Com o habitual atraso de cerca de meia hora, Rui Pinto retomou esta segunda-feira as sessões de julgamento do Football Leaks. Tal como aconteceu na semana passada, o alegado pirata informático continuou a falar sobre o fundo de investimento Doyen, sobre a divulgação do Football Leaks e começou a responder às questões do coletivo de juízes relacionadas com o ataque à Federação Portuguesa de Futebol. Além disso, Rui Pinto revelou não ser o criador do blogue “Mercado de Benfica”, que divulgou os e-mails do clube. “O autor trabalhava no Football Leaks”, explicou.

Aliás, Rui Pinto admitiu que teve várias discussões com o autor do blogue, que é seu amigo há “vários anos”: “Eu queria que a informação fosse dada ao consórcio de jornalistas e ele, por estupidez, ou teimosia, decidiu criar o blogue. Esse teimoso insistiu que queria fazer as coisas de outra maneira”. Sobre a divulgação dos e-mails do Benfica, Rui Pinto disse que a situação foi “lamentável”. “No Football Leaks nunca foram divulgadas caixas de correio. Eu não consegui fazer nada. Tentei, mas não consegui.”

A única coisa que posso dizer é que lamento profundamente que essa informação tenha sido divulgada, mas não posso pedir desculpa por uma coisa que não fiz.”

Há, no entanto, uma coincidência: o blogue não publicou mais informação a partir do momento em que Rui Pinto foi detido, em 2019. “Fui detido e os outros assustaram-se”, justificou, acrescentando ter sido sempre ele a assumir os riscos do Football Leaks: “Houve um contacto de um serviço de inteligência de um país da UE sobre obtenção de informação relativa à máfia cazaque, a Doyen. Fizeram-me uma proposta, pensei sobre ela e disse que não. E houve outra situação em que um cidadão ucraniano entrou em contacto com o Football Leaks a oferecer informação sobre o Shakhtar Donetsk e queria dinheiro em troca da informação. Tentei convencê-lo e fui em novembro a Lviv e convenci-o a dar a informação sem pagar um cêntimo”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em relação ao Football Leaks, Rui Pinto admitiu que esperava ganhar algum dinheiro em contribuições, assim que os documentos começaram a ser divulgados. Mas não foi isso que aconteceu. “Nunca recebemos nenhuma doação”, avançou, acrescentando como justificação que “as pessoas não gostam de gastar dinheiro”.

Estava à espera do suficiente, de uns trocozitos para continuar o projeto. Acabou por dar só prejuízo.”

Ainda antes de começar a falar do ataque à Federação Portuguesa de Futebol, Rui Pinto voltou a explicar algumas questões sobre a história com o fundo de investimento Doyen. Aliás, segundo a sua versão, Nélio Lucas teve acesso aos dados pessoais de Rui Pinto, que estariam no processo das ilhas Caimão. E acusou Rogério Bravo, inspetor-chefe da PJ, por ter fornecido os seus dados a Nélio Lucas. Aliás, Rogério Bravo já foi investigado duas vezes pelas alegadas ligações à Doyen, mas os processos foram arquivados.

Tiveram acesso aos meus dados pessoais. Depois, na posse dessa informação, começaram a ameaçar-me por e-mail, que foram enviados para a caixa de e-mail do Football Leaks, com as ameaças de que, se a divulgação (dos documentos relacionados com os contratos do futebol) não parasse, tudo seria publicado — dados pessoais, morada dos meus pais. Como eu não cedi, acabaram por divulgar.”

E quando Rui Pinto recebeu os tais e-mails “com as ameaças”, saltou à vista uma particularidade — todos tinham “um pequeno código oculto”. “Sempre que se abria o conteúdo desse e-mail, o endereço de IP era transmitido ao autor desse e-mail“, explicou.

Rui Pinto sobre a tentativa de extorsão à Doyen: “Não estava consciencializado sobre o que significava a palavra extorsão”

Mas as comunicações com a Doyen continuaram e, mesmo sabendo que estava a ser procurado pela Polícia Judiciária, Rui Pinto não mudou de morada, nem nenhum hábito na sua vida. E a justificação é simples: “Isto tem a ver com espírito rebelde e alguma infantilidade”. “Sabia que estava a ser procurado. Meritíssima, eu estava a viver em Budapeste, não mudei de residência. As pessoas devem evitar ser contaminadas pelo medo. Sabia perfeitamente quem era a Doyen. Mantive a minha vida normal”.

Os acessos à Federação Portuguesa de Futebol em 2015

Já na sessão da tarde, Rui Pinto admitiu que conseguiu aceder ao departamento de registos e transferências da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), em novembro de 2015. Neste departamento, teve acesso a contratos de jogadores e a transferências. A acusação feita pelo Ministério Pública indica que os acesso à FPF foi feito em março de 2018, mas o alegado pirata informático negou que tenham sido feitos por si. “Não estava a monitorizar tudo o que se passava”, disse Rui Pinto. “Não realizei estes acessos de 2018, nem tive sequer conhecimento”, acrescentou.

A Federação Portuguesa de Futebol “recebia dos clubes e recebia da Liga todo o tipo de documentação, era o sítio ideal para consultar este tipo de informação”, explicou Rui Pinto ao coletivo de juízes liderado pela juíza Margarida Alves. Além disso, “tinham algumas informações que iam além daquilo que era possível encontrar em fontes abertas, em alguns casos empresas offshore“. No entanto, apesar de considerar existir pouca transparência nesta instituição e de não existir também o “devido cuidado para apreciar a idoneidade dos intermediários”, Rui Pinto disse que nenhuma desta informação foi publicada no Football Leaks.

A sociedade de advogados PLMJ e Isabel dos Santos

Rui Pinto está também acusado de aceder indevidamente ao sistema informático da sociedade de advogados PLMJ. Aqui, o alegado pirata informático voltou a contraria a acusação, dizendo que não foi a divulgação de um comunicado desta sociedade de advogados, em 2018, que motivou os acessos indevidos.

Em maio de 2017 foram divulgados os ‘Malta files’. Foi possível verificar um grande conjunto de sociedades pertencentes a Isabel dos Santos. Meses depois, em agosto de 2017, saiu uma notícia relativa à barragem de Caculo Cabaça. Foi um conjunto de informações que tive acesso meses antes. A peça chave de todas as estruturas de Isabel dos Santos era uma advogada da PLMJ, Inês Pinto da Costa.”

Aliás, Rui Pinto admitiu que teve acesso às caixas de correio e ao conteúdo das pastas de Inês Pinto da Costa, cuja informação deu origem, mais tarde, ao Luanda Leaks.

Esta é a terceira sessão em que Rui Pinto presta declarações em tribunal, no âmbito do processo Football Leaks. Na primeira sessão, que decorreu há duas semanas, Rui Pinto disse ao coletivo de juízes que estava a trabalhar com os serviços secretos da Ucrânia, analisando imagens de satélite e de câmaras de vigilância, mas falou sobretudo sobre os momentos que deram origem ao Football Leaks. Ainda assim, mesmo assumindo que teve acesso às contas de e-mail de vários trabalhadores do Sporting, Rui Pinto sempre negou dizer quem trabalhava consigo.

na segunda sessão, que aconteceu na passada segunda-feira, o principal assunto foi o acesso feito às contas do fundo de investimento Doyen e a tentativa de extorsão. E aqui, Rui Pinto explicou que não fez qualquer acesso inicial às contas, tendo apenas conhecimento de que isso estava a acontecer. Já em relação à tentativa de extorsão, reconheceu que “foi tudo uma infantilidade” e que “não sabia o que era extorsão”.

Rui Pinto. O rapaz do “cabelito espetado” que já entrava nos computadores da escola antes de ser o “John” do Football Leaks

Rui Pinto responde em tribunal por 90 crimes relacionados com o acesso aos sistemas informáticos e e-mails de pessoas com ligações ao Sporting, à Federação Portuguesa de Futebol, ao fundo de investimento Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Procuradoria-geral da República e à Ordem dos Advogados. Amadeu Guerra, antigo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, José Miguel Júdice, advogado, Jorge Jesus, treinador, e Bruno de Carvalho, antigo presidente do Sporting, são alguns dos visados.