Pelé foi muito mais do que um jogador de futebol. E não só porque foi, provavelmente, o melhor que já pisou os relvados da Terra. Pelé foi ator, foi ministro, foi embaixador das Nações Unidas. Foi compositor, foi licenciado e parou uma guerra na Nigéria. No dia em que o mundo se despediu do brasileiro, importa recordar todas as outras camisolas que Pelé vestiu para além da número 10.
Um ator que fez 16 filmes e até interpretou um jornalista desportivo chamado Nascimento
A carreira de ator de Pelé foi extensa — participou em 16 produções, entre filmes e documentários, com o primeiro em 1962 e o último em 2017 –, é certo, mas depressa ficou claro que o talento do brasileiro estava restrito aos relvados. Em 1969, foi o destaque da novela “Os Estranhos”, sobre o contacto entre humanos e aliens, numa ideia propositadamente desenhada para motivar interesse nas missões Apollo.
O filme mais visto de Pelé terá mesmo sido “Fuga para a Vitória”, de 1981, quando partilhou o ecrã com Sylvester Stallone e Michael Caine mas também com os antigos jogadores Bobby Moore, Osvaldo Ardilles e Kazimierz Deyna. Aí, porém, até era fácil brilhar: o fio condutor do filme realizado por John Huston tinha como pano de fundo a 2.ª Guerra Mundial e um jogo de futebol entre prisioneiros dos Aliados e uma equipa de soldados alemães na Paris ocupada.
O brasileiro voltaria a trabalhar com Huston dois anos depois, em 1983 e em “A vitória do mais fraco”, ainda que aí tenha surgido na sua própria pele. No Brasil, porém, o maior sucesso cinematográfico do antigo jogador brasileiro foi “Os Trapalhões e o Rei do Futebol”, de 1986. O filme foi visto por mais de três milhões de pessoas nos cinemas, é transmitido recorrentemente na televisão e interpretava o papel de um jornalista desportiva — curiosamente, o personagem chamava-se Nascimento, o apelido de Pelé.
Naturalmente e ao longo dos anos, a carreira do brasileiro foi tema de filmes e documentários. Neste capítulo, onde Pelé surgiu sempre na sua própria pele e sem representar qualquer personagem, destacam-se “Pelé Eterno” — de 2004, que conta a história do golo mais bonito que o jogador terá marcado e que não foi captado por nenhuma câmera — e o mais recente “Pelé”, de 2021, que recorda os três Mundiais que conquistou com o Brasil.
Um político que foi Ministro do Desporto e ainda pensou numa candidatura presidencial
A ligação de Pelé à política começou essencialmente em 1995, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso o nomeou ministro do Desporto. Durante esse período, o antigo jogador foi o principal entusiasta de uma proposta de lei que pretendia reduzir a corrupção no futebol brasileiro — que ficou naturalmente conhecida como a “Lei Pelé”. Acusado de estar envolvido num escândalo de corrupção que desviou 700 mil dólares da UNICEF, deixou o cargo em 2001.
Na dimensão do mito, porém, ficou sempre a ideia de que Pelé ambicionava ser Presidente do Brasil. A ideia chegou a ser mais do que uma ideia em 1989, nos dias que antecederam a eleição de Fernando Collor de Mello, quando a Folha de S. Paulo adiantou que o jogador queria ser candidato em 1994. “Ele afirmou que se considera um socialista e que pretende criar um partido próprio, caso se decida pela vida política”, referia a notícia.
Na altura, o jornal até citava Pelé e garantia que o jogador tinha abordado o assunto numa conferência de imprensa para apresentar uma nova empresa — onde também recusou apoiar Collor de Mello mas rejeitou revelar em quem iria votar. “Se eu for candidato, vou procurar fazer um plano com antecedência e participar nos debates na televisão”, teria dito.
Mas esta não foi a única vez que Pelé falou sobre a possibilidade de ser candidato presidencial. Em imagens recentemente divulgadas pela TV Globo, é possível ver o jogador brasileiro a recordar um momento durante a ditadura militar no país em que foi abordado para tentar ser eleito para o Planalto. Na altura, porém, o contrato que tinha assinado com a Warner Communications, a dona do New York Cosmos onde jogava, não permitiu que aceitasse a aventura política.
“Daria tempo para me preparar por oito anos. Estudar, entrar num curso… Nos Estados Unidos ou aqui mesmo, no Brasil. E aí eu talvez até pensasse nisso. Se acontecer naturalmente como tudo aconteceu na minha vida, eu não vou fugir da responsabilidade. Se pintar, eu vou ser Presidente da República mesmo”, referiu nas tais imagens da TV Globo.
Uma estrela que fez uma guerra parar durante 90 minutos
É uma das histórias mais conhecidas e reconhecidas da vida de Pelé. Em 1969, o Santos decidiu realizar um estágio em África e marcou jogos para a atual República Democrática do Congo, o atual Congo a atual Nigéria — na altura, ainda Congo-Kinshasa, Congo-Brazzaville e Biafra. E foi precisamente no último destino que a guerra parou por causa do jogador brasileiro.
Na altura, no final dos anos 60, o mundo estava a olhar com moderada atenção para a repressão violenta que o governo nigeriano exercia sobre os biafrenses. Tanto a ONU como vários artistas — Joan Baez, Jimi Hendrix e John Lennon à cabeça, a geração Woodstock — tinham tentado apelar ao fim do conflito, sempre sem grande sucesso.
Contudo, quando o Santos estava na Nigéria, o jogo particular em que Pelé ia participar motivou tréguas de 90 minutos na guerra civil que durava ininterruptamente há vários anos. Depois de o clube brasileiro sair de África e regressar a casa, a guerra recomeçou. Mas, durante 90 minutos, Pelé parou uma guerra.
Um Embaixador das Nações Unidas que criou a própria fundação
Política, cinema e música à parte, o verdadeiro papel de Pelé depois de deixar os relvados esteve sempre ligado à solidariedade e às causas sociais. O brasileiro assumiu o cargo de Embaixador das Nações Unidas para a Ecologia e o Ambiente em 1992, acumulando as funções de Embaixador da Boa Vontade dois anos depois, e os esforços valeram-lhe até um doutoramento honoris causa na Universidade de Edimburgo pelos “contributos significativos para as causas humanitárias e ambientais”.
Pelé apoiou várias associações e grupos de solidariedade, como a Ação pelas Crianças do Brasil, a Gols Pela Vida, a SOS Children’s Villages, a The Littlest Lamb e a Prince’s Rainforests Project. Em 2016, leiloou mais de 1600 objetos da coleção pessoal e angariou mais de três milhões de dólares para causas sociais. Já em 2018, fundou a própria organização de solidariedade, a Fundação Pelé, que se dedica a apoiar crianças desfavorecidas no mundo inteiro.
Um licenciado em Educação Física
É uma das facetas menos conhecidas de Pelé. No ano em que conquistou o último de três Mundiais com o Brasil, em 1970, o jogador também se licenciou em Educação Física pela Unimes, a Universidade Metropolitana de Santos. Muito incentivado pela mãe, a conhecida D. Celeste, inscreveu-se no curso um ano depois de este ser criado. Durante o percurso na universidade, para além do óbvio e natural futebol, destacou-se no voleibol, no basquetebol e nas aulas de psicologia.
Em 2018, como forma de homenagem, a Unimes decidiu atribuir-lhe um doutoramento honoris causa numa cerimónia pública. “A importância desse título é a mensagem que posso deixar para os amigos, familiares, as novas gerações. Tem de ter uma base, tem de estudar, porque a fama só não adianta. Tive a felicidade de me formar na Unimes e esse é o grande valor desse título”, disse, na altura, Pelé.
Um compositor que aprendeu a tocar guitarra com um colega de equipa
O interesse de Pelé pela música começou desde cedo, através do pai, que tocava cavaquinho. O jogador aprendeu a tocar guitarra com Tite, colega de equipa dos tempos do Santos, e estreou-se nas aventuras musicais ainda nos anos 60 com duas músicas que compôs e que cantou com Elis Regina.
Em 1977, lançou o álbum “Pelé”, a banda sonora do documentário com o mesmo nome e onde seis das 13 faixas eram composições suas. No mesmo ano, o ano em que terminou a carreira, surgiu ao lado de Roberto Carlos num programa especial do artista na televisão, integrando depois o álbum “Clube da Criança”, de Xuxa, cantando uma música que ele próprio também compôs.
Pelé gravou a música infantil “ABC do Bicho-Papão” já em 1998, numa canção depois utilizada pelo Ministério da Educação do Brasil em anúncios televisivos. Em 2006, ainda lançou o álbum “Pelé Ginga”, com a participação de Gilberto Gil, e celebrou a realização dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro com a música “Esperança”, que compôs e interpretou.