“É uma vergonha. Será este o futuro da Justiça em Portugal? Será que, afinal, algo ficou efetivamente conspurcado? Ainda não sabemos.”
Ao segundo dia de alegações finais do processo relacionado com o Football Leaks, Rita Castanheira Neves, representante da Ordem dos Advogados, deixou no ar a dúvida sobre como ficará o sistema judicial no país depois deste caso e sobre o que é aceitável, ou não, na obtenção de informação por quem não faz parte das autoridades.
Com a sala do Tribunal Central Criminal de Lisboa mais vazia do que no primeiro dia de alegações, e com Rui Pinto e Aníbal Pinto — os dois arguidos deste processo para quem o Ministério Público pediu pena de prisão — sentados precisamente nos mesmos lugares que ocuparam esta quarta-feira, ouviram-se apenas as declarações da representante da Ordem dos Advogados e de João Azevedo, advogado de Aníbal Pinto.
As informações obtidas por Rui Pinto, que “agora jazem noutros processos”
Se, no primeiro dia de alegações, um dos assuntos principais foi a distinção entre “interesse público” e “interesse do público”, esta quinta-feira a discussão focou-se, sobretudo, no dever de sigilo profissional dos advogados. E este dever de segredo em exercício da profissão, para a Ordem dos Advogados, “foi posto em causa pela ação do arguido Rui Pinto”.
Foram dezenas os advogados que viram as suas caixas de correio invadidas. Muitos terão de lidar com esses factos fora dos autos. Muitos outros, se calhar, nem chegarão a saber desta invasão.”
Para a Ordem dos Advogados, a lógica neste processo é simples: tendo o alegado pirata informático conseguido acesso às contas de correio eletrónico de vários advogados, então a informação relacionada com os processos que os respetivos advogados tinham em mãos estaria também comprometida. Por isso, o sigilo profissional está, neste caso, comprometido com o acesso indevido e possível divulgação do conteúdo dos e-mails.
Mas as alegações da Ordem dos Advogados não ficaram por aqui. Praticamente no final da sua intervenção, a advogada Rita Castanheira Neves quis dar um exemplo para, logo a seguir, questionar o futuro da Justiça em Portugal.
Pode assustar qualquer um ouvir o que foi dito pelo assistente João Medeiros, que diz que já se deparou noutros processos, enquanto advogado, com notas de rodapé em que são citados e-mails trocados entre ele e outro advogado, relativamente a processos que foram cedidos deste processo.”
Para a Ordem, “é incompreensível” que as informações obtidas por Rui Pinto “jazem agora noutros processos”. “Como é que se permite que se promovam medidas de coação ou se responda a medidas de coação com notas de rodapé em que se andaram a vasculhar e-mails de advogados que foram ilicitamente acedidos?”
Perante a incógnita, permanece, no entanto, uma certeza para a Ordem dos Advogados: caso esta prática se torne comum, “se estas esferas não forem salvaguardadas”, então os primeiros a perder serão mesmo os arguidos, que “deixarão de ter uma única pessoa em quem confiar a sua defesa”.
Rita Castanheira Neves explicou, aliás, que a Ordem dos Advogados decidiu constituir-se assistente neste processo porque também os domínios desta Ordem terão sido invadidos, através do acesso a e-mails de advogados que têm as suas contas de correio no domínio da Ordem. “Não foram só os domínios da PLMJ que foram violados, houve advogados da PLMJ que tinham e-mail no domínio da Ordem dos Advogados e que foram também invadidos.”
Em pouco mais de meia hora, a Ordem dos Advogados deixou um recado sobre o funcionamento da Justiça e inúmeras críticas aos atos de Rui Pinto. “Se nós permitirmos que a justiça seja feita pelas próprias mãos, a justiça vacila. Qual seria o critério? Valeria arrancar olhos à pessoa que estava a assaltar. Não são, com todo o respeito, os ruis pintos que se interessam pelo combate à corrupção. Somos todos nós. ”
“O dr. Aníbal Pinto merecia uma medalha”
Mais longas foram as alegações de João Azevedo, que representa Aníbal Pinto, advogado de Rui Pinto quando o alegado pirata informático trocou e-mails com Nélio Lucas, do fundo de investimento Doyen, sobre um alegado pagamento em troca do seu silêncio. Mais de duas horas de alegações depois, interrompidas pela hora de almoço, o advogado pediu então a absolvição de Aníbal Pinto do crime de extorsão na forma tentada.
“O dr. Aníbal Pinto tem sempre o mesmo discurso. Desde 11 de outubro de 2015, escreveu sempre que nunca pactuaria com qualquer ilegalidade”, referiu o advogado. Aliás, é precisamente por ter recusado sempre o pagamento proposto por Nélio Lucas, de um milhão de euros, em troca da entrega de Rui Pinto, que João Azevedo considerou que “o dr. Aníbal Pinto até merecia uma medalha”.
Ao contrário do que aconteceu até agora, em que Rui Pinto acenava sempre negativamente com a cabeça, o alegado pirata informático concordou com várias afirmações ditas por João Azevedo. Sobretudo em relação às críticas deixadas à acusação: “O Ministério Público diz que o arguido Rui Pinto confessou e admitiu o acesso, mas esqueceu-se de dizer que o arguido Rui Pinto admitiu que o dr. Aníbal Pinto não sabia, não estava a par.”
No entanto, João Azevedo não deixou as referências a Rui Pinto de lado e garantiu que Aníbal Pinto “foi enganado” pelo alegado pirata informático e por Pedro Henriques, representante de Nélio Lucas.
Os três dias de alegações finais deste julgamento terminam esta sexta-feira, dia em que serão ouvidos os advogados que representam Rui Pinto.