ao valor da coleção de modernismo português. “O que é extraordinário é o conjunto e a relação entre as coisas”, frisou.
Para descobrir esta “relação entre as coisas”, basta seguir as indicações que Fernando Távora deixou nos pequenos papelinhos que podem ser encontrados por toda a coleção. ”Ele deixava sempre notas para depois as pessoas saberem [o que ler a seguir]. ‘Publicado aqui, publicado ali, visto isto, visto daquilo’… Para quem quiser estudar isto, é uma coisa realmente espantosa.” As notas, escritas nos “papéis que tinha à mão”, eram muitas vezes fruto de várias leituras, de várias noites passadas num dos cadeirões da biblioteca de sua casa. “Aquilo está explicado. É uma espécie de ‘venham, o caminho está aberto’”, disse José Bernardo. “Não há um livro que não tenha uma nota, indicações de outros livros, de coisas que tinha lido, de desenhos, de apontamentos. Nunca podia estar misturado [com as obras dos outros arquitetos]. Todas as bibliotecas têm de ter a sua autonomia.” É também por isso que os livros estão arrumados seguindo a ordem estabelecida originalmente por Távora. “Fazem-se doutoramentos e investigações a partir de bibliotecas”, explicou por sua vez a assessora de produção e de comunicação da FIMS. “É isto que faz dela a Biblioteca Távora e não a Biblioteca Geral. Isto tem de ter uma autonomia própria para se conseguir perceber cada uma das pessoas que tem aqui o seu espólio.”
É do outro lado do jardim, repleto de cameleiras, no palacete Lopes Martins, que está exposto o núcleo referente ao trabalho de arquiteto — desenhos, projetos, maquetas, fotografias e registos escritos, que documentam a execução de cerca de 300 trabalhos de arquitetura, entre 1946 e 2002. Foi o primeiro a ser transportado para a FIMS. Os dois sofás onde Fernando Távora passava as noites a escrever e a ler também lá estão, junto à biblioteca e aos móveis do escritório, colocados numa das divisões do piso térreo do edifício, restaurado apenas parcialmente (os trabalhos de recuperação estão a ser feitos aos poucos). “Fiz questão que ficassem aqui também, ao pé dos livros”, explicou o filho José Bernardo Távora. “Era onde ele, todas as noites, lia, escrevia, pensava desenhava, até às tantas.” Isso acontecia depois das 11 da noite, quando a casa estava mais sossegada, e era possível porque Fernando Távora “ia dormindo durante o dia”. Quando estava aborrecido, quando tinha de fazer “uma viagem chata” — fechava os olhos e “tinha sempre aqueles dez minutos de descanso”.
O que ainda não está exposto pelas salas do palacete — onde estão também trabalhos de outros arquitetos cujos espólios foram doados à Fundação Marques da Silva –, está guardado na antiga adega da casa-ateliê, transformada numa sala de limpeza de documentos. É aí que, antes de serem acondicionados em caixas de cartão, os documentos são alvo de um processo de higienização, essencial para a sua conservação. Entre as dezenas de livros ainda por limpar, é possível encontrar um pouco de tudo, incluindo um livro sobre música e Fernando Pessoa.
“Ele comprava tudo o que fosse Pessoa”, admitiu José Bernardo Távora , enquanto folheava as páginas já meio amareladas do volume. “O engraçado é que ele próprio não ouvia música… Era uma coisa espantosa! Nunca ouvia música, nunca ia ao cinema, por exemplo. Não via televisão…” O que interessava a Fernando Távora não podia ser condensado dentro de um pequeno aparelho eletrónico: “Ler, escrever, desenhar”, eram esses os seus verdadeiros interesses. “E sobretudo ter tempo para pensar. Era impressionante.” Tudo o que lhe passava pela cabeça durante aquelas longas noites silenciosas, deixou-o escrito em “dezenas, centenas, milhares de páginas”, que ainda não começaram a ser publicadas. “Uma loucura”, garantiu José Bernardo, olhando em volta para as coisas que foram do pai.
— Ainda não se arrependeu? — perguntou-lhe Ana, uma das responsáveis pela limpeza dos documentos.
— Do quê? — questionou José Bernardo.
— De ter vindo tudo para aqui.
— Não. Tinha-me arrependido se as coisas tivessem sido separadas ou vendidas. Já tinha gastado a massa toda e agora não tinha massa nem livros. Tinha o desgosto… Se um de nós, dos filhos, fosse apaixonado por isto… Tenho os livros todos do Pessoa e tal, mas não tenho coragem de ter em casa originais, manuscritos e inéditos. Acho que têm de ser públicos. Acho que tem de ser para toda a gente. Tem de ser visto e revisto. Espero é que apareça gente!
Durante “muito tempo”, ninguém mostrou interesse pela coleção de Fernando Távora. “Nós nunca dissemos a ninguém que não podia ir, que tinha de pagar. Nunca fechámos nada. Nada”, garantiu José Bernardo, elogiando o trabalho feito pelos colaboradores da Pessoa Plural, os primeiros a visitarem o espólio do arquiteto em muitos anos. “Aquilo foi impressionante. Eles estiveram lá dez dias e o trabalho que eles fizeram em cinco meses foi uma coisa completamente louca. Realmente apaixonaram-se por aquilo…” Foi por isso que José Bernardo, que nunca tinha escrito nada sobre o pai, decidiu escrever o texto “Fernando Távora:um homem de paixões, 1923-2005” para o número especial da Pessoa Plural de finais do ano passado. ”Só depois de ver a paixão deles é que escrevi”, admitiu ao Observador. “Não, eles merecem. São cuidadosos.” Agora, o que José Bernardo Távora e as irmãs querem é que “estudem isto”. Que apareçam investigadores, curiosos e interessados que peguem nos documentos que o pai colecionou com tanta dedicação durante décadas e os analisem.
No outro canto da sala de limpeza, Paula Abrunhosa garantiu sorridente que sim, que “já começou a aparecer” gente. É só uma questão de tempo até que todos os tesouros da coleção Fernando Távora sejam desvendados.
Fotografia de Fernando Távora em 2003: Hernani Pereira/Global Imagens; fotografia do grupo da Pessoa Plural cedida por Carlos Pittella
A Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva, no Porto, está aberta de segunda a sexta, das 9h às 18h. Pode ser visitada neste horário, mediante marcação