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Programa Mais Habitação clarificou regras de aplicação do IVA reduzido a obras de reabilitação, mas não tem efeito nos conflitos anteriores
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Programa Mais Habitação clarificou regras de aplicação do IVA reduzido a obras de reabilitação, mas não tem efeito nos conflitos anteriores

Mário Cruz/LUSA

Programa Mais Habitação clarificou regras de aplicação do IVA reduzido a obras de reabilitação, mas não tem efeito nos conflitos anteriores

Mário Cruz/LUSA

Fisco apertou malha para travar IVA a 6% na reabilitação urbana. Contribuintes reclamaram e decisões foram contraditórias

Promotores foram confrontados com inspeções a questionar direito ao IVA de 6% em obras de reabilitação urbana. Para vários especialistas, fisco começou a exigir condições não previstas na lei.

O fisco tem vindo a apertar as exigências para reconhecer o direito a uma taxa reduzida de IVA nas obras de reabilitação urbana. Vários promotores são confrontados com inspeções e correções ao IVA auto-liquidado a 6% e as decisões dos tribunais arbitrais têm sido contraditórias sobre as regras a cumprir para ter direito à taxa reduzida. As contradições são tais que até os árbitros envolvidos as apontam nos votos vencidos de decisões favoráveis à Autoridade Tributária (AT).

Para o presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), muitos projetos pararam devido à incerteza criada que, indica Hugo Santos Ferreira, é relativamente recente. Nos primeiros anos, após a aprovação de legislação específica (em 2014) para agilizar os processos de reabilitação, havia uma jurisprudência relativamente estável sobre o que eram projetos com direito a taxa reduzida, o que “contribuiu para que se verificasse em Portugal um processo sério de reabilitação dos nossos centros urbanos, que se tornou um caso de estudo internacional”, refere.

A lei determinava que os projetos de reabilitação urbana em edifícios com mais de 30 anos estivessem localizados numa zona de ARU (área de reabilitação urbana) para beneficiarem de IVA reduzido. Para tal, era apenas exigida uma declaração do município de como o imóvel se encontrava inserido nessa ARU delimitada e aprovada pelo município.

Mais recentemente, o fiscalista Rogério Ferreira Fernandes diz que se “incrementou a exigência para efeitos de aplicação desta taxa reduzida”. Não basta a declaração de como está numa área de reabilitação, mas tem de estar enquadrada numa operação mais vasta de reabilitação. A alteração vai “no sentido de as empreitadas de reabilitação urbana serem realizadas no quadro de uma Operação de Reabilitação Urbana (“ORU”) já aprovada (correspondente à estruturação concreta de intervenções a efetuar no interior da respetiva ARU)”.

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O tema foi clarificado entretanto com a aprovação do pacote Mais Habitação, na sequência do qual o fisco reconhece, em ofício circulado de 30 de outubro, que as operações de reabilitação urbana agora abrangidas pelo direito à taxa reduzida “deixam de estar sujeitas à existência de uma operação de reabilitação urbana”, mas a sua aplicação só produz efeitos para a frente. Ou seja, defende Rogério Fernandes Ferreira, “não vai ter efeitos interpretativos (retroativos) e, consequentemente, não se aplicará nas situações anteriores em que ‘vigorou’ aquela interpretação mais inovadora da AT”.

Presidente da APPII diz que Portugal é um caso de estudo internacional por causa da reabilitação urbana nos centros das cidades

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A interpretação “inovadora” da AT terá vingado sobretudo a partir de 2019 quando o fisco começou a exigir documentação que não estava na lei, “sem explicação e sem respaldo legal”, afirma o presidente da APPII. Para além da ORU, o fisco chegou também a pedir uma certificação da câmara atestando que aquele era um projeto de reabilitação. Esta exigência foi rejeitada em várias decisões arbitrais, consultadas pelo Observador, que deram razão aos contribuintes. No entanto, à medida que foi perdendo processos na arbitragem, o fisco afinou a estratégia para recusar a aplicação da taxa reduzida às empreitadas de reabilitação urbana. E em decisões mais recentes viu reconhecidas as suas objeções.

Rogério Fernandes Ferreira sublinha “a enorme resistência da Administração Tributária (AT) em aceitar a aplicação da taxa reduzida às operações relacionadas com empreitadas de reabilitação urbana, o que implicou diversas correções junto dos contribuintes”.

Na opinião do sócio da RFF (Rogério Fernandes Ferreira), esta interpretação ultrapassa as “disposições legais até aqui previstas no código do IVA”. Além de que “a jurisprudência tributária não tem sido unânime sobre o tema, existindo, nomeadamente em sede de arbitragem tributária, decisões arbitrais favoráveis e, também, desfavoráveis para o contribuinte, o que alimentou a dúvida relativamente à necessidade de aprovação de ORU, para efeitos da aplicação da taxa reduzida de IVA às empreitadas de reabilitação urbana”.

A exigência adicional por parte da AT está sustentada no regime jurídico de reabilitação urbana criado em 2009, mas o problema coloca-se sobretudo a partir da legislação de 2012 que abriu a possibilidade às autarquias de terem um prazo adicional para aprovarem as ORU quando antes estes instrumentos acompanhavam a criação das ARU.

“Nada mudou na lei”, mas a AT fez mais exigências

Uma consulta às decisões arbitrais dos últimos dois anos confirma esta instabilidade. Um dos acórdãos mais citados, de dezembro, dá razão ao fisco ao concluir que uma área de reabilitação urbana resulta “cumulativamente da aprovação da delimitação de áreas de reabilitação urbana e da aprovação de uma operação de reabilitação urbana a desenvolver nas áreas delimitadas, através de instrumento próprio ou de um plano de pormenor de reabilitação urbana”.

Neste caso, a autarquia de Vila Nova de Gaia certifica que se trata de uma operação de reabilitação urbana com base numa norma genérica, mas não há uma ORU que tenha sido alvo de discussão pública, aprovada em assembleia municipal e publicada. A sentença teve o voto contra de um dos três árbitros que alerta para as “sucessivas interpretações contraditórias por parte da AT e da jurisprudência arbitral” que levaram a uma alteração recente para “acolher uma certa interpretação acolhida pela AT”.

Para Clotilde Celorico Palma, árbitra vencida deste processo, o RJRU (Regime Jurídico da Reabilitação Urbana) prevê um conceito amplo de reabilitação urbana. Tal como a lista do Código do IVA para a taxa reduzida que, à data dos factos (antes da aprovação da nova legislação), “acolhe conceito amplo de reabilitação urbana, abrangendo, nomeadamente construção e casos de existência da ARU sem ORU”. Acrescenta, ainda, que o Código do IVA que coloca a reabilitação urbana na lista da taxa reduzida “não utiliza, não contém, nem emprega ou remete para qualquer certificação pela câmara municipal a consubstanciar tal operação”.

Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, 18 de maio de 2023. JOSÉ COELHO/LUSA

Vila Nova de Gaia foi um dos municípios que delimitou uma ARU (área de reabilitação urbana) sem aprovar uma ORU (operação de reabilitação urbana)

JOSÉ COELHO/LUSA

A árbitra defende que a decisão contra a qual votou entra “inclusive em contradições com orientações anteriormente defendidas pelos mesmos signatários (…) na medida em que: 1. Conclui que para o enquadramento como empreitada de reabilitação urbana é exigida a aprovação da ORU, requisito que não é exigido pela lei. 2. Desconsidera os elementos apresentados e disponíveis que demonstram o reconhecimento em causa no conceito de empreitada de reabilitação urbana definida no Regime Jurídico de Reabilitação Urbana.”

Neste caso em que a arbitragem foi favorável ao fisco estava em causa o pagamento de IVA no valor de quase um milhão de euros (993 mil euros).

Em março de 2023 outra arbitragem analisou um pedido — recusado pela AT — de correção do IVA auto-liquidado de 23% para 6%, dando razão ao fisco por este exigir uma certificação pela entidade competente, neste caso a inserção numa estratégia ou programa estratégico de reabilitação urbana que só fica definido com a aprovação da respetiva operação de reabilitação urbana.

Também houve um voto vencido, questionando a conclusão de que uma empreitada de reabilitação urbana deve ser acompanhada de uma declaração específica emitida pela autarquia. Citando a própria Câmara de Lisboa, segundo a qual a CML, “emite uma certidão de localização de operação urbanística em área de reabilitação urbana”, a árbitra Catarina Belim considera que o contribuinte “agiu como um bom pai de família, documentando a empreitada com elementos adicionais contratuais (…)” ao obter a certidão ARU.

Já a segunda certificação, de que se trata de uma operação de reabilitação urbana, é uma exigência recente do fisco relativa a uma norma que não mudou há pelo menos 13 anos. “Nada mudou na lei” (…) O que mudou foram as condições impostas pela administração tributária para permitir o benefício da taxa reduzida (mas não é à administração, mas sim ao legislador nacional, que compete tal atribuição).”

Mais receita, menos derrotas e mais prémios

Porque se tornou o fisco mais exigente ? O presidente da APPII, Hugo Santos Ferreira, admite que a AT quis ir buscar mais receita de IVA, mas o resultado, diz ao Observador, foi o contrário. Isto porque muitos projetos pararam por causa do quadro de dúvida e incerteza gerado e também devido a uma subida da litigância. A diferença entre 6% e 23% no projeto de dezenas de milhões de euros é muito significativa.

“Fomos prejudicados em duas mãos”, conclui Hugo Santos Ferreira. Além do travão na dinâmica de reabilitação (que reconhece ser motivado também por outros fatores), há menos receita. “Ao contrário do que o Governo/fisco achavam — que ia arrecadar mais receita — passou a receber zero. 23% sobre zero é pior que 6% sobre alguma coisa”.

Mas há outras explicações. Até 2019, os dois principais indicadores que contavam para a avaliação dos trabalhadores do fisco eram o valor da cobrança coerciva e as correções de imposto devido feitas em inspeções.

Em 2020, os indicadores passaram a privilegiar a eficácia da cobrança — seja voluntária, seja coerciva — e o número e complexidade das ações inspetivas. O maior foco nestes critérios dá mais peso ao encaixe adicional na cobrança de impostos do que às correções de impostos a liquidar que não resultam em receita, que é o que acontece quando a AT perde os processos de impugnação instaurados pelos contribuintes. Já em 2022 passou também a ser considerada a taxa de litigância.

Da avaliação depende o pagamento do prémio anual que, em 2022, atingiu os 53,6 milhões de euros (5% do arrecadamento coercivo de impostos, o que terá dado em média de 5.000 euros a cada trabalhador).

Em 2022 e em 2023, o fisco perdeu alguns processos em arbitragem, na sequência de impugnações da recusa em aplicar a taxa de 6% a projetos de reabilitação urbana (ou reembolsar o excedente).

Só num processo em Lisboa, fisco foi condenado em decisão arbitral a reembolsar 2,5 milhões de IVA reclamado

MÁRIO CRUZ/LUSA

Num dos processos relativo a uma obra em Lisboa, a AT exigia comunicação prévia e respetiva aprovação do licenciamento pelo município para aceitar que a obra em causa fosse de reabilitação urbana. Para o tribunal, “o legislador tributário não previu – porque não quis” — na lista anexa ao Código do IVA “a obrigação de a aplicação da taxa reduzida de IVA a empreitadas de reabilitação urbana pressupor a prévia apreciação e aprovação do respetivo pedido de licenciamento por parte da entidade competente”. Esta decisão de 2o22 condenou o fisco a reembolsar 228 mil euros de IVA auto-liquidado além dos 6%.

Outra decisão, de novembro de 2023, considera que a taxa reduzida do IVA não obriga a qualquer certificação por parte da autarquia, tendo o contribuinte, que reclamou, conseguido reaver 131,3 mil euros. O mesmo é assinalado numa sentença do centro e arbitragem de maio passado, no qual se diz também que “tal hipótese não encontra o mínimo suporte na lei, pelo que o seu acolhimento no atual contexto violaria o princípio da legalidade tributária”. Mais uma derrota de 290 mil euros para a AT.

A derrota mais pesada das consultadas pelo Observador é de janeiro de 2023 quando a AT foi condenada a reembolsar 2,5 milhões de euros de IVA mais juros. Apesar de dar razão ao argumento do fisco de que a obra tem que estar sujeita a uma operação de reabilitação urbana, para além da localização em ARU, os árbitros consideraram que essa operação existia por via da alteração da ARU de Lisboa que, ao mesmo tempo, alterou a respetiva operação de reabilitação urbana simples.

O que muda com o pacote Mais Habitação?

O pacote Mais Habitação, que entrou em vigor o ano passado, acabou por vir clarificar as dúvidas sobre as condições que uma obra de reabilitação tem de preencher para aceder ao IVA reduzido.

O jurista especialista em impostos Rogério Ferreira Fernandes defende que a nova redação “é conciliadora” e permite “pacificar o tema da aplicação da taxa reduzida de IVA no sentido que vem sendo defendido pelos contribuintes”.

O Mais Habitação define que a “taxa reduzida de 6% aplica-se às empreitadas de reabilitação de edifícios, de construção ou reabilitação de equipamentos de utilização coletiva de natureza pública, localizados em áreas de reabilitação urbana (áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, zonas de intervenção das sociedades de reabilitação urbana e outras) delimitadas nos termos legais, ou realizadas no âmbito de operações de requalificação e reabilitação de reconhecido interesse público nacional”. Ou seja, o próprio fisco considera que cai a dupla exigência de estar numa ARU e integrada numa ORU, bastando uma das condições.

Já o presidente da APPII (Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários) considera que o programa adota uma visão mais restritiva ao reduzir a margem de aplicação da taxa de 6% a empreitadas de edifícios, excluindo outras intervenções feitas pelos promotores num projeto de reabilitação. No quadro legal anterior, os 6% eram aplicáveis a empreitadas de reabilitação urbana. Para Hugo Santos Ferreira, não se tratou de uma clarificação, mas sim de “uma tomada de posição, uma decisão política”, que, do seu ponto de vista, contribui para a redução do número de projetos que podem vir a tirar partido desse incentivo fiscal.

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