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Tal como há séculos, Fernão de Magalhães voltou a inquietar a boa vizinhança entre Portugal e Espanha. A recente decisão portuguesa vem relembrar feridas antigas: a história da primeira circum-navegação está feita de ressentimentos, invejas, traições, espiões, tentativas de assassinato, mortes, fome e más decisões. E não, não foi para provar que a Terra era esférica que o navegador português se lançou aos mares. Esse é um dos equívocos que giram em torno desta viagem. Mas há mais.
A verdade é que do lado da fronteira houve quem levasse a mal a iniciativa de Portugal. No âmbito das comemorações dos 500 anos da viagem de Fernão de Magalhães, Portugal anunciou ir apresentar à UNESCO uma candidatura para incluir a rota de Magalhães no Património da Humanidade. Do lado espanhol houve mal-estar. Como se atrevia Portugal a tanto, sem consultar Espanha? Afinal de contas, espanhol foi o porto de chegada e partida de tal odisseia; o líder do projecto, ainda que nascido em Portugal, era, à data, súbdito espanhol; a expedição foi organizada pela Coroa espanhola, com navios espanhóis, uma tripulação maioritariamente espanhola e financiamento alemão e flamengo; e, tendo o líder perecido a meio da viagem, a circum-navegação foi completada sob a chefia de um espanhol. Acresce que quando o rei de Portugal soube dos preparativos para este empreendimento, fez tudo o que estava ao seu alcance para o impedir.
O conhecimento da história e uma política de boas relações recomendariam que se consultasse Espanha sobre o assunto, pelo que o ABC, o jornal onde a polémica ganhou visibilidade, classificou a atitude portuguesa como uma tentativa de apagar o papel espanhol na história e pediu explicações ao Ministro da Cultura espanhol, que, por sua vez, anunciou ir tomar medidas (ver Governo espanhol pede satisfações à UNESCO sobre candidatura da rota de Magalhães feita por Portugal).
Entretanto, a polémica – ou o equívoco ou a distração – parece ter sido rapidamente sanada, já que os ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e Espanha anunciaram em Madrid, no dia 23 de Janeiro, numa cerimónia conjunta, que a candidatura da rota da viagem iniciada pelo português Fernão de Magalhães e terminada pelo espanhol Sebastián Elcano (uma formulação bem mais diplomática) seria apresentada pelos embaixadores de ambos os países. José Marques, presidente da Estrutura de Missão das Comemorações do V Centenário da Circum-Navegação, garantiu que a relação com Espanha era de cooperação.
Lisboa na rota das descobertas
Há poucos meses, na cerimónia de abertura da Web Summit 2018, António Costa afirmou que “conectar pessoas de todo o mundo está no nosso ADN. No próximo ano festejamos 500 anos da primeira circum-navegação ao globo por Fernão de Magalhães” e Fernando Medina ofereceu um retrato do navegador a Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit, deixando no ar a insinuação de que este seria um Fernão de Magalhães do século XXI, pela “coragem de descobrir novos mundos” (ver Ação, tambores e Fernão de Magalhães).
A tentativa de associar a viagem de Magalhães à imagem de Lisboa como capital do empreendedorismo tecnológico e o “porto” de onde, graças à Web Summit, partem as viagens de descoberta tecnológica do século XXI, não é muito feliz. Em Lisboa, o “empreendedorismo” de Magalhães foi recebido com desinteresse e sobranceria, o que levou o navegador, humilhado, a recomeçar vida em Sevilha e a aí procurar apoios para a sua start-up. Não deve retirar-se mérito a Magalhães e, muito menos, colocá-lo em plano de igualdade com Elcano: não só a formidável empresa foi concebida por Magalhães, como este lutou arduamente para a concretizar e foi sob o seu comando que foi feita a parte mais árdua e ousada da viagem. Mas isso foi, sobretudo, mérito pessoal de Magalhães, não da nação portuguesa.
Terra plana e terra esférica
O orgulho dos portugueses pelo feito de Magalhães nem sempre é acompanhado pelo conhecimento desse feito, já que muitos, mesmo entre as elites cultas, creem que Magalhães fez a sua viagem para provar que a Terra era esférica.
Ora, já os filósofos da Grécia Clássica tinham não só intuído a esfericidade da Terra como tinham estimado com admirável precisão as suas dimensões: Eratóstenes de Cirene (276-194 a.C.) usou um método tão simples quanto engenhoso, comparando o ângulo do sol no solstício de Verão em duas latitudes diferentes no Egipto – em Alexandria e Syene (hoje Aswan) –, para estimar a circunferência da Terra em 44.100 Km, o que representa um erro de 10% em relação ao valor real de 40.075 Km.
Apesar da perda de muito do conhecimento da Antiguidade Clássica durante a Idade Média, a noção de que a Terra é redonda manteve-se presente entre as elites cultas, quer no mundo cristão quer no mundo islâmico – c. 830 dC, os astrónomos aos serviço do califa al-Ma’mun tinham chegado a uma estimativa de perímetro terrestre de 40.248 Km – e era posta em prática pelos marinheiros, que determinavam as suas rotas através da navegação astronómica, que recorre às medições angulares das posições dos astros e pressupõe a esfericidade da Terra.
Quando D. João II rejeitou a proposta de Cristóvão Colombo para chegar às Índias navegando para Ocidente, não foi porque acreditasse que a Terra era plana, mas porque os seus “conselheiros científicos” estavam (correctamente) convictos de que a estimativa de Colombo para o perímetro da Terra, de 30.200 km, era muito inferior ao real, pelo que o continente asiático seria muito mais distante. Colombo calculara que o Japão ficaria a 3.700 km a ocidente das Ilhas Canárias, quando na verdade fica a 20.000 km. Sendo particularmente obstinado, quando se deparou acidentalmente com o continente americano, Colombo continuou a crer, contra todas as provas, de que encontrara os arquipélagos mais orientais da Ásia e disso morreu convencido, em 1506, após ter feito quatro viagens às Américas. É provável que fosse, por esta altura, o único a ainda crer nisso.
Chegar ao Oriente por Ocidente
O facto de as Américas não serem as Índias não diminuiu o interesse em chegar às segundas pela rota ocidental, mesmo suspeitando que a viagem pudesse ser longa. Mas para que fosse viável, seria necessário que o recém-descoberto continente americano não fosse um bloco terrestre compacto de pólo a pólo, e que nalgum lugar se abrisse num canal comunicando com um oceano que daria acesso às costas da Ásia oriental. Esse oceano fora avistado pela primeira vez em 1513 pelo explorador espanhol Vasco Núñez de Balboa, após ter atravessado a densa selva do Istmo do Panamá.
Pouco depois, em 1516, o navegador espanhol (português, segundo outras fontes) Juan Díaz de Solís foi enviado secretamente por Fernando, o Católico, pela costa sul-americana abaixo em busca dessa passagem para o Pacífico.
O secretismo que rodeou a viagem e os seus intentos não impediu que os portugueses, hiper-sensíveis a tudo o que dizia respeito à rivalidade marítima com Espanha, deles tivessem conhecimento, pelo que tentaram (em vão) sabotar os navios da frota de Solís antes da partida, quando estavam a ser aparelhados em Lepe.
Quando chegou ao que hoje é o Río de la Plata – o amplo estuário conjunto dos rios Paraná e Uruguai – Solís quis crer que se tratava da almejada “passagem”, apesar de a abundância de água doce contrariar tal hipótese. Solís não terá tido tempo para se aperceber do seu equívoco, pois foi morto, com sete dos seus homens, pelos índios charrúas (ou pelos guaranis) quando desembarcou no que é hoje o Uruguai ou numa ilha próxima da costa. Os exploradores espanhóis foram esquartejados, assados e comidos, à vista de quem ficara nos navios, visão que parece ter desmotivado o resto da tripulação, que deu a exploração por terminada e regressou a Espanha.
Bulas e tratados para repartir o mundo
Fernando tinha boas razões para tentar manter secreta a expedição de Solís e os portugueses tinham boas razões para tentar sabotá-la. Em 1479, o Tratado de Alcáçovas, firmado entre Afonso V e os Reis Católicos e que pôs termo à Guerra da Sucessão de Castela, além de regularizar as querelas dinásticas entre Portugal e Espanha, dividira os territórios descobertos e a descobrir no Atlântico entre os dois países, ficando as Canárias para Espanha e Portugal com todos os territórios e direitos de navegação a sul das Canárias.
Esta partição, que foi confirmada em 1481 pelo papa Sisto IV através da bula Aeterni regis, que, por sua vez, vinha no seguimento da bula Romanus Pontifex, de 1454,. em que o papa Nicolau V, após elogiar as vitórias sobre os muçulmanos no Norte de África obtidas pelos portugueses, concedia a estes direitos exclusivos sobre os territórios e navegação para sul do Cabo Bojador e eventuais expansões para oriente – ou seja a Índia, apesar de não haver ainda a garantia de poder encontrar-se uma passagem entre o Atlântico e o Índico.
Essa possibilidade só se tornou certeza em 1488, quando Bartolomeu Dias regressou da viagem em que dobrou o Cabo da Boa Esperança e entrou no Índico. Quatro anos depois, em 1492, Colombo chegou à América ao serviço dos Reis Católicos, o que justificou que João II lhes enviasse uma carta azeda, considerando que a viagem do genovês e a tomada de posse dos novos territórios por ele descobertos para a coroa espanhola constituíam infrações ao Tratado de Alcáçovas, que, no Atlântico, apenas concedia a Espanha a posse das Canárias.
Mas os Reis Católicos não tinham estado inactivos no plano diplomático e o intenso lobbying espanhol na Santa Sé acabou por produzir efeito. Para tal contribuiu a eleição papal que teve lugar em Agosto de 1492, uma semana depois de a frota de Colombo deixar Palos de la Frontera rumo às “Índias”.
O escolhido foi Rodrigo Borgia, que adoptou o nome de Alexandre VI e que era membro de uma poderosa família italo-valenciana (conhecida como Borja em Valência) e que Stephen R. Bown descreve, em “O Tratado de Tordesilhas: Como uma disputa familiar, um aventureiro mercenário e uma infanta rebelde conseguiram dividir o mundo” (Casa das Letras), como “conhecido [pela] corrupção e pela sua volubilidade moral”.
Não só Alexandre VI tinha escassos escrúpulos e um apetite insaciável por riqueza, como nascera em Valência e fora bispo desta cidade, pelo que é natural que se sentisse inclinado a favorecer os interesses espanhóis – e foi assim que, em Maio de 1493, apenas dois meses após o regresso de Colombo a Palos de la Frontera e um mês após a chegada a Roma de um emissário dos Reis Católicos com a notícia da descoberta, fez publicar a bula Inter caetera.
Esta concedia a Espanha privilégios territoriais e de navegação a oeste de um meridiano que passava 100 léguas a oeste de Cabo Verde e proibia, sob pena de excomunhão, “que todas as pessoas, de qualquer patente, estado, grau, ordem ou condição” se atrevessem, “sem a autorização especial [dos Reis Católicos] para comerciar ou qualquer outro motivo, a entrarem nas ditas ilhas e países depois de terem sido descobertas” pelos seus representantes (na verdade, em 1493, Alexandre VI fez publicar, em rápida sucessão, mais duas bulas complementares sobre este assunto, mas, por facilidade de exposição costumam ser referidas como uma só).
Embora a real natureza dos territórios descobertos por Colombo ainda fosse, em 1493, nebulosa, na prática, a amplitude dos privilégios expressos na bula de Alexandre VI parecia conceder a Espanha o domínio sobre as Índias – a bula Dudum siquidem, de 26 de Setembro de 1493, “chega a identificar a Índia como um país aberto aos barcos espanhóis” (Bown) –, o que retirava a Portugal o objetivo último da sua porfia de décadas ao longo da costa africana.
João II não podia aceitar ver defraudadas as suas expectativas agora que Portugal estava tão próximo da meta, pelo que entrou em negociações diretas com Espanha, já que colocar a disputa sob o arbítrio do tendencioso Alexandre VI estava fora de questão – quando os embaixadores espanhóis lhe fizeram tal proposta, o rei português ficou tão furioso que lhes deu a entender que poderia fazer executá-los ali mesmo.
Assim, os representantes de ambas as coroas reuniram-se em Tordesillas, uma discreta povoação na província de Valladolid, banhada pelo rio Douro, e, após alguns meses de negociações, a 7 de Junho de 1494, foi firmado um tratado que colocava no meridiano que passava 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde a separação entre as áreas de influência de Portugal e Espanha (ou seja, mais 270 léguas a oeste que na partição anterior).
Há quem sugira que esta exigência resultou de João II já estar a par da existência do Brasil, ainda que este só fosse descoberto oficialmente em 1500. Mas enquanto ganhava o Brasil (ou, pelo menos, parte dele), Portugal via-se, automaticamente, privado de territórios correspondentes no outro lado do globo, uma vez que também o anti-meridiano terá sido deslocado 270 léguas para oeste.
Dada a incipiência, à data, da cartografia e da navegação – e, sobretudo, dos métodos de determinação da longitude (um problema que só seria resolvido bem mais tarde) – a localização do anti-meridiano era bem mais incerta do que a, já de si vaga, fronteira das “370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde” (qual das ilhas do arquipélago servia de referência?). Esta imprecisão não teria grande importância se as navegações posteriores dos portugueses pelo Índico não tivessem permitido concluir que um dos territórios mais cobiçados do planeta se situava nas imediações do anti-meridiano de Tordesillas.
As Celebérrimas Ilhas Molucas
Após a primeira viagem de Vasco da Gama (1497-99), os portugueses precipitaram-se para o Índico e, de forma rápida e implacável, arrebataram o controlo do comércio naquelas paragens das mãos dos mercadores árabes. Também perceberam muito depressa que, enquanto algumas das tão cobiçadas especiarias eram efectivamente produzidas na Índia, as mais valiosas provinham de fontes mais orientais: a noz-moscada provinha da Myristica fragrans, uma árvore que crescia exclusivamente nas minúsculas ilhas de Banda, e o cravo-da-índia provinha da Szygium aromaticum, planta que também era exclusiva de Banda.
Os dez ilhotes vulcânicos de Banda (cuja área total é de apenas 46 Km2) faziam parte do arquipélago das Molucas (hoje parte da Indonésia), o que levou a que os europeus baptizassem genericamente as Molucas como as “Ilhas das Especiarias” (localmente eram conhecidas como Ilhas Maluku; os portugueses também as designaram como “Ilhas Malucas” ou “O Maluco”).
Apercebendo-se disto, o expedito e brutal Afonso de Albuquerque tratou de expandir o poderio português para Oriente, nomeadamente através da conquista, em 1511, de Malaca, cuja localização estratégica, na Península da Malásia, assegurava o controlo da navegação no movimentado Estreito de Malaca e aproximava os portugueses das fontes das especiarias mais valiosas.
Mas as “Ilhas das Especiarias” ficavam ainda mais para Oriente e foi em sua demanda que Albuquerque enviou, em 1512, uma frota de quatro navios comandada por António de Abreu, que se distinguira pela excepcional bravura na conquista de Malaca, e tendo por vice-comandante Francisco Serrão, amigo – e, possivelmente, também primo – de Fernão de Magalhães.
Guiados por pilotos malaios, os portugueses chegaram às míticas ilhas, carregaram os navios com noz-moscada e cravo-da-índia e regressaram. Ou melhor, regressou Abreu, pois Serrão ficou nas Molucas, dedicando-se ao comércio e colocando os seus préstimos militares ao serviço dos conflitos entre os governantes locais – tornou-se chefe de mercenários e conselheiro do Sultão de Ternate, um dos homens fortes do comércio de especiarias, cuja supremacia disputava com o Sultão de Tidore (ou Tadore).
O isolamento de Serrão nestas paragens longínquas não impediu que fizesse chegar ao amigo/primo Fernão de Magalhães várias cartas em que descrevia aquelas ilhas e as suas riquezas – e é lícito ver nelas o principal factor que fez Magalhães conceber o projecto de chegar às Molucas pela rota ocidental. Serrão garantia ter “[encontrado] um mundo novo, mais rico e grandioso que o de Vasco da Gama […] Suplico-te, junta-te a mim para veres por ti as maravilhas que me rodeiam”.
Magalhães: A rejeição em Portugal
Fernão de Magalhães terá nascido c. 1480, numa família nobre, em Sabrosa, Vila Nova de Gaia ou Ponte da Barca – as três localidades reclamam-no como filho da terra – e iniciou-se nas aventuras marítimas, em 1505, embarcando numa armada de 22 navios enviada para a Índia sob o comando do primeiro vice-rei da Índia, Francisco de Almeida. Pelo Índico ficou nos anos seguintes, participando, nomeadamente, na embaixada a Malaca sob o comando de Diogo Lopes de Sequeira (que haveremos de reencontrar) e de que também fez parte Francisco Serrão.
Magalhães não teve muita sorte no Oriente, acabando por perder boa parte dos seus investimentos e quando tentou que a Coroa portuguesa o ressarcisse dos prejuízos, D. Manuel recusou. Magalhães decidiu então tentar provar o seu valor combatendo os mouros no Norte de África. Voltou a mostrar-se destemido e voltou a ter pouca sorte: na tomada de Azamor, em 1513, perdeu o seu cavalo e foi gravemente ferido num joelho, o que o deixou manco para o resto da vida. À falta de sorte, juntou-se a falta de tato: decidiu ignorar os trâmites usuais e apelar directamente ao rei D. Manuel reclamando indemnização pela morte do seu cavalo em batalha, pedido que o rei indeferiu.
Quando surgiu finalmente o que parecia um vento favorável – foi nomeado quartel-mestre – Magalhães não tardou a ver-se envolvido num imbróglio, ao ser acusado de apropriação indevida de bens e de comércio com o inimigo. Em vez de defender-se das acusações, deixou Marrocos sem autorização e solicitou audiência com o rei, a quem exigiu um aumento da sua tença, na qualidade de membro da casa real. D. Manuel não só recusou o pedido como lhe ordenou que regressasse a Marrocos para responder às acusações de que era alvo – a que juntara, entretanto, a de deserção. As investigações acabaram por ilibar Magalhães de culpas e este regressou a Lisboa, para importunar D. Manuel com novo pedido de aumento de tença.
Não será de estranhar que quando, em 1517, Magalhães voltou a apresentar-se perante D. Manuel, desta vez reclamando a chefia de uma missão às Ilhas das Especiarias, o rei estivesse pouco inclinado a ouvi-lo. A proposta de Magalhães, a fazer-se por oriente, não seria inovadora em termos de navegação, uma vez que António de Abreu já chegara às Molucas em 1512, pelo que não se percebe porque terá Magalhães feito acompanhar-se pelo astrónomo e matemático Rui Faleiro, que desenvolvera um método pioneiro para determinar a latitude e longitude no mar (e que, embora respeitado, tinha fama de conflituoso e temperamental).
Terão Magalhães e Faleiro proposto uma rota para as Molucas por ocidente, crendo que seria mais curta do que por oriente? Mesmo que o fosse, implicaria atravessar milhares de milhas de águas sobre as quais Espanha tinha direitos de navegação exclusivos. Mesmo que essa rota fosse praticável – e não havia nada que o confirmasse –, se chegassem às Molucas vindos do Pacífico os portugueses enfrentariam o mesmo obstáculo com que se deparavam quando vindos do Índico: as relações entre o militarmente poderoso (e convictamente islâmico) Sultanato de Ternate e os portugueses eram tensas, devido às tentativas portuguesas de evangelização e de monopolização do comércio de especiarias.
Fosse por não achar o projecto credível ou por estar pelos cabelos com aquele fidalgo irreflectido, insolente e com escasso tato, ou por o projecto ter “consultoria científica” de Rui Faleiro, com o qual o rei também tinha tido atritos, D. Manuel rejeitou a proposta. Quando Magalhães, exasperado, perguntou ao rei se poderia oferecer os seus préstimos a outrem, D. Manuel, provavelmente desejoso de se ver livre dele, disse que fizesse como lhe aprouvesse. Quando, no fim da audiência, Magalhães se curvou para beijar a mão real, D. Manuel não se dignou estendê-la.
Magalhães: O acolhimento em Espanha
Nesse mesmo ano de 1517, despeitado e humilhado, Magalhães foi estabelecer-se em Sevilha, que era o destino usual de muitos portugueses que não tinham obtido em Lisboa o reconhecimento que entendiam merecer, e Faleiro juntou-se-lhe pouco depois. Magalhães não desistira dos seus planos em relação às Molucas – apenas os adaptou aos interesses espanhóis – e conseguiu obter para a sua ousada empresa o apoio de Juan de Aranda, feitor da Casa de Contratación de las Índias (entidade com responsabilidades em tudo o que tinha a ver com os assuntos ultramarinos espanhóis, viagens de exploração e comércio incluídas), e do mercador Diego Barbosa. A ligação de Magalhães a Barbosa, que fazia parte da comunidade de expatriados portugueses em Sevilha e chegou a alcaide da cidade, fortaleceu-se através do casamento com a filha e da amizade com o filho, Duarte, que desempenhara importantes missões no Índico e que vira D. Manuel recusar-lhe o ambicionado cargo de escrivão-mor que lhe prometera.
Graças a estes apoios, Magalhães conseguiu obter uma audiência com o muito jovem Carlos I de Espanha, a fim de lhe apresentar o projecto de atingir as Molucas por ocidente – o que era, de certo modo, uma actualização da (fracassada) proposta de Colombo de dar a Espanha uma rota ocidental para as Índias. Nesta apresentação, Magalhães atribuiu a posse das ilhas a Espanha, baseando-se nos cálculos de Faleiro e nas cartas de Serrão, que colocavam as ilhas bem mais para Oriente do que realmente estavam, pelo que o empreendimento proposto colocaria o comércio das especiarias nas mãos do seu legítimo detentor – Espanha – e não infringiria os tratados e as bulas papais.
Carlos I, recém-chegado ao trono espanhol, por morte de Fernando, em 1516, ficou convencido, até porque estava desiludido com o Novo Mundo, que, até então, não se revelara a extraordinária fonte de riquezas que Colombo tinha alardeado – só em 1522 chegaria o primeiro carregamento de ouro enviado por Hernán Cortés, resultante da pilhagem do Império Azteca.
Carlos I subscreveu o projecto de Magalhães: em 1518 nomeou-o capitão e em 1519 assinou com ele um contrato que dava ao navegador o exclusivo da exploração da nova rota por 10 anos, em troca de 1/5 dos proventos. Entretanto, em 1519, Magalhães assinara os documentos que o convertiam formalmente num súbdito espanhol.
Por esta altura, Carlos I somara à coroa de Espanha a do Sacro Império Germânico (como Carlos V), mas este triunfo tinha-lhe custado uma fortuna em “liberalidades” (como agora se diz) para com os príncipes eleitores, pelo que necessitava desesperadamente de novas fontes de rendimentos. Carlos I depositava grandes expectativas no empreendimento de Magalhães para reequilibrar as suas depauperadas finanças, e, tendo os cofres vazios, viu-se forçado a recorrer a um empréstimo dos Fugger, poderosos banqueiros alemães.
O representante dos Fugger em Sevilha era Christopher de Haro, um mercador flamengo que exercera actividade em Lisboa, até que, devido a atritos com D. Manuel, se mudara para Sevilha. Além de ter mediado o empréstimo – com elevadas taxas de juro – dos Fugger, que cobria ¾ das despesas, Haro entrou directamente com o seu capital para cobrir o quarto restante.
Há quem reprove a D. Manuel o facto de, para agradar aos Reis Católicos e poder casar-se com Isabel de Aragão, ter, em 1496, cedido à pressão daqueles para expulsar os judeus de Portugal, privando assim Portugal de um extraordinário capital humano e financeiro. Teria lançado as sementes para a perda da primazia técnica e científica portuguesa em termos navais e o consequente declínio do poderio português. Mas é possível que as atitudes conflituosas e prepotentes de D. Manuel tenham sido responsáveis por uma fuga de cérebros e capital entre os cristãos não menos danosa.
Uma viagem contra os interesses de Portugal
Enquanto os preparativos para a viagem decorriam, com uma lentidão exasperante para Magalhães, os espiões portugueses em Sevilha informaram D. Manuel desta empresa, que poderia revelar-se ruinosa para a coroa portuguesa. Neste época, era frequente que navegadores de diferentes nacionalidades prestassem serviços sob outras coroas – como foi o caso do genovês Cristoforo Colombo –, mas Portugal guardava ciosamente as suas rotas, as suas técnicas de navegação e os seus mapas e previa punições severas – incluindo a pena de morte – para quem divulgasse informações desta natureza a potências estrangeiras.
Mas tal não impedia que houvesse quem se colocasse ao serviço de Espanha: por exemplo, Juan Díaz de Solís teria nascido em Mértola (talvez na freguesia de São Pedro de Solis), como João Pedro Dias de Solis, e fora piloto nas armadas portuguesas da Índia, antes de entrar ao serviço de Espanha nas viagens de exploração do Novo Mundo – Bown descreve-o como “um desertor português que fugira para Espanha depois de ter assassinado a esposa”.
No caso de Magalhães, havia a atenuante de o rei português o ter autorizado a oferecer os seus serviços a outra coroa – algo de que D. Manuel se terá certamente arrependido amargamente quando lhe chegaram as notícias de Sevilha. Primeiro tentou convencer Magalhães e Faleiro a regressar, ao que Magalhães retorquiu que estava preso à sua missão e a Carlos I por um compromisso de honra.
O agente de D. Manuel passou do aliciamento às ameaças à família de Magalhães em Portugal, mas o navegador manteve-se irredutível, pelo que D. Manuel tentou pressionar o monarca espanhol, endereçando-lhe uma missiva em que realçava “quão mau e invulgar era para um rei receber os vassalos de outro, seu amigo, contra a vontade deste”. Mas Carlos I, alegando que a viagem não infringiria as disposições dos tratados, recusou-se a ceder. E quando lhe chegou aos ouvidos o rumor de que D. Manuel encomendara o assassinato de Magalhães e Faleiro, fez ambos cavaleiros da Ordem de Santiago (o que tornaria numa ofensa grave que os portugueses atentassem contra a sua vida) e providenciou guarda-costas para a sua proteção.
Carlos I cobiçava o comércio das especiarias mas também pretendia manter boas relações com D. Manuel, que era seu tio – duplamente, uma vez que estivera casado com duas tias de Carlos I, Isabel de Aragão (falecida em 1498) e Maria de Aragão (falecida em 1517) – e cunhado – D. Manuel acabara de casar-se, em 1518, com Leonor de Áustria, irmã de Carlos –, pelo que lhe enviou uma carta apaziguadora, informando que “o nosso desejo é, e sempre foi, respeitar tudo o que concerne à linha de demarcação que foi firmada e aceite pelo Rei e Rainha Católicos meus soberanos e avós”.
Porém, quer Carlos I quer D. Manuel sabiam que o objectivo primordial da expedição eram as Molucas, em relação às quais era impossível provar, pela ciência da época, a que domínio pertenciam.
A volta ao mundo em três anos
A 20 de Setembro de 1519, os cinco navios capitaneados por Magalhães, com 270 homens a bordo, zarparam de Sanlúcar de Barrameda. A tripulação multinacional, como era usual, incluía 40 portugueses – entre os quais Duarte Barbosa, o cunhado de Magalhães, e João Serrão, parente de Francisco Serrão, mas não Faleiro, que desistiu pouco antes da partida –, o viajante veneziano Antonio Pigafetta, que se tornaria no cronista da expedição, e Enrique, o escravo malaio de Magalhães.
A história da viagem foi atribulada e a armada só entrou no Pacífico graças à vontade indómita, à implacabilidade e à experiência marítima de Magalhães. A travessia do Oceano Pacífico, uma vastidão completamente desconhecida dos europeus e onde os navios de Magalhães erraram durante 97 dias, foi um feito de uma audácia sem par, mesmo para os temerários padrões da navegação daquela época.
Quando, após fazer escala nas Marianas e em Guam, a depauperada frota – reduzida a três navios em mau estado – atingiu as Filipinas, a 16 de Março de 1521, e encontrou gentes cuja língua Enrique, o escravo malaio, era capaz de entender, pareciam superados os desafios mais árduos e pouco faltava para chegar ao almejado destino.
Foi então que Magalhães, em vez de se dirigir logo para as Molucas, se deixou arrastar para uma querela local: para prestar um favor ao rajá Humabon, que o acolhera bem, a 27 de Abril, desembarcou na ilha de Mactan, perto de Cebu, a fim de submeter Lapu-Lapu, um chefe tribal que estava em conflito com o rajá e recusara a conversão ao cristianismo. Acabou por perecer no combate que se travou na praia e o seu corpo não foi recuperado, pois Lapu-Lapu insistiu em guardá-lo como troféu. Abalados com a perda do líder, Duarte Barbosa e João Serrão assumiram o comando conjunto da frota.
Não foi por muito tempo: ao contrário do que Magalhães estipulara, não concederam liberdade a Enrique após a sua morte, mas o malaio conseguiu escapulir-se e, movido por compreensível rancor, foi intrigar junto de Humabon, levando-o a crer que os europeus o queriam matar. Humabon atraiu os dois capitães e uma trintena de tripulantes a um banquete que se revelou uma cilada – todos os europeus morreram, incluindo Duarte Barbosa, o cunhado de Magalhães.
O comando passou para as mãos de João Lopes Carvalho – depois substituído por Juan Sebastián Elcano – e a frota partiu para as Molucas, deixando para trás o Concepción, pois estava prestes a desmantelar-se e já não havia mãos suficientes para guarnecer três navios: a frota ficou reduzida ao Victoria e ao Trinidad.
Quando, a 8 de Novembro de 1521, após ziguezaguearem demoradamente pelas Filipinas, os dois navios, com 115 homens a bordo, aportaram em Tidore, nas Molucas, os europeus foram informados de que Francisco Serrão – o homem cujas cartas tinham inflamado a imaginação de Magalhães e desencadeado aquela viagem – falecera oito meses antes na ilha de Ternate. Uma fonte sugere que a sua morte resultou de uma vingança: a buliçosa relação entre as ilhas vizinhas de Ternate e Tidore atravessava então um período de tréguas, mas quando Serrão foi a Tidore para embarcar um carregamento de cravo-da-índia, o sultão local terá querido vingar-se do apoio prestado por Serrão ao seu rival e envenenou-o.
Após os dois navios terem sido atestados de noz-moscada e cravo-da-índia, dispuseram-se a regressar a Espanha – porém, com os navios em péssimo estado e as tripulações debilitadas, seria impensável enfrentar novamente a vastidão desconhecida do Pacífico e as traiçoeiras águas do extremo sul do continente americano. Assim, contrariando a premissa fundamental do projecto de Magalhães – estabelecer uma rota para as Molucas evitando os mares atribuídos a Portugal – o Victoria, comandado por Juan Sebastián Elcano, rumou ao Índico. O Trinidad, após uma demorada reparação, deveria segui-lo, mas por ter sido excessivamente carregado de especiarias para a sua decrépita condição, foi forçado a regressar às Molucas, onde acabou por ser apresado por uma frota portuguesa comandada por António de Brito.
No trajecto pelo Índico e Atlântico, o Victoria evitou tocar terra ou aproximar-se de outros navios, uma vez que aquelas eram águas portuguesas, e nesse esforço acabou por perder mais 25 elementos da sua rarefeita tripulação. Quando o Victoria foi forçado a fazer escala na Ilha de Santiago, no arquipélago de Cabo Verde, para reabastecer-se de água, os portugueses tentaram confiscar o navio e aprisionaram 13 tripulantes, que Elcano foi forçado a deixar para trás. O Victoria chegou a Sanlúcar de Barrameda a 6 de Setembro de 1522, num estado lastimável e com apenas 18 sobreviventes a bordo.
As outras armadas das Molucas
O Victoria que regressou podia ser um destroço à beira de se afundar, mas a absurda cotação da noz-moscada e do cravo-da-índia nos mercados europeus era tal que, apesar do descalabro da expedição, o carregamento embarcado nas Molucas cobriu os custos da expedição e ainda proporcionou lucro. Enquanto a “Armada das Molucas” circum-navegara o globo, D. Manuel falecera, em 1521, devido à peste, mas o seu filho, D. João III, apressou-se a reclamar o carregamento do Victoria para a coroa portuguesa e a exigir a punição dos marinheiros sobreviventes por terem infringido os tratados.
Carlos I tentou contemporizar, sugerindo que um grupo de peritos navais, astrónomos e matemáticos de ambos os países se reunisse para dirimir a questão da localização do anti-meridiano e, logo, a posse das Molucas. O encontro teve lugar em 1524, em território neutro – uma ponte sobre o Guadiana, algures entre Elvas e Badajoz – e, como seria de esperar, meses de debate não produziram qualquer conclusão prática.
O impasse da Conferência de Badajoz-Elvas (ou Junta de Badajoz-Elvas) convinha a Carlos I, que em 1525 tratou de enviar uma segunda armada às Molucas pela mesma rota, com sete navios sob o comando de García Jofre de Loaísa. Apesar da experiência colhida na missão anterior – Elcano fazia parte da equipa de Loaísa – a Segunda Armada das Molucas foi um descalabro ainda maior do que a primeira: só um navio chegou às Molucas, em 1527, e foi apresado pelos portugueses. A partir do México, Hernán Cortés enviou uma frota, comandada por Álvaro de Saavedra Cerón, mas esta teve destino similar: Cerón chegou às Molucas com pesadas baixas, empreendeu algumas explorações e tentou regressar ao México, mas foi forçado a arrepiar caminho e acabou por ser aprisionado nas Molucas, com todos os seus homens, pelos portugueses.
Mas Carlos I/V precisava de financiar as suas guerras na Europa e a cotação da noz-moscada e do cravo-da-índia continuava em alta, pelo que, ainda antes de saber os resultados da segunda armada enviou uma terceira, comandada pelo veneziano Sebastiano Caboto (filho do navegador Giovanni Caboto). Esta, que deixou Sanlúcar de Barrameda em 1526, revelou-se um fiasco ainda mais completo: quando descia a costa sul-americana Caboto decidiu explorar a possibilidade, entrevista por Solís, de o Río de la Plata proporcionar uma passagem para o Pacífico menos árdua do que a descoberta por Magalhães mais a sul e acabou por dissipar o tempo e os recursos em explorações infrutíferas e em conflitos com os indígenas na região para o interior do Río de la Plata. Regressou a Sevilha em 1530, sem ter obtido nada de concreto, ou sequer chegado perto do Oceano Pacífico, e desfalcado de homens e navios.
Regresso às negociações
Por esta altura, Carlos I/V começou a perder a esperança em integrar as Molucas no seu império: para lá do fiasco das expedições e da presença crescente dos portugueses no Extremo Oriente, o Novo Mundo começara finalmente a produzir ouro e prata em quantidades apreciáveis. Para mais, em 1525-26, Carlos I e D. João III de Portugal tinham contraído casamento com as respectivas irmãs – Carlos com Isabel de Portugal, João com Catarina de Áustria – e Carlos I/V tinha problemas suficientes na Europa a norte dos Pirenéus para poder dar-se ao luxo de manter quezílias com o (duplo) cunhado.
Assim, a 22 de Abril de 1529, foi firmado o Tratado de Zaragoza, que estabeleceu que as Molucas faziam parte da “metade” portuguesa. Porém, se o mundo fosse efectivamente divido em duas partes idênticas, as Molucas seriam espanholas: pelo Tratado de Zaragoza, a parte portuguesa ficou a estender-se por 191º de longitude e a espanhola por 169º. Como compensação pela renúncia às Molucas, a coroa portuguesa comprometeu-se a entregar 350.000 ducados de ouro à coroa espanhola.
Embora as Filipinas ficassem, pelo tratado, dentro da parte portuguesa, não foram debatidas durante a redação do acordo. O arquipélago foi explorado em 1542 por Ruy López de Villalobos, que fora enviado pelo vice-rei do México e o baptizou com o nome de Filipe, Príncipe das Astúrias (futuro Filipe II), mas quando, após vicissitudes várias, Villalobos buscou socorro nas Molucas, os portugueses prenderam-no. A presença espanhola no Pacífico Ocidental continuava a ser extremamente periclitante e foi preciso esperar por 1565 e por Andrés de Urdaneta para que a “Rota do Pacífico” começasse a mostrar-se viável.
Urdaneta fora um dos poucos sobreviventes da expedição comandada por García Jofre de Loaísa. Fora aprisionado pelos portugueses nas Molucas e acabou por regressar à Península Ibérica, em 1536, num navio da Armada das Índias, sendo a primeira pessoa a completar a circum-navegação após os 18 marinheiros e fidalgos esfarrapados do Victoria.
Sob as ordens de Filipe II de Espanha (que subira ao trono em 1556), Urdaneta comandou nova missão às Filipinas e foi o primeiro navegador a conseguir fazer a travessia do Pacífico no sentido oeste-leste, tirando partido das correntes favoráveis no Pacífico Norte. Chegou a Acapulco, no México, em 1565, 44 anos depois da viagem de Magalhães em sentido inverso. O primeiro entreposto comercial espanhol nas Filipinas seria construído nesse mesmo ano.
Os portugueses, cada vez mais seguros do domínio sobre as Molucas, fecharam os olhos à apropriação espanhola deste território situado bem para ocidente do anti-meridiano, pois o que lhes interessava eram as especiarias e as Filipinas não as produziam.
Sonhos imperiais
O historiador Pedro Mártir de Anglería (1457-1526), que nascera em Itália com o nome de Pietro Martire d’Anghiera, esteve ao serviço da coroa espanhola e, além de ser autor de algumas das primeiras descrições do Novo Mundo, deixou também um relato sobre as negociações de 1524 na ponte sobre o Guadiana, entre Elvas e Badajoz. Conta ele que um dia, um dos membros da delegação portuguesa – Diogo Lopes de Sequeira que comandara a embaixada a Malaca de que fizera parte Magalhães – se deparou com um rapazinho que lhe perguntou se iam dividir o mundo com o imperador Carlos I. Sequeira terá respondido afirmativamente, ao que o fedelho baixou as calças e apontando para as nádegas disse “Desenhem a linha por aqui!”.
O episódio, se non è vero, è ben trovato, e põe a nu a vanidade dos desígnios imperiais de Portugal e Espanha e o absurdo de repartir territórios com régua e esquadro, sem a mais pequena consideração pela vontade e aspirações dos seus habitantes e governantes. Estes sonhos imperiais não tardariam a desmoronar-se, já que os países do Norte da Europa, que tinham abraçado o protestantismo, não se sentiam obrigados a submeter-se às decisões de repartição do mundo impostas por papas católicos, e, pouco a pouco, substituíram Portugal e Espanha como potências imperiais – no início do século XVII já as Molucas e o seu proveitoso comércio tinham caído sob domínio holandês.
Os muitos lados da história
A ideia que prevalece no imaginário corrente português sobre a viagem de Magalhães está pois minada por equívocos. O primeiro foi apontado no início deste texto: a viagem de Magalhães foi, sem dúvida, um feito audacioso, concebido e liderado por um homem nascido em Portugal, mas foi, essencialmente, um empreendimento espanhol. Outro equívoco muito difundido também já foi apontado: Magalhães não pretendia provar que a Terra era esférica, pois isso estava já bem estabelecido na época. Mas, mais ainda, Magalhães nem sequer pretendia circum-navegar o globo, pois o que ele propusera a Carlos I era encontrar uma rota para as Molucas através do Pacífico, e foi o fiasco parcial da expedição – em resultado da inesperada extensão do Pacífico e dos infortúnios sofridos durante a viagem – que forçou a que o regresso, já com Elcano, se fizesse pelo Índico e Atlântico.
Os propósitos da viagem não eram científicos, eram arrebatar o mais lucrativo negócio do mundo quinhentista à coroa portuguesa, em favor da coroa espanhola e, portanto, Magalhães foi, do ponto de vista estritamente patriótico, um renegado que atraiçoou o seu país e que pretendia assestar um rude golpe nos interesses portugueses, ao mesmo tempo que obtinha para si a fama e a riqueza que ambicionara e que entendia merecer e que Portugal lhe tinha negado. Embora seja tarefa arriscada fazer retratos psicológicos a cinco séculos de distância, parece evidente que o Fernão de Magalhães que, após a humilhante audiência de 1517 com D. Manuel, troca Lisboa por Sevilha e renega a nacionalidade portuguesa é um homem cuja determinação férrea é alimentada pelo ressentimento.
Na proposta concertada de Portugal e Espanha para obter da UNESCO a certificação da “Rota de Magalhães” fala-se agora de envolver na candidatura e nas comemorações outros países que fazem parte da rota. Os ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal e Espanha parecem presumir que os filipinos terão imensa afeição e respeito por Magalhães, quando, na perspectiva filipina, o navegador português é um invasor imperialista e o herói é Lapu-Lapu, o chefe tribal de Mactan, que lhe fez frente e o derrotou.
Com efeito, enquanto para os portugueses o homem responsável pela morte de Magalhães é uma figura obscuríssima, Lapu-Lapu é celebrado como o “primeiro herói das Filipinas” e é representado em moedas, símbolos, estátuas e no nome de uma cidade de 400.000 habitantes. Uma dessas estátuas, com nove metros de altura – a Estátua da Sentinela da Liberdade – situada num parque de Manila e inaugurada em 2004, foi justificada pelo então Secretário de Estado do Turismo filipino por “Lapu-Lapu ter sido o primeiro asiático a liderar um revolta com sucesso contra uma invasão estrangeira”, o que não corresponde à verdade mas espelha talvez o que os filipinos pensam de navegadores quinhentistas europeus, fosse qual fosse a bandeira sob a qual navegavam.