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O tom, cada vez mais assertivo, com que a República Popular da China reclama que Taiwan é parte “inalienável” do seu território, é similar àquele com que a Rússia afirma que a Ucrânia é “parte integral da Rússia” e nunca foi realmente um país. E tal como a retórica russa é desmentida pelos factos históricos (ver De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia e De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado”), também a tese de que Taiwan é uma província chinesa como qualquer outra e que é chinesa desde tempos imemoriais tem muito que se lhe diga.
Os verdadeiros taiwaneses
O facto de Taiwan estar situada a apenas 180 Km da costa da China, de a sua população actual ser hoje constituída maioritariamente por chineses da etnia Han (a mesma que domina na China continental) e de as línguas dominantes na ilha serem o guoyu (ou huayu ou mandarim taiwanês), o hokkien taiwanês e o hakka taiwanês, que são variantes locais, respectivamente, do mandarim, do hokkien e do hakka, que são línguas dominantes nas províncias da China continental que estão mais próximas de Taiwan, sugere, aparentemente, que as histórias de Taiwan e da China continental estão intimamente entrelaçadas há milénios.
Porém, ao lado dos Han, que representam hoje 95-97% dos 23.9 milhões de habitantes da ilha, existem 2.3% de “indígenas”, tal como, a par das três línguas dominantes, nalguns locais de Taiwan subsistem vestígios de “línguas formosanas”. O mapa linguístico da ilha é complexo, pois a esmagadora maioria dos habitantes fala as três línguas dominantes, que têm algum grau de inteligibilidade mútua e cujo uso é oficialmente reconhecido em todo o território, mas a existência, ainda que residual, de 16 “línguas formosanas” (que são reconhecidas oficialmente mas cujo uso não tem carácter obrigatório) faz suspeitar que a ilha tem uma história que não condiz com a narrativa oficial de Pequim.
Tal como os “indígenas taiwaneses” não são geneticamente aparentados aos Han e outras etnias relevantes da China continental de hoje, também as “línguas formosanas” não têm vínculo com as línguas dominantes no continente – do ponto de vista genético e linguístico, a população original da ilha insere-se no universo austronésio, ou seja, é afim dos povos que hoje são predominantes nalgumas regiões insulares e costeiras do Sudeste Asiático (o que inclui a Indonésia e as Filipinas), no litoral da Nova Guiné, na Melanésia, na Polinésia e (por deslocado que possa parecer) Madagáscar. O mais surpreendente – visto deste lado do mundo – é que Taiwan terá sido, segundo apontam os indícios arqueológicos e linguísticos – o foco de irradiação dos povos austronésios para o vasto território que se estende de Madagáscar, a sudoeste, até à Nova Zelândia, a sudeste, à Ilha de Páscoa, a este, e ao Hawaii, a nordeste.
Embora os mais antigos vestígios da presença em Taiwan do Homo sapiens tenham 20.000 a 30.000 anos, é possível que os ancestrais dos aborígenes taiwaneses e dos restantes austronésios tenham chegado à ilha c.3000 a.C., vindos do continente asiático. Este povo, que cultivava arroz, painço e cana-de-açúcar e fabricava olaria, rapidamente se tornou dominante no litoral de Taiwan, saltando para as Filipinas, por volta de 2200 a.C. A sua difusão alargou-se em seguida a Bornéu (c.1500 a.C.), às Ilhas Marianas (c.1500 a.C.), às Ilhas Salomão (c.1300 a.C.) e ao litoral sul do Vietnam (1000 a.C.). Naturalmente, foi preciso mais algum tempo até os austronésios desenvolverem técnicas de navegação que lhes permitiram viagens oceânicas mais longas: Madagáscar só foi colonizada em c.500 d.C., o Hawaii em c.900 d.C. e a Nova Zelândia é a que tem ocupação mais recente, datada de c.1200 d.C.
Para encerrar este capítulo, há que esclarecer a estranheza que poderá suscitar a subsistência de 16 “línguas formosanas” numa ilha com uma área de apenas 35.800 Km2 (39% da área de Portugal). Uma explicação estará na topografia extremamente acidentada da ilha (a maior elevação atinge 3952 metros e existem 164 picos com mais de 3000 metros) e no seu denso coberto vegetal, factores que, ao dificultar as deslocações, favorecem a criação de “ilhas” linguísticas. Pela mesma razão, a Nova Guiné, uma ilha de 786.000 Km2 com um relevo tão acidentado que até possui glaciares (apesar de ser atravessada pelo Equador), oferece um cardápio de c.1100 línguas, das quais 800 são de origem papua e c.300 de origem austronésia. Deve realçar-se que estes números dizem respeito a línguas vivas e que, entretanto, se terão extinguido muitas outras – em Taiwan só nos séculos XIX-XX extinguiram-se oito línguas e é natural que antes da instalação de europeus e chineses a diversidade linguística da ilha fosse ainda maior.
Entretanto, na China continental…
Durante muitos séculos, o conceito de China na óptica dos próprios chineses excluiu territórios ultramarinos: o Império Chinês lutou para expandir-se no continente asiático e ocupou algumas ilhas costeiras, mas nunca manifestou aspirações a dominar territórios que estivessem para lá da vista de quem contemplasse o mar – e isto apesar de, em determinados períodos (nomeadamente durante o primeiro terço do século XV), o Império ter possuído uma das mais poderosas marinhas do mundo.
Decorreu daqui que o primeiro contacto de chineses com Taiwan só terá ocorrido em 230, isto se admitirmos que a ilha de “Yizhou”, mencionada em registos da dinastia Sun Wu (século III) corresponde efectivamente a Taiwan. Mas nem “Yizhou” nem o arquipélago de “Liuqiu” (que descreve um arco entre o extremo nordeste de Taiwan e o extremo sudoeste do Japão e que os japoneses designam por Ryūkyū), descoberto no século VII, parecem ter despertado o apetite do Império Chinês. Só em 1292, no reinado de Kublai Khan (com a China sob domínio mongol), há notícia da presença em Taiwan de uma missão oficial proveniente do continente. Por ironia, tratava-se de um erro, pois o destino eram as Ilhas Liuqiu (a confusão resulta de, para os chineses de então, a designação “Liuqiu” abranger, por vezes, também Taiwan), e, de qualquer modo, a recepção hostil dos taiwaneses pôs os emissários de Kublai Khan em fuga. Seria preciso esperar mais de meio século para que surgisse o primeiro relato escrito de uma visita a Taiwan, efectuada em 1349 por Wang Dayuan, um viajante inveterado que chegou ao Ceilão e à Austrália.
Ao longo das décadas seguintes, a presença chinesa em Taiwan foi esporádica, pouco numerosa e dispersa, consistindo maioritariamente em pescadores e piratas e cingindo-se ao litoral, quanto mais não fosse por as tribos das terras altas do interior serem entusiásticos praticantes da caça de cabeças, um “hobby” pouco favorável ao comércio ou ao turismo.
A presença chinesa foi mais sólida no arquipélago de Penghu, situado entre Taiwan e o continente asiático, mas era constituída quase exclusivamente por pequenas comunidades piscatórias.
Chegam os europeus
Assim sendo, quando, por volta de 1542, mercadores portugueses avistaram a ilha e, talvez inspirados pela vegetação luxuriante e pelas falésias imponentes, a baptizaram como Formosa, esta ainda era habitada maioritariamente por povos austronésios. Portugal não reclamou a posse da ilha, pois estava longe de possuir os meios humanos e materiais para guarnecer e explorar um império que se estendia por África, América e Ásia, e os portugueses que demandavam aquelas águas eram pouco numerosos e estavam focados no lucrativo comércio com o Império Chinês, pelo que não prestaram qualquer atenção àquela ilha desencorajadoramente montanhosa, infestada de malária e de tribos “primitivas” e hostis e desprovida de mercadorias apetecíveis.
Mas a verdade é que Taiwan ficou conhecida no Ocidente, entre meados do século XVI e o século XX, como Formosa, o que contrasta com a inexistência de um único topónimo de origem portuguesa na China continental. A prevalência do topónimo Formosa durante séculos tem uma explicação óbvia: o desinteresse da China por Taiwan era tal que a ilha nem sequer tinha uma designação formal em chinês.
Já os holandeses entenderam que Taiwan seria uma boa base para desafiar o domínio português no comércio com a China e, após serem escorraçados de Macau pelos portugueses e de Penghu pelos chineses, começaram a estabelecer-se na ilha na década de 1620, numa altura em que estimaram que viveriam na ilha apenas cerca de 1500 chineses.
Os espanhóis viram no forte holandês de Zeelandia, que começou a ser construído em 1624 numa ilhota na costa sudoeste de Taiwan, uma potencial ameaça aos seus interesses nas Filipinas, pelo que em 1626 responderam com a construção de uma fortificação num local numa baía na costa nordeste de Taiwan, que baptizaram como Santisima Trinidad. Ao mesmo tempo, preocupados com o afluxo de europeus dotados de armas de fogo e propensão para a rapina, algumas tribos indígenas na costa oeste da ilha constituíram uma aliança que abrangia 27 aldeias e ficou conhecida como o reino de Middag.
Para lá de leves marcas dispersas, o maior contributo de holandeses e espanhóis para a toponímia taiwanesa foi o nome da própria ilha: o Fort Zeelandia ficava numa ilhota que os holandeses designaram por “Tayouan” ou “Tayowan”, provavelmente por associação com o povo indígena que habitava a região, os Taivoan. O nome viria a evoluir para Tainan e Taiwan, acabando este último nome por designar toda a ilha, uma prática que foi também adoptada formalmente pelo Império Chinês em 1684. Já a forma Tainan viria a designar a cidade que se desenvolveu perto de Fort Zeelandia e que é hoje a 6.ª mais populosa (1.88 milhões de habitantes) da ilha, e também a mais antiga (o que atesta a incipiência do desenvolvimento da ilha antes da chegada dos europeus). Vale a pena referir que os japoneses tinham também a sua designação para Taiwan: Takasago.
A ocupação holandesa de Taiwan não foi isenta de sobressaltos – o mais relevante foi a Rebelião Guo Huaiyi, promovida em 1652 pelos camponeses chineses, que entendiam ser injusto que os holandeses os taxassem pesadamente mas isentassem os aborígenes. A rebelião foi sufocada com a ajuda dos aborígenes.
Entretanto, na China continental ocorriam mudanças dramáticas: em 1644, os manchus derrubaram a dinastia Ming, levando à fragmentação da China em vários reinos. No meio desta desordem, Zheng Chenggong (mais conhecido, fora da China, como Koxinga), um general (de origem japonesa) leal aos Ming, conseguiu resistir ao domínio manchu e controlar uma estreita faixa de território ao longo do litoral sudeste da China. A fim de ter uma base de retaguarda, em 1661, Koxinga decidiu expulsar os holandeses da costa sudoeste de Taiwan, fundamentando a sua reivindicação a este território nestes termos: “Esta ilha sempre pertenceu à China e aos holandeses foi permitido aqui viver, uma vez que os chineses dela não precisavam; mas uma vez que agora dela necessitam, é justo que os holandeses, que vieram de regiões remotas, dêem lugar aos senhores da ilha”. Os holandeses não foram convencidos por esta argumentação e recusaram-se a sair a bem, mas acabaram por ser derrotados pelas tropas de Koxinga e pelas tribos indígenas, que, desta vez, alinharam com os chineses.
“Uma bola de lama para lá dos mares”
Koxinga faleceu em 1662, pouco depois de ter derrotado os holandeses, e foi sucedido pelo seu filho Zheng Jing na condução do que ficou conhecido como Reino Tungning e que incluía o sudoeste de Taiwan e o arquipélago de Penghu, já que, entretanto, os manchus, formalizados no poder como dinastia Qing, tinham tomado conta de toda a China continental. O Reino Tungning chegou ao fim em 1683, quando Zheng Keshuang, filho de Zheng Jing, se rendeu aos Qing – mas tal não significou a admissão de Taiwan no Império Chinês. As campanhas dos Qing na ilha tinham tido por fito a supressão da força desestabilizadora que eram os lealistas Ming do Reino Tungning, não a conquista de uma ilha que os conselheiros do imperador Kangxi (o 3.º imperador Qing, reinado: 1661-1722), viam como “uma bola de lama para lá dos mares, que nada acrescenta à extensão da China”. Esta perspectiva estava em sintonia com a de Kangxi, para quem Taiwan “é um bago: tomá-la não traz ganhos, perdê-la não traz prejuízo”, pelo que o imperador chegou a considerar a sua venda aos holandeses.
Já para os chineses que habitavam o litoral sudeste da China a ilha tornara-se apetecível e, apesar das restrições à imigração impostas pelas autoridades, a instalação de imigrantes chineses foi crescendo, atingindo dois milhões no início do século XIX. Porém, os Qing continuaram a não da muita atenção à ilha, provavelmente enfadados com as sucessivas rebeliões dos seus habitantes contra a (débil) administração local e as constantes quezílias entre grupos de imigrantes provenientes de diferentes províncias da China, entre chineses e aborígenes e entre aborígenes (estes sempre tinham lutado entre si, mas os conflitos multiplicaram-se quando a imigração chinesa começou a empurrar algumas tribos para os territórios tradicionais de outras). Outro sinal do desinteresse por Taiwan está no facto de a ilha ter sido integrada na província de Fukien e de só em 1887 ter ganho o estatuto de província.
Entretanto, as ambições da Grã-Bretanha e da França no Sudeste Asiático foram crescendo e ambos os países ponderaram a conquista de Taiwan, os britânicos durante a Primeira Guerra do Ópio, em 1839-42 (ver capítulo “Cantão, 1839: A Grã-Bretanha como narco-estado” em Em inglês nos entendemos (ou não): Comércio livre e proteccionismo, parte 3), os franceses durante a Guerra Sino-Francesa de 1884-85. Nem uma nem outra concretizaram tal ideia e em 1895 Taiwan acabou por cair nas mãos de outra nação: o Japão. O povo que os chineses designavam sobranceiramente por “wo” (“anões”), convertera-se, em poucas décadas, numa das grandes potências mundiais (ver capítulo “Da Idade Média à Revolução Industrial, sem escalas”, em 2679 anos de solidão: De onde vem a dinastia mais antiga do mundo) e infligira à China uma derrota esmagadora na Primeira Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), de que resultou, pelo Tratado de Shimonoseki, a cedência “perpétua” ao Japão da Coreia, de Taiwan, do arquipélago de Penghu e da Península de Liaodong (no nordeste da China, a oeste da Península da Coreia).
Na verdade, o Japão mirava Taiwan com cobiça já há algum tempo e em 1874 enviara uma expedição à ilha, supostamente como represália pela decapitação por uma tribo indígena de 54 sobreviventes do naufrágio, em 1871, de um navio japonês, mas com o intuito real de reivindicar para si a ilha. A força japonesa acabara por retirar-se após o Governo chinês ter acordado no pagamento de uma indemnização pelas cabeças cortadas e, assim, ter privado os japoneses de pretexto.
A colónia-modelo
Nas cinco décadas que Taiwan passaria sob domínio japonês, a ilha seria mais profundamente modificada do que nos dois séculos passados sob a alheada administração dos Qing, durante os quais a presença do Estado na ilha fora diáfana (a administração dos distritos do interior montanhoso, representando 45% da área da ilha, estava confiado às populações aborígenes) e os investimentos mínimos. O arquipélago japonês tem uma elevada densidade populacional e uma topografia muito acidentada, e o clima da segunda maior ilha, Hokkaido, é inóspito, de que resulta que o território apto para a agricultura é escasso e o Japão precisa de importar boa parte dos seus alimentos (situação que persiste até hoje). Os planos do Japão imperial para se tornar na potência asiática n.º 1 passavam, pois, por converter Taiwan no seu “mercado abastecedor” de produtos agrícolas – uma doutrina consubstanciada no lema “indústria para o Japão, agricultura para Taiwan”.
Mas antes de a colonização japonesa de Taiwan começar, a ilha viveu durante alguns meses no limbo, pois quando a elite local soube dos termos do Tratado de Shimonoseki, assinado a 17 de Abril e sobre cujo teor não fora, obviamente, consultada, decidiu opor-se à anexação japonesa e, a 23 de Maio, proclamou a independência da ilha, sob a designação de República de Formosa. Esta não dispunha de meios militares para fazer face ao moderno e bem equipado exército japonês e, apesar de o avanço deste ter sido retardado por acções de guerrilha, o último reduto da efémera República rendeu-se a 21 de Outubro de 1895. Tal não impediu que continuassem a ocorrer actos isolados de resistência armada até 1915, que foram sendo sufocados sem contemplações pelos japoneses.
No final do século XIX, a maioria da população da ilha – que orçava então pelos 2.8 milhões – praticava agricultura de subsistência e as exportações estavam limitadas a modestos volumes de chá e cânfora. O Japão modernizou os portos, construiu linhas férreas, construiu barragens e sistemas de irrigação e introduziu técnicas agrícolas mais eficazes e variedades de plantas mais produtivas, levando a que, entre 1895 e 1925, a produção de alimentos fosse multiplicada por quatro e que a produção de cana-de-açúcar (que visava responder ao crescimento explosivo do consumo de açúcar no Japão) fosse multiplicada por 15. Resultou daqui que PIB taiwanês cresceu em média 19% por década entre 1911 e 1941.
Para apoiar este desenvolvimento, foi estimulada a criação de bancos e outras instituições financeiras e levado a cabo o cadastro actualizado dos terrenos, o que, ao mesmo tempo que estimulou os proprietários a investir nas suas explorações, representou uma fonte de receitas em impostos para o colonizador. Simultaneamente, a administração colonial fez fortes investimentos na melhoria da qualidade de vida das populações, através do combate à malária, que era endémica em boa parte da ilha, e pelo estabelecimento de sistemas abrangentes de saúde e educação. Foi introduzida a escolaridade obrigatória, ainda que segregada etnicamente, com escolas separadas para japoneses, chineses e aborígenes (discriminação que só seria abolida em 1941), e pela fundação, em 1928, da Universidade Imperial Taihoku (hoje a Universidade Nacional de Taiwan). As medidas de promoção da saúde foram eficazes, como atesta o facto de a esperança média de vida dos taiwaneses ter passado de 29 anos em 1906 para 45 anos em 1936, o que ajuda a explicar que em 1940 a população da ilha se tivesse dilatado para quase seis milhões. A percentagem de crianças que frequentavam a escola passou de 13% em 1917 para 71% no final do período colonial japonês.
O reverso destes melhoramentos foi a natureza repressiva da administração japonesa, que criou em Taiwan um verdadeiro estado policial: nos primeiros tempos da ocupação, existia um polícia por cada 600 habitantes e qualquer suspeito de se opor à potência colonial corria o risco de ser executado sumariamente como “bandido”. A população Han no litoral submeteu-se rapidamente, mas nas zonas remotas e montanhosas do interior, algumas populações indígenas continuaram a oferecer resistência ao colonizador, que retaliava de forma violenta sobre o que, do alto da sua mundividência racista, via como “selvagens”.
No âmbito deste projecto colonial, estabeleceram-se na ilha cerca de 300.000 japoneses, que ocupavam 70% dos cargos técnicos e cerca de 73% dos cargos no aparelho administrativo. Embora a elite taiwanesa tivesse beneficiado com a colonização, estavam -lhe vedados cargos relevantes e não era ouvida na governação da ilha, que apenas tomava em consideração os interesses do colonizador. Um exemplo flagrante desta atitude é o facto de a população taiwanesa ter sido incentivada a alterar o seu regime alimentar, trocando o arroz pela batata-doce, de forma a libertar arroz para o mercado japonês – uma medida que contribuiu para que as exportações deste cereal de Taiwan para o Japão passassem de 113.000 toneladas em 1915 para 705.000 toneladas em 1935.
O “agriculturalismo” norteou a colonização da ilha até 1930, altura em que a deriva militarista do Japão e a consequente necessidade de incrementar a produção de material bélico levou a que os governantes concluíssem que era imperativo industrializar Taiwan de forma a que o Japão fosse capaz de competir com as potências rivais. Uma das primeiras medidas neste sentido foi a construção de uma grande barragem destinada à produção hidroeléctrica, destinada a alimentar as indústrias que se perspectivavam para a ilha.
De regresso à órbita da China
A pulsão expansionista do Japão imperial levou a que, em 1937, invadisse a China, então dilacerada pela guerra civil entre o Kuomintang ou Partido Nacionalista e o Partido Comunista (recorde-se que em 1912 o último imperador chinês fora deposto e fora instaurada a república). Quiçá empolgado pelas vitórias obtidas contra o desorganizado e obsoleto exército chinês, o Japão cometeu, em 1941, a imprudência de desafiar os EUA (ver Pearl Harbor: O Dia da Infâmia foi há 75 anos), o que teve resultados desastrosos para o Japão (ver capítulo “Os últimos cem anos” em 2679 anos de solidão: De onde vem a dinastia mais antiga do mundo). Durante a II Guerra Mundial, os japoneses recrutaram aborígenes taiwaneses para combater em unidades de operações especiais vocacionadas para missões na selva, tirando partido de os taiwaneses estarem habituados a um clima quente e húmido e de a sua condição de caçadores-recolectores os habilitar a sobreviver na selva com apoio logístico mínimo – estas unidades ficaram conhecidas como “Voluntários Takasago”, sendo “Takasago” o nome dado a Taiwan pelos japoneses (já a condição de “voluntários” é muito discutível).
A 25 de Outubro de 1945, poucas semanas após a rendição do Japão, Andō Rikichi, o último governador japonês de Taiwan, assinou a rendição das forças japonesas em Taiwan a Chen Yi, o representante da República da China, mas tal não foi suficiente para definir o estatuto formal da ilha.
Na Conferência do Cairo, em 1943, Franklin Roosevelt, Winston Churchill e Chiang Kai-shek, presidente da República da China e líder do Kuomintang, tinham decidido que Taiwan (juntamente com o arquipélago de Penghu e outras ilhas periféricas) reverteria para a China no fim da guerra, mas nem este acordo foi ratificado nem o tratado pelo qual o Japão se rendeu aos Aliados, assinado a 2 de Setembro de 1945, a bordo do couraçado Missouri, incluiu a renúncia expressa a Taiwan – esta só viria a ser formalizada em 1951, pelo Tratado de São Francisco, que regularizou as relações entre o Japão, os Aliados e os restantes países que tinham estado envolvidos no teatro Indo-Pacífico da II Guerra Mundial. Assim sendo, em 1945, os taiwaneses que tinham visto o término da II Guerra Mundial como uma oportunidade para a independência, contestaram a validade jurídica da devolução de Taiwan à República da China, mas não tinham meios para afrontar o Kuomintang.
O retorno ao controlo da China continental, agora governada pelo Kuomintang, representou para muitos taiwaneses a substituição de um colonizador por outro. O novo “amo” tratou de expulsar da ilha a maioria dos 300.000 japoneses que lá viviam e nacionalizar as suas propriedades e empreendeu uma governação que se revelou tão repressiva e tão alheia aos interesses taiwaneses como a do ocupante japonês, com a desvantagem de ser menos competente e muito mais corrupta, o que suscitou, em 1947, uma revolta dos taiwaneses contra a despótica governação do Kuomintang, que ficou conhecida como o “incidente de 28 de Fevereiro”.
O Governo do Kuomintang suprimiu a revolta de forma expedita e brutal – as estimativas de vítimas variam entre 18.000 e 28.000 – e, como medida preventiva, prendeu parte considerável da elite intelectual da ilha. Os apelos dos taiwaneses para que a ONU colocasse a ilha sob mandato internacional e para que os EUA interviessem num território sob sua jurisdição (no pressuposto de que o Japão, que se encontrava então sob administração americana, não transferira formalmente a soberania sobre Taiwan para a China) foram ignorados.
O último bastião do Kuomintang
Entretanto, na China continental, o Kuomintang enfrentava uma ameaça bem mais séria do que os independentistas taiwaneses: a rendição do Japão pusera termo à II Guerra Mundial e à Segunda Guerra Sino-Japonesa, mas a guerra civil fora reatada de imediato e as forças nacionalistas, desgastadas por oito anos de combates contra os japoneses, dirigidas por generais pouco competentes e minadas pela corrupção (uma marca permanente do Kuomintang), sofreram sucessivas derrotas às mãos dos comunistas de Mao Tse-tung, que, enquanto o exército japonês na China foi um adversário temível, fizera os possíveis por evitar o confronto com este (diga-se de passagem que já a Longa Marcha de 1934-35, mitificada como evento épico pelo comunismo chinês, foi na verdade uma longa e pouco gloriosa fuga ao exército nacionalista).
Assim, tal como os lealistas Ming perante o avanço imparável dos manchus em meados do século XVII, no final de 1949 os nacionalistas de Chiang Kai-shek (que, entretanto, resignara ao cargo de presidente da República da China) viram-se forçados a abandonar o continente e buscar refúgio em Taiwan, o que se traduziu no súbito afluxo à ilha de cerca de um milhão de chineses “continentais” – 1/6 da população total da ilha – representando os militares cerca de 30% dos recém-chegados.
Uma vez que o Kuomintang se via como o legítimo governante da República da China, a capital desta entidade política foi transferida para Taipei; na mente de Chiang, que reassumiu em Março de 1950o cargo de presidente da República da China para não mais o largar, a retirada para Taiwan fora um expediente temporário e a sua ambição era voltar a assumir o controlo da China continental (por absurdo que possa parecer, chegou a elaborar um plano de invasão do continente, no início da década de 1960, quando o regime comunista há muito estava plenamente consolidado).
Entretanto, a 1 de Outubro de 1949, os comunistas vitoriosos tinham proclamado, na Praça Tiananmen, a criação da República Popular da China.
É pertinente recordar que, ao arrepio do que hoje proclama o Governo da República Popular da China, entre 1928 e 1943, o Partido Comunista Chinês aprovou a ambição dos taiwaneses de se libertarem do jugo colonial japonês e tornarem-se numa nação independente – numa entrevista ao jornalista americano Edgar Simon, em 1937, Mao manifestou mesmo o seu “apoio entusiástico” à luta pela independência da Coreia e de Taiwan. Esta posição só foi alterada em 1943, após a Conferência do Cairo: como, nesta ocasião, os seus rivais nacionalistas fizeram questão de reivindicar formalmente a reintegração de Taiwan, os comunistas correriam o risco de parecer pouco patrióticos se admitissem que Taiwan poderia seguir o seu próprio caminho.
Do ponto de vista dos taiwaneses, a nova situação geopolítica não trouxe melhorias: a ilha fora colocada sob lei marcial logo em Maio de 1949, quando os nacionalistas começaram a ver o seu poder esboroar-se no continente, e assim continuaria até 1987, dando mãos livres ao governo do Kuomintang para suprimir qualquer dissidência. Os naturais de Taiwan, que nunca tinham gozado do favor dos chineses naturais do continente, tinham passado a ser encarados com maior desconfiança desde a colonização japonesa, sendo suspeitos de terem ficado “estrangeirados” e alienados dos valores chineses – portanto, o regime instaurado pelo Kuomintang não só excluiu qualquer outro partido como manteve os taiwaneses arredados de cargos relevantes na estrutura do Estado. Convém aqui referir que a população taiwanesa era, por esta altura, já largamente dominados pela etnia Han, pois os aborígenes taiwaneses tinham vindo a diluir-se progressivamente nas sucessivas levas de imigração Han, e também como resultado da perseguição e da “aculturação” forçada de que foram alvo as tribos durante a ocupação japonesa.
Da ditadura à democracia
O Kuomintang tinha uma vocação totalitária tão forte quanto o Partido Comunista Chinês e, inicialmente, a sua ideologia era suficientemente compatível com o comunismo e com os interesses da URSS para que fosse apoiado por esta e para que, em 1923, o Comintern (a Internacional Comunista) desse instruções ao Partido Comunista Chinês para se aliar ao Kuomintang, em vez de o combater. Mesmo em 1945, quando a Guerra Civil Chinesa se reacendeu e os comunistas começaram a obter vitórias retumbantes sobre os nacionalistas, Stalin ainda tentou convencer Mao a conter o avanço das suas tropas e a formar com os nacionalistas uma coligação para governar a China.
Uma vez circunscrito a Taiwan, a partir de 1949, o Kuomintang instaurou na ilha um regime que não era menos autoritário e castrador do que o regime que o Partido Comunista Chinês criou no continente. A reacção violenta do Kuomintang aos tumultos de 28 de Fevereiro de 1947 teve continuidade no “Terror Branco”, uma campanha de repressão política que, a pretexto de combater a ameaça comunista, perseguiu, oprimiu, prendeu, torturou e executou numerosos suspeitos de estarem envolvidos em actividades “contra o Estado” e que se prolongou até ao início da década de 1990, tendo, durante esse período, morto 3000 a 4000 pessoas em Taiwan, mais um número indeterminado de dissidentes que viviam fora da ilha.
A morte de Chiang Kai-Shek, em 1975, não parecia abrir perspectivas de alteração na natureza do regime do Kuomintang, uma vez que a liderança do partido foi herdada pelo seu filho e o director da polícia política, Chiang Ching-kuo. Porém, Chiang Ching-kuo, tendo consciência do rápido declínio no apoio internacional à República da China/Taiwan, entendeu que a sobrevivência de Taiwan requereria a construção de uma imagem mais aceitável perante as nações democráticas e quando sucedeu na presidência a Yen Chia-Kan, que assegurara o termo do mandato de Chiang Kai-Shek, até 1978, começou a promover a democratização do regime. A presidência de Chiang Ching-kuo, que durou até à sua morte, em 1988, pôs termo à lei marcial e abriu lugar a taiwaneses numa estrutura de poder até então fora dominada quase exclusivamente pela “casta” que se refugiara em Taiwan em 1949. O seu sucessor, Lee Teng-hui, nascido em Taiwan, deu continuação a estas políticas, levantou as restrições ao uso das línguas taiwanesas e, em 1996, promoveu as primeiras eleições presidenciais directas, livres e democráticas (que resultaram na sua reeleição).
O mundo é demasiado pequeno para duas Chinas?
A existência de dois países que se reclamavam como sendo a “China” tem sido, desde 1949, uma constante fonte de atritos, equívocos e embaraços nas relações internacionais, situação que resulta não só das posições intransigentes dos Governos das duas Chinas como da ambiguidade e inconstância da posição dos EUA em relação ao estatuto de Taiwan.
Era frequente que a “China” fosse excluída de encontros e cimeiras internacionais por não ser possível acordar se tal entidade geopolítica deveria ser representada pela República da China/Taiwan (RC/T) ou pela República Popular da China (RPC). Uma das ausências mais flagrantes ocorreu na discussão e assinatura do já mencionado Tratado de São Francisco – embora tenha sido por este tratado que o Japão renunciou formalmente a quaisquer direitos sobre Taiwan, nenhum dos principais interessados nessa renúncia o assinou. Outra situações controversa prendia-se com o Conselho de Segurança da ONU, onde a RC/T “herdara” o lugar que coubera à República da China quando esta englobava a China continental.
Porém, o número de países que reconhecia a RC/T foi minguando, ao mesmo tempo que crescia o dos que reconheciam a RPC (os reconhecimentos de uma e outra Chinas são, claro, mutuamente exclusivos), uma tendência que não só foi ditada por afinidades ideológicas como, cada vez mais, por pragmatismo, já que a RPC, uma vez deixados para trás os insensatos planos de Mao, dera mostras, a partir do final dos anos 60, de estar a caminho de voltar a ser o colosso económico que fora até ao início do século XIX. A Albânia (então enfeitiçada com o maoísmo) começou a apresentar todos os anos na ONU uma proposta para substituir a RT/C pela RPC, que era sempre rejeitada pelos EUA e seus aliados.
No início da década de 1970, o presidente Richard Nixon aproveitou o desentendimento entre a URSS e a China comunista para se aproximar da segunda, uma operação orquestrada pelo sempre pragmático e sumamente cínico Henry Kissinger. Ainda assim, quando a sessão da Assembleia Geral da ONU de 25 de outubro de 1971 votou favoravelmente a Resolução 2758, reconhecendo a RPC como “único representante legítimo da China na ONU” e escorraçando da instituição a RC/T, os EUA votaram contra, se bem que a maioria dos países da Europa Ocidental (Portugal incluído) tivesse votado a favor. Dez meses depois, Nixon faria a primeira visita de um presidente americano à RPC, mas os EUA só estabeleceram relações diplomáticas com a China a 1 de Janeiro de 1979, numa altura em que já quase todos os países ocidentais tinham estabelecido relações diplomáticas com a RPC e deixado de reconhecer a RC/T – as exceções eram Portugal e a Irlanda, que deram esse passo, respetivamente, em fevereiro e junho desse mesmo ano. A 31 de Dezembro do mesmo ano os EUA puseram também termo ao Tratado de Defesa Mútua assinado com a RC/T, que vigorava desde 1955.
Também nos Jogos Olímpicos a RPC tem feito os possíveis por combater a ideia de que possa existir outra China. Os atletas de Taiwan competiram até ao início dos anos 70 sob as designações de Formosa, Taiwan e República da China, mas foram impedidos de participar nos Jogos de 1976 em Montreal, uma vez que o Canadá reconhecia a RPC como única representante da China; os taiwaneses voltaram a estar ausentes dos Jogos de 1980, por recusarem a bizarra designação “Taipei Chinesa” imposta pela RPC. Após negociações com o Comité Olímpico Internacional, os taiwaneses acabaram, a partir de 1984, por aceitar apresentar-se sob a bandeira de “Taipei Chinesa”.
A campanha de ostracização “diplomática” da RC/T pela RPC tem, pois, logrado indesmentível sucesso, mas a RPC não parece satisfazer-se em escorraçar a RC/T de todas as organizações, instâncias e fóruns internacionais, e, nos últimos anos, aplicou-se, com a mesma sanha, implacável, metódica e persistente, em intimidar marcas comerciais, empresas ou até figuras públicas que ousem – mesmo que inadvertidamente – referir Taiwan como um “país” e não como “território” ou sugerir que Taiwan é uma entidade distinta da RPC. Nalguns casos, a RPC não precisa de apresentar protestos formais, basta o burburinho nas redes sociais ou a tomada de consciência pelo “infractor” do que poderá custar ao seu negócio ou à sua carreira afrontar ou indispor um país com 1400 milhões de consumidores. Entre muitos episódios deste tipo, é de destacar o protagonizado em Maio de 2021 por John Cena, campeão de wrestler e um dos actores de Velocidade Furiosa 9, que, numa entrevista a um canal televisivo taiwanês, cometeu o deslize de se congratular por “Taiwan [ser] o primeiro país que vai poder ver Velocidade Furiosa 9”. Ao tomar consciência da “enormidade” que proferira, Cena apressou-se a colocar na rede social chinesa Weibo (onde tem 600.000 fãs chineses) um vídeo, em mandarim, em que se retracta, de forma vexatória, pelo “erro”, se desfaz em desculpas e jura “amar e respeitar a China e o povo chinês”. Cena e os produtores de blockbusters de Hollywood estão bem conscientes de que a viabilidade económica dos seus filmes está hoje dependente do mercado chinês… E, todavia, a confrangedora auto-humilhação de Cena não foi suficiente para satisfazer muitos internautas chineses, que censuraram o actor por não ter declarado explicitamente que “Taiwan faz parte da China”.
[John Cena pede desculpa por, num momento de distracção, se ter referido a Taiwan como um “país”]
Mas se o alinhamento de países, empresas e entidades ocidentais com a China na questão de Taiwan decorre essencialmente de interesses económicos, há no Ocidente quem se ponha ao lado da China por razões ideológicas: o Partido Comunista Português é, sem surpresa, um entusiasta do “princípio de uma só China” e apressou-se a classificar a recente visita a Taiwan de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, como uma “provocação montada pelos EUA” que se insere numa “estratégia de confrontação crescente do imperialismo contra a República Popular da China, instrumentalizando Taiwan e fomentando o separatismo” (ver Sobre a provocação dos EUA À República Popular da China), ignorando que quem tem vindo a prosseguir uma “estratégia de confrontação crescente” com os seus vizinhos é a RPC. E é também instrutivo perceber que, na mundividência maniqueísta e afunilada do PCP, quer os ucranianos quer os taiwaneses são destituídos de discernimento e vontade própria e que não passam de títeres dos EUA – como é sabido, as lutas pela auto-determinação só são legítimas se conduzidas por comunistas. Numa amarga ironia que parece passar ao lado de todos os militantes comunistas, a obsessão do PCP em fazer frente ao imperalismo americano acaba por levá-lo invariavelmente a defender os regimes mais tirânicos do planeta, embora sempre em nome da “Paz” (com maiúscula) e dos “interesses dos trabalhadores e povos do mundo”.
Taiwan na geopolítica do nosso tempo
Hoje em dia apenas 13 países reconhecem a RC/T e todos eles estão longe de ser uma potência económica ou militar – na verdade, a maior parte são micro-estados insulares do Pacífico e Caraíbas. São eles Belize, Eswatini (antiga Suazilândia), Guatemala, Haiti, Honduras, Ilhas Marshall, Nauru, Palau, Paraguai, São Cristóvão e Neves (Saint Kitts and Nevis), Santa Lúcia (Saint Lucia), São Vicente e Granadinas (Saint Vincent and the Grenadines), a que se soma esse peculiar estado que é o Vaticano. Como as “deserções” do campo da RC/T têm continuado paulatinamente, à medida que a China se perfila como a potência económica n.º 1 do mundo e o protagonista incontornável em múltiplos domínios da actividade económica (e também porque a China tem vindo a aliciar os poucos apoiantes da RC/T com promessas de assistência financeira e cooperação), é legítimo especular sobre o que acontecerá se a RC/T perder o seu derradeiro apoiante. Porém, atendendo à retórica cada vez mais agressiva emanada de Pequim, começa a tornar-se evidente que a RPC não está disposta a aguardar por tal eventualidade.
Para já, o principal obstáculo à anexação pela força de Taiwan são os EUA, que são o único país do mundo dotado de poder militar capaz de fazer face à RPC e continuam a cultivar a ambiguidade em relação ao estatuto da ilha. Ironicamente, quer os EUA quer a RPC cultivam a “política de uma só China”, mas enquanto a posição da RPC corresponde efectivamente à designação – não aceita que a RC/T possa ser um país independente –, os EUA entregam-se a um contorcionismo semântico e moral, em que admitem que Taiwan faz parte da RPC, mas, por outro lado, não reconhecem oficialmente tal soberania, mantêm uma relação privilegiada mas não-oficial com a RC/T e têm manifestado várias vezes a determinação em intervir militarmente se a RPC tentar tomar Taiwan pela força.
A possibilidade de uma invasão chinesa foi reavivada recentemente com a visita a Taiwan de Nancy Pelosi, que desencadeou um frenesim de manobras militares e disparos de mísseis pela RPC em torno de Taiwan. É uma crise com afinidades com a que eclodiu em 1996, conhecida como Terceira Crise do Estreito de Taiwan e que é pertinente recordar. Em 1995, por pressão do Congresso, os EUA autorizaram o presidente da RC/T, Lee Teng-hui, a visitar os EUA, o que irritara o Governo de Pequim; quando, em 1996, Lee convocou as primeiras eleições presidenciais directas e livres da história da RC/T e anunciou que se recandidataria ao cargo, a RPC decidiu fazer ver aos eleitores taiwaneses que se opunha veementemente à reeleição de Lee, concentrando tropas na costa junto ao Estreito de Taiwan e fazendo disparos de mísseis (alguns para águas territoriais da RC/T) e exercícios de assalto anfíbios. Em resposta a estas manobras, o presidente Bill Clinton enviou para as cercanias de Taiwan dois porta-aviões e respectivas escoltas, uma força capaz de impedir uma tentativa de invasão pelo ainda pouco sofisticado exército da RPC de então; pelo seu lado, o povo taiwanês também não se deixou intimidar e deu uma vitória clara a Lee nas eleições.
Se a posição dos EUA em relação a Taiwan parece pretender fazer a quadratura do círculo, também a própria RPC assume atitudes ambíguas, pois ao mesmo tempo que faz tudo para erradicar a RC/T do mapa, mantém com o território um intenso intercâmbio económico: em 2021 a RC/T foi o 10.º maior parceiro económico da RPC e a RC/T tem sido uma das principais fontes de investimento externo na RPC (embora seja provável que a RPC recuse classificar tal investimento como “externo”). O que é paradoxal é que, ao longo das últimas décadas, à medida que a tensão nas relações entre RC/T e RCP foi crescendo, o mesmo foi acontecendo com a interdependência das suas economias. Pelo seu lado, a própria RC/T, intimidada pelo “bullying” exercido pela RPC, acabou por adoptar uma posição ambígua quanto ao seu estatuto geo-político, não admitindo claramente que é um país ou que aspira à independência plena, temendo que tal possa desencadear a invasão da ilha pela RPC. Embora cerca de 30% dos taiwaneses aspirem à independência (de acordo com várias sondagens realizadas em 2019-21) e 5-12% defendam a unificação com a RPC, mais de metade da população prefere que se mantenha o “statu quo”, isto é, a indefinição e o equilíbrio periclitante – uma farsa absurda que está em cena há décadas e em que, além dos três principais actores, RC/T, RCP e EUA, também participam a comunidade internacional e a ONU.
Porém, Pequim tem dado sinais, nos últimos meses, de pretender pôr termo a esta bambochata – Xi Jinping, que tem dado bastas provas de, tal como Putin, querer garantir para si um lugar proeminente na longa galeria dos líderes do seu país, parece determinado a resolver definitivamente a questão de Taiwan, pela incorporação efectiva e formal da ilha na RPC, durante a sua presidência, apenas aguardando o momento favorável nas conjunturas interna e externa para dar esse passo. Estará, portanto, a estudar atentamente a (até agora) coesa reacção do Ocidente à invasão da Ucrânia pela Rússia, com a imposição de pesadas sanções à Rússia, e estará quiçá a ponderar que, mesmo que os EUA não cumpram a ameaça de retaliar militarmente, uma invasão de Taiwan irá provavelmente desencadear uma barragem de sanções análoga. Ora, a imposição de um programa abrangente e rigoroso de sanções pelo Ocidente (e “Ocidente” é, neste caso, um termo que inclui Japão, Coreia do Sul e Austrália) traria graves perturbações ao comércio e aos fluxos financeiros globais, de cuja fluidez a RPC está dependente para manter as elevadas taxas de crescimento do PIB que são a garantia de paz social num país com um interminável e sangrento historial de revoltas populares e guerras civis (ver Do Celeste Império ao “imperador” Xi: Uma história da China). Por outro lado, a economia da RPC está tão intimamente imbricada na economia global que uma “guerra de sanções” traria consequências bem mais sérias para a economia global do que aquelas a que estamos a assistir em resultado da invasão da Ucrânia pela Rússia.
Independentemente de qual possa ser a avaliação do Governo da RPC sobre o empenhamento e capacidade do Ocidente em fazer-lhe frente, a retórica oficial reafirma o tom pugnaz: como remate à semana de exercícios militares intimidatórios suscitados pela visita a Taiwan de Nancy Pelosi, a RPC deixou claro que “não renunciará ao uso da força a fim de alcançar a reunificação”.
Nuvens negras sobre o Estreito de Taiwan
Poderá perguntar-se por que razão a RPC, que se estende por 9.6 milhões de Km2 e tem 1412 milhões de habitantes, parece disposta a desencadear a III Guerra Mundial para assumir o controlo de um território que ocupa 35.800 Km2 e tem 23.9 milhões de habitantes (o que representa 0.37% da área e 1.7% da população da China continental) e não possui recursos naturais particularmente relevantes.
Acontece que Taiwan não só é mais próspera do que a China continental – o seu PIB per capita em 2022 foi de 55.700 dólares, o que a coloca no 16.º lugar do ranking mundial, à frente de Islândia, Áustria, Suécia, Alemanha, Austrália e Bélgica, enquanto a RPC só surge em 77.º lugar, com 17.192 dólares, entre a Guiné Equatorial e o Botswana – como é o líder mundial naquele que é um dos mais cruciais sectores da economia moderna: o fabrico de semi-condutores. Taiwan tem, no segmento dos fabricantes independentes de semi-condutores, uma quota de mercado de 66%, seguida, a grande distância, pela Coreia do Sul (17%) e China (8%) e ostenta uma superioridade ainda mais incontestada no sub-segmento dos semicondutores mais avançados (e mais diminutos), onde a sua quota de mercado é de 84%. Pode pois dizer-se que no que respeita a aplicações de vanguarda no domínio das comunicações, transportes, informação, material bélico e domótica, o mundo está dependente de Taiwan e é previsível que assim continue durante os próximos anos, pois não é do dia para a noite que um país consegue adquirir o know-how, a sofisticação tecnológica e a estrutura industrial para dar cartas na área dos semi-condutores.
A RPC, que tem a fortuna de possuir as maiores reservas mundiais de terras raras indispensáveis ao fabrico de semi-condutores, ao assumir o controlo de Taiwan ver-se-ia, portanto, em posição para ditar regras a todo o mundo industrializado, nomeadamente ao império tecnológico de Silicon Valley. Talvez seja por esta razão que o Governo dos EUA tem vindo, nos últimos meses, a emitir sinais dissuasores em relação a uma eventual invasão de Taiwan pela China, quer pelas declarações de Joe Biden, quer pela visita a Taiwan de Nancy Pelosi.
A pressão crescente da RPC sobre Taiwan deve também ser lida no contexto das crescentes disputas territoriais da RPC com os países vizinhos (Japão, Filipinas, Malásia, Vietnam), nomeadamente no que diz respeito a ilhas, ilhotas e áreas marítimas dentro da controversa Linha dos Nove Traços (ver capítulo “O futuro próximo” em Do Celeste Império ao “imperador” Xi: Uma história da China). É pertinente lembrar que o território da RC/T, embora corresponda em 99% à ilha de Taiwan (35.808 Km2 de um total de 36.193 Km2), abrange também mais de 160 ilhas e ilhotas, a maior parte delas situadas no Estreito de Taiwan, onde se incluem os arquipélagos de Penghu (Pescadores), Kinmen (Quemoy), Wuqiu (Wu-chi’iu) e Matsu. Enquanto as Penghu ficam a cerca de 50 Km de Taiwan e 100 Km a China, as restantes ilhas ficam muito perto da China continental: as Kinmen a 10 Km, as Wuqiu a 17 Km (não do continente mas da Ilha Luci/Lusi, um território da RPC junto ao continente) e as Matsu a 20 Km. É compreensível que estas pequenas ilhas, ainda que irrelevantes do ponto de vista económico (muitas não passam de rochedos escassos metros acima do nível do mar), sejam uma fonte adicional de irritação para a RPC, uma vez que são visíveis do continente. A RPC tentou tomar à força as Kinmen em 1950 e bombardeou-as em 1954-55 e em 1958, durante a Primeira e Segunda Crises do Estreito de Taiwan; durante a Primeira Crise, a RPC arrebatou à RC/T os mini-arquipélagos de Yijiangshan e Dachen (Tachen), também eles situados muito mais perto da China continental do que de Taiwan, tendo os seus habitantes sido evacuados para Taiwan.
Por trás dos pretextos históricos, culturais e patrióticos (frequentemente falaciosos) que Rússia e RPC invocam para reclamar soberania, respectivamente, sobre a Ucrânia e Taiwan, as duas super-potências têm também em vista (a par de motivações geo-estratégicas) ganhos materiais: as terras férteis e os combustíveis fósseis do Donbas, num caso, o domínio incontestado da indústria 4.0, no outro – o que sugere que, enquanto Putin olha para trás e colhe inspiração nos czares e em Stalin, Xi Jinping olha em frente e aspira a ser o Ciber-Imperador Vermelho do século XXI.
Há ainda outras analogias que podem fazer-se em relação aos pares Rússia/Ucrânia e RPC/Taiwan: tal como uma Ucrânia democrática e (potencialmente) mais próspera do que a Rússia é algo que Putin teme que possa levar os russos a pôr em causa a eficácia e bondade da sua governação, também Xi Jinping receia que o facto de Taiwan conseguir ser muito mais próspera do que a China continental (apesar dos formidáveis progressos desta nas últimas três décadas), sem a necessidade de subjugar os seus cidadãos a um sufocante Estado policial, possa instilar nos seus cidadãos a suspeita de que o Partido Comunista Chinês não é infinitamente sábio e justo. Os presentes governos da Rússia e da China têm outra característica em comum: exacerbam o sentimento nacionalista e cultivam uma “narrativa” que combina o ressabiamento pelas humilhações que lhes foram infligidas pelo Ocidente (agravo que, no caso da China, assenta em factos reais e indesmentíveis), com a ideia de que estão cercados por “inimigos” (ver De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado”). Independentemente de essas “narrativas” terem ou não fundamento factual, são apresentadas como verdadeiras aos respectivos povos e alimentam uma política externa reivindicativa e intimidatória, que exige o reconhecimento do seu estatuto como Grandes Potências e deixa claro a toda a comunidade internacional que nunca mais sofrerão humilhações pela parte do Ocidente. Atendendo a estas afinidades, era previsível que a China não alinhasse com o Ocidente na reprovação e nas sanções à Rússia pela invasão da Ucrânia…
Quando se considera a atitude dominante do lado nascente do Estreito de Taiwan, muitos observadores ocidentais poderão estranhar que a RC/T se agarre tão denodadamente à ideia de manter uma existência separada da China continental, apesar de se encontrar cada vez mais isolada no plano internacional, de o poderio militar do seu colossal vizinho ser cada vez mais esmagador e de a retórica de Pequim ser cada vez mais agressiva. Os taiwaneses serão certamente inspirados, nesta sua determinação, por questões identitárias, que poderão parecer difíceis de entender a quem vive do outro lado do mundo e ache “os chineses todos iguais”, mas que decorrem naturalmente de um percurso histórico bem distinto da China continental (que, por sua vez, está longe de ser tão homogénea quanto Pequim quer fazer crer) e que gerou uma sociedade e uma mentalidade originais, combinando elementos das civilizações chinesa e japonesa. Mas o que mesmo os ocidentais menos versados em sinologia e menos sensíveis a subtilezas culturais poderão compreender facilmente é que os taiwaneses não estão dispostos a aceitar docilmente que o regime democrático em que vivem há quase três décadas dê lugar ao totalitarismo cibernético orwelliano que vigora na RPC e que ameaça tornar-se mais sufocante a cada ano que passa (ver capítulo “Internet e cidadania” em Como a inveja, o medo e a ambição moldaram o mundo).
A RPC tem proposto à RC/T a unificação sob o modelo “um país, dois sistemas”, uma sugestão que foi primeiro lançada, na década de 1980, por Deng Xiaoping, e que o Governo da RC/T tem rejeitado sistematicamente. Acontece que os taiwaneses estão agudamente conscientes de duas experiências históricas: uma foi terem passado a quase integralidade dos últimos quatro séculos a serem governados autocraticamente por “gente de fora” que não dispensa a mais pequena importância às aspirações e opiniões da “gente da terra”; outra foi o que sucedeu às antigas colónias europeias de Hong Kong e Macau, a que a RPC prometeu aplicar o modelo “um país, dois sistemas”, mas que, em poucos anos, viram ser inexoravelmente extintas pelo regime de Pequim quase todas as liberdades e privilégios de que desfrutavam, nomeadamente o de serem governadas por pessoas escolhidas pelos seus cidadãos.