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Sendo Portugal um país que proclama, com orgulho, possuir as mais antigas fronteiras da Europa e que, para mais, há séculos que possui um único vizinho, a geopolítica da Europa Central e de Leste afigura-se vertiginosamente fluida e complexa: entidades políticas nascem, dilatam-se, minguam, estabelecem alianças, desfazem alianças, anexam vizinhos, são anexadas por vizinhos, dissolvem-se e voltam a emergir passados alguns anos ou alguns séculos. À medida que as cidades e regiões mudam de mãos, também os seus nomes vão sendo alterados, de forma a sinalizar quem está agora na mó de cima e para tentar fazer esquecer que outros povos, com outras línguas, outras religiões, outros rituais matrimoniais, outras canções de embalar e outras formas de cozinhar carneiro, foram responsáveis pela sua fundação ou ali tiveram ascendente ou ali viveram durante séculos.

Os conquistadores sabem que não basta ocupar um território: é preciso legitimar a sua posse através do rebaptismo das cidades e da reescrita da História. A versão distorcida da História da Ucrânia e da Rússia que Vladimir Putin expôs no discurso de 21 de Fevereiro de 2022 deixou bem claras a sua mundividência e as suas intenções. Nesta minuciosa peça de retórica imperial, além de reconhecer a independência das “repúblicas independentes” de Donetsk e Luhansk, Novichok I, o auto-proclamado Czar de Todas as Rússias, afirmou que “a moderna Ucrânia” não era realmente um país, antes uma criação da Rússia (“mais precisamente, da Rússia comunista”), que a Ucrânia nunca teve existência genuína enquanto estado independente e que o território ucraniano é “parte integral da Rússia” – à luz destas palavras, a invasão russa desencadeada três dias depois não foi surpreendente.

A resenha histórica de Putin é objectivamente verdadeira na parte em que afirma que, em certos períodos históricos, a Ucrânia fez parte do Império Russo e da URSS, mas omite que, ao longo dos tempos, também fez parte de diversas entidades geopolíticas (recomenda-se a audição do podcast Ucrânia: Que país é este, afinal?), tal como aconteceu, aliás, com boa parte dos territórios da Europa Central e de Leste. Durante séculos, a geografia política da Ucrânia e territórios limítrofes caracterizou-se por uma incessante dança de fronteiras, que só estabilizaram após o final da II Guerra Mundial e voltaram a sofrer alterações quando a URSS se desintegrou, em 1991. Em 2014, a Rússia quebrou o statu quo e os acordos internacionais, amputando a Crimeia da Ucrânia, e, oito anos depois, dá mostras de pretender anexar as regiões (oblast) de Donetsk e Luhansk e, quiçá, toda a Ucrânia ou, pelo menos, converter o país num estado-satélite, colocando no poder em Kiev um tiranete subserviente a Moscovo, como o que governa hoje a Bielo-Rússia.

A independência formal da Ucrânia só chegaria em 1991, mas a 24 de Julho de 1990, perante os sinais de desagregação da URSS – a Estónia fora a primeira República Socialista Soviética a “desertar”, em 1988 –a bandeira ucraniana foi hasteada pela primeira vez no edifício da Câmara Municipal de Kiev

Ucrânia

O próprio topónimo “Ucrânia” é um eloquente testemunho da histórica indefinição e instabilidade geopolítica da região: provém do russo “okraina” = fronteira, raia. Embora antiga, esta designação só se tornou preponderante a partir do século XIX, tomando o lugar de “Ruténia” e “Malorossiya” (“Pequena Rússia”).

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A primeira ocorrência escrita da designação Pequena Rússia data de 1335 e surge em documentos relativos a Yuri II Boleslav (também conhecido como Bolesław-Jerzy II), um governante de origem polaca que, entre 1323 e 1340, acumulou títulos de soberania sobre a Ruténia, Volhynia e Galicia, entre os quais se contava o de “Dux totius Russiae minoris” (“Senhor de toda a Pequena Rússia”).

A Ucrânia passaria, depois, três séculos na órbita do Grão-Ducado da Lituânia e, depois, da Comunidade Polaco-Lituana (ou República das Duas Nações), até que, a partir de 1648, a Ucrânia Central (a leste do Rio Dniepr) ficou sob controlo do Hetmanato Cossaco, também conhecido como Hoste Zaporizhia.

O hetman (alto comandante militar) cossaco Bohdan Khmelnytsky entra em Kiev, em 1648. Quadro do final do século XIX por Mykola Ivasiuk

Nesse mesmo ano foi publicado o primeiro mapa detalhado da Ucrânia, da autoria do cartógrafo e engenheiro militar francês Guillaume Levasseur de Beauplan, que serviu os reis da Polónia, nomeadamente na qualidade de capitão de artilharia nas campanhas contra os tártaros da Crimeia, e que era dotado de agudo espírito de observação e grande curiosidade pelos territórios e povos do Leste europeu. Beauplan, que antes desenhara um Mapa geral da Polónia, deu ao seu minucioso mapa de 1648 o título “Representação geral das planícies vazias, ou Ucrânia, na linguagem corrente, em conjunto com as províncias vizinhas”, o que sugere que, por esta altura o território era, essencialmente, inabitado e improdutivo, estando muito longe do estatuto de “celeiro da Europa” que viria a ganhar mais tarde, graças à extraordinárias produções cerealíferas obtidas nas suas afamadas “terras negras”. O vazio destas planícies não é, contudo, de estranhar, face aos incessantes confrontos e incursões a que estavam sujeitas há séculos.

Após regressar a França, Beauplan publicou, em 1650, uma Description de l’Ucraine, que define esta como “as várias províncias do reino da Polónia que se estendem dos confins da Moscóvia até aos limites da Transilvânia [na Roménia]”.

“Representação geral das planícies vazias, ou Ucrânia” (1648), por Guillaume Levasseur de Beauplan. Note-se que, seguindo a convenção dos mapas militares da época, o Sul está orientado para cima

Desde o início do século XVI que o principado de Moscóvia tinha vindo a dilatar-se para sul, progressão em que foi decisiva a actuação de Vladimir III, filho de Ivan III, o Grande, que capturou Smolensk aos lituanos e avançou a fronteira até ao Dniepr – não tardaria que as “planícies vazias” começassem a despertar o apetite da Moscóvia. Quando, em 1654, o Hetmanato Cossaco na margem esquerda do Dniepr ficou sob a “protecção” do czar de Moscovo, este passou a ostentar o título de “Soberano de todas as Rússias: a Grande a Pequena e a Branca [a Bielo-Rússia]”, um uso que se manteve até 1721 e que, quiçá, o czar Novichok I pretende restaurar: já é senhor da Grande (formalmente e na prática) e da Branca (na prática), só lhe falta a Pequena.

Com o declínio da Comunidade Polaco-Lituana e a “primeira partição” do seu território entre as potências vizinhas, em 1772, a Ucrânia a oeste do Rio Dniepr caiu também sob o controlo do czar de Moscovo e, pouco a pouco, passou a ser abrangida também pela designação Pequena Rússia. No final do século XIX, este termo ficou associado exclusivamente à parte da Ucrânia integrada no Império Russo.

A designação Ruténia era ainda mais vaga do que Pequena Rússia: era usada pelos europeus ocidentais para referir genericamente os eslavos orientais, que se designavam a si mesmos por “rus’”. A primeira obra publicada sobre estes povos, o tratado etnográfico Mores, leges et ritus omnium gentium (1520), do alemão Johann Boemus, adopta um conceito ainda mais abrangente: o capítulo intitulado “De Rusia sive Ruthenia” (Sobre a Rússia ou Ruténia), descreve a região como estendendo-se do Mar Báltico ao Mar Cáspio e do Rio Don ao “mar setentrional” (o Oceano Árctico).

A acepção de Ruténia sofreu grandes alterações com o tempo e a partir de certa altura fragmentou-se na Ruténia Branca (leste da Bielo-Rússia), Ruténia Negra (oeste da Bielo-Rússia), Ruténia Vermelha (oeste da Ucrânia e leste da Polónia) e Ruténia Carpática (montanhas dos Cárpatos, abrangendo partes da Ucrânia, Polónia e Eslováquia). As três primeiras acepções caíram em desuso, ao mesmo tempo que o termo “Ucrânia” se impunha, pelo que, no início do século XX, só subsistia a Ruténia Carpática, sob controlo do Reino da Hungria e cuja parte norte seria, depois, integrada na Eslováquia, com estatuto semi-autónomo.

Neste estonteante torvelinho de povos, línguas, religiões e entidades políticas, a parte eslovaca da Ruténia Carpática, aproveitando a confusão gerada pela invasão e desmembramento da Checoslováquia às mãos da Alemanha nazi, tornou-se, durante algumas horas do dia 15 de Março de 1939, num país independente denominado Ucrânia Carpática. A história deste “país” terminou abruptamente com a recusa da Roménia em aliar-se ao novo estado e com a recusa da Alemanha em reconhecê-lo – Hitler, que era quem punha e dispunha na geopolítica centro-europeia de 1939, entregou-o à Hungria, que tratou, de imediato, de ocupar o território. Apesar de muito concisa, a proclamação de independência da Ucrânia Carpática previa, no seu n.º 7, a adopção de um hino nacional, “Shche ne vmerla, Ukrainy i slava, i volia” (A glória e a liberdade da Ucrânia não pereceram), que fora composto em 1863 e é, desde 1992, o hino nacional da moderna Ucrânia.

Presidente por um dia: Avgustyn Voloshyn (1874-1935), natural de Kelecsény, na Ruténia Carpática, e padre da Igreja Católica Grega, pugnou durante anos pela independência da sua região natal. Em Outubro de 1938 foi nomeado primeiro-ministro da Região Autónoma Sub-Carpática, vinculada à Eslováquia; a 15 de Março de 1939 auto-proclamou-se presidente da república independente da Ucrânia Carpática

Kiev

Capital e maior cidade da Ucrânia, com 2.960.000 habitantes, situada nas margens do Rio Dniepr. A transliteração oficial a partir do ucraniano é “Kyiv”, embora em Portugal e na maior parte do mundo ocidental domine a forma “Kiev”, que tem origem russa. É considerada uma das mais antigas cidades da Europa de Leste, mas não há certezas quanto à sua fundação – a lenda situa esta no século IV e atribui-a a eslavos, mas também há quem sugira origem khazar ou magiar. No século IX, Kiev era a capital do Rus’, uma federação (frouxa) de povos eslavos, fino-bálticos e varegues – sendo “varegue” a designação dada pelos eslavos aos vikings, provavelmente de origem sueca, que tinham subido os grandes rios que desaguam na costa sul do Báltico e tinham estendido a sua zona de influência até ao Mar Negro, controlando os fluxos comerciais com o Império Bizantino (para mais detalhes, ver o capítulo “Litva: Do Báltico ao Mar Negro”, em Países que não vêm nos mapas).

Não só a primeira entidade geopolítica com centro em Kiev era governada por vikings, como o topónimo “Rússia” provém de “rus’”, que era outra designação dada pelos eslavos aos vikings. Os governantes varegues de Kiev começaram, como os restantes vikings, por ser pagãos, mas em 988 o príncipe (knyaz) Vladimir/Volodymyr I (reinado: 980-1015) converteu-se ao cristianismo, o que, claro, determinou a cristianização de todo o Rus’ de Kiev.

Baptismo de Vladimir, esboço para fresco na Catedral de Vladimir, em Kiev, realizado em 1885-93 por Viktor Vasnetsov

Associar a fundação de Kiev – ou a sua ascensão ao estatuto de sede de uma grande potência, de onde emergiria, mais tarde, o Grão-Ducado da Moscóvia, precursor longínquo da moderna Rússia – a vikings é embaraçoso para os eslavos, pelo que há quem prefira dar crédito à lenda que atribui a fundação de Kiev, em 482, aos irmãos Kyi, Shchek e Khoryv e à sua irmã Lybid, e radique o nome da cidade em Kyi, o mais velho dos quatro. Os irmãos fariam, supostamente, parte do ramo oriental dos Polanos, uma tribo eslava cujo ramo ocidental daria origem aos polacos. Porém, não há qualquer comprovativo de que Kyi e os seus irmãos tenham sequer existido.

Kiev na viragem dos séculos XIX-XX

Por outro lado, não há dúvidas sobre um evento terrível que teve lugar a três quilómetros do centro de Kiev, em Babi Yar (“Ravina da Avó”), em Setembro de 1941: em apenas dois dias – 29 e 30 – todos os judeus da cidade – cerca de 33.700 – foram fuzilados pelos Einsatzgruppen das SS e enterrados na ravina. Os nazis parecem ter achado o local apropriado para se desfazerem de “untermenschen”, pois voltaram a usá-la para a eliminação em massa de prisioneiros de guerra soviéticos, de ciganos e de nacionalistas ucranianos (que, ingenuamente, tinham acreditado que as tropas nazis vinham libertá-los do jugo da URSS stalinista).

O governo soviético sempre foi relutante em reconhecer o massacre de judeus em Babi Yar e, enquanto a URSS durou, os memoriais e discursos sobre os trágicos eventos colocaram ênfase nas vítimas “soviéticas”, omitindo que os massacres perpetrados pelos nazis tinham tido um pendor anti-semita. Esta reescrita da História levou o poeta russo Yevgeny Yevtushenko, num gesto de coragem, a escrever, em 1961, um poema que começa assim “Não há monumentos sobre Babi Yar/ Apenas uma abrupta ravina, a mais grosseira das lápides”. Noutro gesto de coragem, Dmitri Shostakovich musicou o poema (apesar de este ter atraído a ira do aparelho soviético) e incluiu-o (com mais quatro poemas de Yevtushenko) na sua Sinfonia n.º 13 “Babi Yar”, que, apesar de uma campanha de intimidação e difamação, estreou em Dezembro de 1962 em Moscovo.

O memorial erguido em Babi Yar – depois do fim da URSS – foi atingido no dia 1 de Março de 2022 por um míssil soviético, que, aparentemente, visava a torre emissora de televisão próxima.

A proverbial organização germânica em acção: A 1 de Outubro de 1941, prisioneiros de guerra soviéticos cobrem as colossais valas comuns onde os judeus tinham tombado na véspera

Kharkiv

A segunda maior cidade da Ucrânia, com 1.430.000 habitantes, situa-se no nordeste do país, nas margens do Rio Kharkiv. O seu nome pronuncia-se “harkiv”, sendo o “h” um som gutural similar ao “ch” em Bach) e assume as formas Kharkov em russo e Carcóvia em português, o que gera frequentes confusões com a cidade polaca de Cracóvia (Kraków), situada 1350 Km a oeste. A etimologia da cidade ucraniana é usualmente atribuída ao seu fundador lendário, um cossaco de nome Kharko, um diminutivo do grego bizantino Chariton, que significa “benevolente”.

O mítico rei Kharko

Embora não haja qualquer prova de que este Kharko tenha existido, foram os cossacos os primeiros a erguer uma fortaleza em Kharkiv, em 1654, numa altura em que a região estava sob o domínio – instável – do Hetmanato Cossaco. O seu nome proveio do rio próximo, uma vez que foi comprovado que a designação do rio precede a construção da fortaleza, mas ignora-se a origem do nome do rio.

Em 1765, Kharkiv tornou-se na capital do Governorado da Ucrânia, uma divisão administrativa do Império Russo, e em 1919, com o advento da URSS, tornou-se na capital da República Socialista Soviética da Ucrânia, papel que em 1934 foi transferido para Kiev.

Piatykhatky, um bairro nos arredores de Kharkiv, teve a sinistra distinção de ser usado, em duas ocasiões, para ocultar os cadáveres de “inimigos do povo” suprimidos pela NKVD, a polícia política stalinista. Em 1937-38 foram milhares de intelectuais ucranianos, em 1940 foram milhares de oficiais polacos que tinham sido capturados quando da invasão soviética da Polónia. A execução de 22.000 oficiais polacos, conhecida genericamente como “massacre de Katyn”, em alusão à floresta com esse nome no distrito de Smolensk onde foram descobertas as primeiras valas comuns, distribuiu-se, na realidade, por outros pontos da URSS, nomeadamente Kalinin (hoje Tver) e Kharkiv.

Piatykhatky, Kharkiv: Memorial aos intelectuais ucranianos executados em 1937-38. Tal como o Memorial Katyn-Kharkiv (erguido a expensas do Governo polaco), não faz parte do itinerário das viagens ao Leste Europeu publicitadas nas páginas do Avante!

Os memoriais a massacres que salpicam a Ucrânia podem levar a mente a saltar da geopolítica do terror para a agronomia, elaborando uma hipótese explicativa para a invulgar fertilidade da planícies cerealíferas do país: há séculos que são adubadas regularmente com quantidades copiosas de cadáveres humanos, uma tradição que há quem pretenda manter no nosso tempo.

Mariupol

Possui 430.000 habitantes, o que faz dela a 10.ª maior cidade da Ucrânia, e situa-se no oblast de Donetsk, no ponto onde o Rio Kalmius desagua no Mar de Azov (que faz parte do Mar Negro).

Entre os séculos XII e XVIII, a posse da região de Mariupol andou numa roda viva entre tártaros da Crimeia, a Horda Dourada (uma entidade política turcomana), a Horda Nogai, o Grã-Ducado da Lituânia, a Moscóvia, o Canato da Crimeia, o Império Otomano e a Hoste Zaporizhia, entre outros. O território só foi incorporado no Império Russo em 1775, pelo Tratado de Küçük Kaynarca, no rescaldo da Guerra Russo-Turca de 1768-74, mas a presença russa manteve-se difusa nos primeiros tempos.

Onde hoje se ergue Mariupol existiu no século XVI o acampamento cossaco de Kalmius, assim designado em alusão ao rio próximo. O recém-nomeado governador dos territórios que tinham caído sob controlo russo, pensou em erguer nesse local uma cidade denominada Pavlovsk, em homenagem ao czarevitch Paulo (futuro Paulo I), mas em vez disso surgiu, em 1779, Mariupol (cidade de Maria), nome em que os russos vêem uma homenagem à czarina Maria Feodorovna (1759-1828), esposa do futuro Paulo I. Porém, há mais Marias na Terra, e há quem defenda que o nome resulta de os fundadores da cidade, em 1779, serem gregos provenientes da cidade de Bakhchisaray, na Crimeia, mais precisamente do bairro de Mariampol, assim nomeado em honra da Virgem Maria.

A czarina Maria Feodorovna, retratada por Élisabeth Louise Vigée Le Brun (década de 1790)

Poderá haver quem pergunte o que fazem os gregos nesta história – acontece que, desde o século VII a.C., eles tinham estabelecido colónias ao longo das costas do Mar Negro (Pontos Axeinos, em grego), sendo a influência helénica dominante na região até à conquista romana do Reino de Ponto, no século I. A presença grega foi diluindo-se progressivamente, sobretudo a partir do século XII, com a chegada de povos turcomanos da Ásia Central, mas no final do século XVIII, os gregos da Crimeia eram ainda suficientemente numerosos para que a imperatriz Catarina II, dita “a Grande”, lhes atribuísse territórios e confiasse a fundação de cidades em torno do Mar Negro.

Colónias gregas na costa norte do Mar Negro

Hoje existem ainda no oblast de Donetsk cerca de 90.000 habitantes que se identificam como de etnia grega, dos quais 22.000 na região de Mariupol; entre os gregos de Donetsk, 20.000 falam um dialecto grego, conhecido como “grego de Mariupol”, “grego da Crimeia” ou “ruméika”.

Tudo isto são factos que não encaixam na narrativa russocêntrica de Vladimir Putin, cuja mundividência combina a URSS da Guerra Fria com o Império Russo do final do século XIX. Na verdade, quando Putin nasceu, em 1952, tinham passado quatro anos sobre o rebaptismo de Mariupol como Zhdanov, em homenagem a um ilustre filho da terra, Andrei Zhdanov, falecido nesse ano. A mudança de nome fora imposta por Stalin, de quem Zhdanov fora um dos mais fiéis colaboradores, tendo desempenhado papéis de relevo na Grande Purga de 1937, na defesa de Leningrad durante o cerco nazi e na condução da política cultural e da propaganda no pós-II Guerra Mundial. Neste último cargo, Zhdanov impôs a conformação da produção dos artistas, criadores e editores soviéticos à cartilha do PCUS e promoveu a perseguição implacável de quem tentasse escapar a este espartilho, — que logo era acusado do pecado capital do “formalismo”, isto é, arte que se “limitava” a ser arte e não desempenhava uma função social, e era “hermética”, isto é, não susceptível de ser compreendida e apreciada pelo proletário médio (ver A noite em que Stalin foi à ópera).

Stalin e Zhdanov no funeral de Sergei Kirov, a 6 de Dezembro de 1934

Embora a copiosa toponímia alusiva a Stalin espalhada pela URSS tenha sido removida após o Paizinho dos Povos ter sido denunciado pelo seu sucessor, Nikita Khrushchev, no 20.º Congresso do PCUS, em 1956, o topónimo Zhdanov só foi revertido para Mariupol em 1989, quando a URSS entrou em processo de implosão.

Odessa

Terceira maior cidade da Ucrânia, com 1.015.000 habitantes, situada na costa noroeste do Mar Negro; tem relevância como porto comercial e estância turística. Em português e na maior parte das línguas é grafada como Odessa, a transliteração a partir do ucraniano é Odesa.

Os primeiros vestígios de ocupação urbana são gregos e remontam ao século VI a.C. O povoado grego manteve fortes vínculos comerciais com o Mediterrâneo durante a Antiguidade Clássica e, tal como Mariupol, viria a passar pelas mãos de diversas entidades políticas ao longo dos séculos. A partir do século XIII, a região de Odessa ficou sob o controlo da Horda Dourada (mongóis), o que não impediu que no século XIV, genoveses provenientes da colónia de Gazaria, no sul da Península da Crimeia, erguessem nas redondezas um castelo, denominado nos mapas italianos como Ginestra. Quando, no início do século XV, o Canato da Horda de Ouro começou a desintegrar-se, o poder na Crimeia e costas do Mar Negro passou para o Canato da Crimeia, fundado por Khaci I Giray (também grafado Haji-Girei, reinado: 1441-66). Atribui-se a este governante a construção da fortaleza de Khadzibey (também grafado Hacibey), cujo nome provirá do nome do governante + bey (senhor), embora uma teoria alternativa sugira que a primeira parte do topónimo virá antes da palavra turca “haci”, que designa os muçulmanos que cumpriram a peregrinação a Meca (“hajj”).

As lutas pelo poder entre príncipes e senhores da guerra da Horda Dourada e turcos otomanos foram caóticas e levaram Khaci Giray a buscar o apoio do Grão-Ducado da Lituânia, a quem, em troca, concedeu a costa nordeste do Mar Negro, incluindo Khadzibey. Em 1520, a fortaleza (e uma aldeia piscatória adjacente) passou para mãos otomanas e assim permaneceu – embora sendo rebaptizada, temporariamente, como Yeni Dünya (“Novo Mundo”) – até à Guerra Russo-Turca de 1787-92, quando foi tomada por tropas russas (que incluíam um destacamento comandado por um general espanhol, José de Ribas, que é lembrado numa rua da moderna Odessa, a Deribasisvska).

Odessa em 1814

Catarina, a Grande ordenou que fosse criada uma cidade no lugar da fortaleza de Khadzibey, e, para o efeito, recorreu, como em Mariupol e outras cidades do sul da Ucrânia, a “colonos” gregos. Mariupol era um das peças do “Plano Grego”, delineado por Catarina, a Grande e posto em prática pelo seu favorito, o príncipe Grigory Potemkin, e que era uma etapa numa ambição megalómana de Catarina: o seu objectivo último era esmagar o Império Otomano e restaurar o Império Bizantino, em cujo trono pretendia instalar o seu neto Constantino (baptizado com um nome à altura de tão magnífico destino). Se Odessa foi fundada por gregos, grego foi também o nome imposto à cidade: Odessos, numa referência (geograficamente deslocada) a uma antiga cidade grega na costa do Mar Negro, situada bem mais a sul, onde hoje se situa o porto búlgaro de Varna (ver, acima, mapa das colónias gregas no Mar Negro). Em 1795, Catarina decidiu que este nome, sugerido pela Academia Russa de Ciências, deveria ter um toque feminino, pelo que foi convertido em Odessa.

Antes de Fevereiro de 2022, os únicos europeus ocidentais a quem o nome Odessa não era estranho eram os cinéfilos, pois a mais célebre cena de “O couraçado Potemkin” (“Bronenosets Potiomkin”, 1925), de Sergei Eisenstein, tem por cenário a monumental Escadaria de Potemkin, que transpõe o desnível entre o porto e a parte alta de Odessa e foi construída em 1837-41.\

A Escadaria de Potemkin, num bilhete postal da viragem dos séculos XIX-XX

Os eventos de 1905 retratados em “O couraçado Potemkin” (a revolta dos marinheiros do dito navio, ao largo de Odessa, acompanhada por uma greve geral em terra firme) foram sangrentos, mas foram completamente ofuscados pelo massacre de 30.000 judeus que teve lugar na cidade, às mãos de tropas romenas e dos Einsatzgruppen das SS, a 22-23 de Outubro de 1941 e no Inverno de 1942. Tal morticínio não foi suficiente para exterminar a população judia de Odessa, cujas 200.000 almas representavam, em 1941, 1/3 do total de habitantes, pelo que os massacres continuaram, em ritmo mais compassado, em Dezembro e Janeiro, ceifando a vida a mais 55.000 judeus. Os judeus de Odessa que não sucumbiram nestes massacres foram empurrados para vagões de gado ou para marchas da morte e acabaram por morrer em trânsito, nas condições pavorosas dos campos de concentração ao ar livre ou fuzilados.

Memorial às vítimas do Holocausto em Odessa

Lviv

Com 717.000 habitantes, é a sexta maior cidade da Ucrânia e a maior da Ucrânia Ocidental.

Os vestígios mais antigos de construções remontam ao século VI, mas a sua fundação oficial é mais recente: data de 1256 e terá sido obra de Daniel da Galícia (Danilo Halytskyi ou Danylo Romanovych) e foi baptizada em honra do filho varão deste, Lev (nome que significa “leão” e explica a presença do animal no brasão da cidade), que, quando sucedeu ao pai no trono, em 1269, transferiu a capital do reino de Halych para Lviv.

O Reino da Galícia-Volínia (Halych-Volhynia), com origem no Principado de Halych, foi uma entidade política que teve existência semi-independente entre 1199 e 1349 e que, para aumentar a confusão, também foi designado como Reino da Ruténia entre 1253 (data da coroação de Daniel da Galícia) e 1349. Por se situar numa encruzilhada geográfica e por ser, ela mesma, uma “caldeirada” de povos e línguas, a Galícia-Volínia foi sendo disputada e dominada por diversos poderes: mongóis da Horda de Ouro, húngaros, rutenos (vá lá saber-se em que acepção) e polacos. Em 1349, o rei Casimiro III da Polónia acabou de vez com as veleidades independentistas do pequeno reino, sendo a Galícia integrada na Polónia e a Volínia, na Lituânia.

Pátio interior do Palácio Korniakt, na Praça do Mercado, a residência em Lviv do rei polaco Jan III Sobieski (1629-1696). O palácio, uma jóia da arquitectura renascentista desenhada pelo arquitecto polaco Piotr Barbon e concluída em 1580, foi encomendado por Konstanty Korniakt, um mercador grego nascido em Candia (Creta), que se estabeleceu em Lviv na década de 1560; Korniakt tornou-se num dos homens mais ricos do seu tempo, negociando com o Império Otomano e o Império Habsburg e desempenhando o papel de banqueiro da realeza e nobreza polacas. O palácio foi adquirido em 1640 pelo nobre polaco Jakub Sobieski e remodelado pelo seu filho Jan

O domínio polaco da Galícia não esteve isento de contestação – Lviv foi sitiada por cossacos em 1648 e 1655 e pelo rei Carlos XII da Suécia em 1704 – mas manteve-se até 1772, quando a Comunidade Polaco-Lituana (ou República das Duas Nações), foi retalhada e parte da Galícia foi atribuída ao Império Habsburg, com o nome de Reino da Galícia e Lodomeria ou Galícia Austríaca. A desagregação final da Polónia-Lituânia, em 1795, integrou a outra parte da Galícia no Império Russo.

Em 1867, o Império Habsburg foi reformulado como Império Austro-Húngaro, mas nada mudou na Galícia, a quem fora imposta uma actividade estritamente agrícola e negado o desenvolvimento industrial, o que fez dela a mais pobre província do império e uma das regiões mais miseráveis da Europa.

Catedral arménia de Lviv: A sua origem remonta a uma igreja erguida c.1363-70 por um mercador arménio de Caffa (na costa do Mar Negro). A natureza fluida e multicultural da história de Lviv está bem patente na sua rica arquitectura sacra, representando diversas religiões: católica romana, católica grega, católica grega ucraniana, católica arménia, ortodoxa, judia, karaíta

Quando o Império Austro-Húngaro foi desmantelado, em 1918, a parte ocidental da Galícia passou para as mãos de uma Polónia reconstituída, enquanto a parte oriental proclamou independência sob a designação República Popular da Ucrânia Ocidental (Sachidno-Ukrajinska Narodna Respublika). Esta teve existência efémera, entre Novembro de 1918 e Julho de 1919, pois quer a Polónia quer a URSS entenderam que o território lhes pertencia. Em Julho de 1920, a recém-criada república foi ocupada por tropas polacas, que logo se viram forçadas a retirar pelo Exército Vermelho, que proclamou a República Soviética Socialista da Galícia; esta não chegaria porém ao Outono, uma vez que a 21 de Setembro foi a vez de tropas polacas e dos nacionalistas ucranianos expulsarem o Exército Vermelho.

A República Popular da Ucrânia Ocidental em 1918

A Guerra Polaco-Soviética de 1918-21 foi terminada pelo tratado de Riga, que atribuiu a Galícia integralmente à Polónia, o que não foi bem aceite pela importante minoria ucraniana que habitava na parte oriental da Galícia. Novos conflitos e convulsões se abateram sobre a região durante a II Guerra Mundial, que foi invadida em Setembro de 1939 pela URSS (em concertação com a Alemanha nazi), em Junho de 1941 pela Alemanha (Operação Barbarossa) e na viragem de 1944-45 pela URSS. No termo da guerra, a URSS impôs a deslocação para ocidente da fronteira pré-conflito entre Polónia e URSS, levando a que a URSS ganhasse a parte oriental da Galícia. Este reajuste, que teve lugar nos meses após o termo da II Guerra Mundial, não foi meramente administrativo: fez-se com grande derramamento de sangue e com a expulsão em massa de polacos para fora da Ucrânia e de ucranianos para fora da Polónia, como dá conta Keith Lowe em O continente selvagem.

Em 1991, com a implosão da URSS, a Ucrânia independente manteve a fronteira ocidental definida em 1945, o que inclui a parte oriental da antiga Galícia e, claro, Lviv. E, ao contrário do que acontecera quando da implosão do Império Russo, desta vez a Polónia não tentou reclamar soberania sobre a antiga Galícia oriental.

Selo de 1920 da República Popular da Ucrânia Ocidental: Um raro vestígio de um dos mais efémeros e precários países da História

Esta atribulada história leva a que Lviv tenha sido designada como Lwihorod pelos rutenos, Ílbav pelos tártaros da Crimeia, Lwów pelos polacos (pronuncia-se “lvuv”), Lvov pelos russos, Lemberg ou Leopoldstadt pelos alemães e austríacos, Ilyvó pelos húngaros e Lemberik em iídiche.

Kherson

A cidade, situada na embocadura do Rio Dniepr, a norte da Península da Crimeia, não tem uma população numerosa – 280.000 habitantes – mas é um dos mais movimentados portos do Mar Negro e alberga uma importante indústria naval.

Foi a primeira das cidades do “Plano Grego” de Catarina a Grande, que, além de Odessa e Mariupol, levou à fundação, no final do século XVIII, das cidades de Melitopol, Nikopol e Ovidiopol (na Ucrânia), Yevpatoria, Sevastopol e Simferopol (na Península da Crimeia), Stavropol (na Rússia) e Tiraspol (na Transnístria), todas elas com nomes que remetem para antigas cidades gregas no Mar Negro, para antigos topónimos gregos, ou para figuras da Antiguidade Clássica.

No caso de Kherson, fundada em 1778, a referência (geograficamente deslocada) foi a antiga cidade grega de Chersoneso, na Península da Crimeia (as suas ruínas estão hoje rodeadas pelos subúrbios de Sevastopol), e cujo nome significa, em grego, “península” (de khersus = terra seca + nesos = ilha).

Foi a primeira cidade importante da Ucrânia a cair sob controlo russo na presente invasão.

Kherson e o Rio Dniepr

Dnipro

Com 980.000 habitantes, é a quarta maior cidade da Ucrânia.

Situa-se no centro da Ucrânia, nas margens do Rio Dnieper (Dnipro, em ucraniano), e foi fundada em 1776 por Grigory Potemkin, que lhe outorgou o nome da sua soberana (e, dizem as más-línguas, amante) Catarina, a Grande, mas o local escolhido para Yekaterinoslav (literalmente: “Glória a Catarina”) revelou-se alagadiço, o que obrigou a que fosse deslocada para terreno mais propício – que a imperatriz visitou em 1787, para formalizar a refundação.

Uma figura decisiva no urbanismo, toponímia e história da Ucrânia: Catarina II, a Grande (1729-1796), retratada por Johann Baptist von Lampi, década de 1780

Na visão de Potemkin, Yekaterinoslav seria não só a capital da Nova Rússia (Novorossiya), ou seja dos extensos territórios otomanos atribuídos à Rússia pelo Tratado de Küçük Kaynarca (1774), como a terceira cidade mais importante do Império Russo, a seguir a São Petersburgo e Moscovo – era referida como a “São Petersburgo do Sul” e “Atenas do Norte”. O facto de ter sido a capital do Governorado de Novorossiya levou a que em 1797 fosse rebaptizada como Novorossiysk, nome que foi revertido para o original em 1802.

Yekaterinoslav, década de 1910

No período conturbado que se seguiu à Revolução de Outubro, os ucranianos tentaram criar uma república independente e rebaptizaram Yekaterinoslav como Sicheslav, em homenagem ao Zaporoz’ka Sich, uma entidade política criada na Ucrânia Central e de Leste pelos cossacos de Zaporozhia (ou Hoste Zaporozhia) e que gozou de alguma autonomia nos séculos XVI-XVIII (há vestígios dela no nome da moderna cidade ucraniana de Zaporizhzhia, nas margens do Dniepr). A caótica Guerra Ucraniana da Independência acabou em 1921, com o Exército Vermelho a sufocar as aspirações independentistas, e em 1926 Yekaterinoslav foi formalmente rebaptizada como Dniepropetrovsk, com “Dniepro” a aludir ao rio que a atravessa e “Petrovsk” a homenagear Grigory Petrovsk (1878-1958), um proeminente bolchevique ucraniano.

Entre outros cargos proeminentes no aparelho de Estado soviético, nos anos escaldantes de 1917-19 Petrovsk foi Comissário do Povo da Administração Interna, com responsabilidade de supervisionar a Cheka, a polícia política bolchevique (antecessora da NKVD e do KGB), tendo defendido “o fuzilamento em massa de burgueses […] Não deve haver hesitação na aplicação do terror”. Entre 1919 e 1938, foi secretário-geral do Comité Central Executivo da República Socialista Soviética da Ucrânia (em termos práticos: o homem  mais poderoso da Ucrânia), o que significa que terá sido, em 1932-33, um dos responsáveis pela implementação do iníquo plano de Stalin para extinguir de vez as veleidades independentistas ucranianas e a relutância dos camponeses ucranianos em aceitar a colectivização, através do mais primitivo e brutal dos métodos: matando-os à fome. Com efeito, a Ucrânia tornou-se mais submissa, à custa de excruciantes sofrimentos e de 2.5 a 5 milhões de mortos, num episódio que ficou inscrito na história da Ucrânia (mas não na da URSS ou da Rússia) como Holodomor (de “holod” = fome + “mor” = peste, com o sentido de “assassinar pela fome”).

Grigory Petrovsk, c.1917

Era provavelmente a esta forma “expedita” de Stalin lidar com os ucranianos que Jerónimo de Sousa se referia num discurso a 24 de Fevereiro passado, quando, reagindo ao que considerou ser um ataque injusto de Putin (no discurso realizado três dias antes) contra a URSS, elogiou a “notável solução que esta encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas”. Não foram os ucranianos os únicos a beneficiar da sábia e magnânima política do Estado soviético para com as diversas nacionalidades que o integravam – que o digam os tártaros da Crimeia, os alemães do Volga, os tchetchenos e os inguches, deportados em massa para campos de internamento em regiões desoladas da Ásia Central soviética, onde muitos acabaram por perecer devido às privações a que foram sujeitos. Em menor escala, também polacos, lituanos, letões, estónios, finlandeses da Karelia, romenos da Bessarábia, gregos da Crimeia, turcos de Meskheti, calmuques, balkars, karachays, karapapakhs e coreanos foram incluídos neste programa “Vá para fora cá dentro” (um Intra-Rail em vagões de gado), que permitiu a milhões de cidadãos soviéticos a descoberta de novas paisagens (quase sempre áridas e inóspitas) e um frutuoso intercâmbio cultural (ainda que os mais aburguesados tendessem a reclamar das acomodações e do room service).

No longo e “pedagógico” discurso proferido pelo czar Novichok I a 21 de Fevereiro, que estabeleceu o quadro legitimador para a invasão da Ucrânia, a única coisa que melindrou o PCP foi o Czar de Todas as Rússias ter considerado a criação da República Socialista Soviética da Ucrânia por Lenin como um erro histórico. Esta divergência quanto ao acerto da “reforma administrativa” levada a cabo por Lenin – cuja infalibilidade é tão inquestionável para um comunista como a do papa é para um católico – não têm, todavia, impedido o PCP de recusar sistematicamente a condenação da invasão russa da Ucrânia, dando provas de coerência com a política do partido de apoiar quem quer que ocupe o Kremlin, independentemente da sua ideologia, actuação ou carácter.

Se as posições públicas do PCP são, na sua lógica malsã, “compreensíveis”, já é inexplicável que a Ucrânia independente tenha deixado passar 25 anos até remover o nome de um responsável maior pelo Holodomor do nome de Dniepropetrovsk, que, em 2016, passou a ser simplesmente Dnipro.

Já agora, o rio que dá nome à cidade tem uma etimologia que remonta ao sármata “danu apara” (“rio do lado de lá”, por oposição ao “rio do lado de cá” = danu ister”, ou seja, o Dniester) ou ao cita “danu apr” (rio profundo), sendo os sármatas e os citas, antigos povos das estepes euro-asiáticas.

A Merefo-Hersonsky, uma das pontes sobre o Rio Dnieper que une as duas partes da cidade de Dnipro

Assombrados pelos fantasmas da história

As lascas de história e geografia acima apresentadas poderiam servir para que também polacos, lituanos, húngaros, cossacos, tártaros, mongóis, turcos, gregos e até suecos se sentissem autorizados a reclamar a sua soberania sobre a Ucrânia ou, pelo menos, sobre um quinhão dela. Porém, toda a argumentação com base histórica que possa ser aduzida para justificar pretensões territoriais na Ucrânia se esboroa perante cinco factos incontornáveis e insofismáveis:

1) A 24 de Agosto de 1991, o Parlamento (então ainda designado Soviete Supremo) da República Socialista Soviética da Ucrânia, aprovou uma Declaração de Independência, com 321 votos a favor, 2 contra e 6 abstenções ;

2) A 1 de Dezembro de 1991, num referendo unanimemente reconhecido como livre, democrático e “limpo”, 90% dos votantes (82% do total de eleitores ucranianos) votaram a favor da dita declaração.

3) A decisão do povo ucraniano de seguir o seu próprio caminho foi formalmente reconhecida no dia seguinte por Boris Yeltsin, presidente da Federação Russa, no que foi acompanhado, nos meses seguintes, pelos restantes países com representação na ONU.

4) A 8 de Dezembro de 1991, os presidentes da Federação Russa (Boris Yeltsin), Ucrânia (Leonid Kravchuk) e Bielo-Rússia (Stanislav Shuhkevich) assinaram os Acordos de Belovezh, extinguindo formalmente a URSS, o que foi confirmado, a 21 de Dezembro, em Alma-Ata, por 11 das 12 repúblicas soviéticas restantes (a excepção foi a Geórgia).

5) Em Dezembro de 1994, pelo Memorando de Budapeste, a Federação Russa, os EUA e o Reino Unido assumiram a garantia da independência e da integridade territorial dos três países em que estava instalado parte do arsenal nuclear da antiga URSS – Ucrânia, Bielo-Rússia e Cazaquistão – em troca da entrega daquele à Rússia ou da sua desactivação. Deve ser realçado que a fragmentação da URSS deixara a Ucrânia na posição de terceira maior potência nuclear do mundo, à frente do Reino Unido, China e França.

Moscovo, Janeiro de 1994: Os presidentes dos EUA (Bill Clinton), Federação Russa (Boris Yeltsin) e Ucrânia (Leonid Kravchuk), após a assinatura do Acordo Trilateral, que conduziria ao Memorando de Budapeste

Em 2005, na conclusão do artigo Da China a Olivença, a cartografia do rancor, escreveu-se: “Após a desagregação do bloco soviético, poderia temer-se que as nações do leste da Europa voltassem a engalfinhar-se numa luta mortal, invocando direitos históricos e reparações de agravos, como aconteceu a sul, na ex-Jugoslávia. Mas, se exceptuarmos as manobras russas de criação de estados-fantasma e focos de instabilidade (Transnístria, Abkhazia, Ossétia do Sul e, mais recentemente, a Crimeia e o leste da Ucrânia), cujo fito parece ser tolher, enfraquecer e intimidar os países vizinhos, de forma a rodear [a Rússia] de uma zona-tampão, os restantes países da Europa oriental tiveram a sensatez de esquecer velhos rancores e aceitar como facto consumado as fronteiras de 1945, por muito discutíveis e aberrantes que estas possam ser face ao passado. Ou seja, perceberam que os ardores patrióticos são sobretudo um produto de imaginações inflamadas e em pouco contribuem para a felicidade e realização dos povos e que o atávico instinto territorial tem sido, antes de mais, uma fonte de incontáveis infortúnios”.

Em reacção ao reconhecimento pela Rússia das “repúblicas independentes” de Donetsk e Luhansk, Martin Kimani, embaixador do Quénia junto das Nações Unidas, exprimiu ideia análoga num discurso no Conselho de Segurança da ONU: “Acreditamos que todos os estados resultantes de impérios que colapsaram ou se retiraram contêm muitos povos dentro deles que aspiram a juntar-se com os seus semelhantes em países vizinhos. Isto é normal e compreensível. Todavia, o Quénia rejeita que tal aspiração possa ser concretizada pela força”. Kimani sabe do que fala, pois as fronteiras dos países africanos são ainda mais contra natura do que as da Europa – são uma manta de retalhos arbitrária desenhada (muitas vezes a régua e esquadro) em gabinetes europeus pelas antigas potências coloniais, sem a mais leve consideração por realidades étnicas, linguísticas, religiosas, históricas, económicas e geográficas, pelo que, se cada país decidisse tomar armas para rearranjar este desajeitado legado da administração colonial, todo o continente africano ficaria a ferro e fogo.

Resta saber se, na Europa, o czar Novichok I tem em vista “apenas” a anexação ou “neutralização” da Ucrânia, ou se o seu objectivo é repor as fronteiras do Império Russo no seu apogeu, que abarcavam a Polónia, Lituânia, Letónia, Estónia, Finlândia, Moldávia e Transnístria. Ao longo do século XXI, a pressão da Rússia sobre os países-viznhos, mediante intimidação, ingerência na política interna e até invasão, foi justificada com a necessidade de manter a NATO longe das suas fronteiras, o que era visto como uma ameaça à sua segurança; porém, a partir de 12 de Julho de 2021, com a publicação do ensaio “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, assinado por Putin, a retórica foi reorientada para a vertente identitária e histórica: afirma este ensaio que russos, ucranianos e bielo-russos são um mesmo povo e partilham a mesma herança e – esta é a parte mais inquietante – o mesmo destino. Defende ainda que a moderna Ucrânia ocupa territórios que são historicamente russos. O ensaio não só foi convertido em obra de estudo obrigatório nas academias militares russas, como foi seguido por ensaios de teor similar, assinados por altas figuras do Estado russo – como o do seu assessor Vladislav Surkov, que questionava não só a fronteira da Ucrânia como a dos Estados Bálticos. Ou seja, o discurso proferido por Putin a 21 de Fevereiro de 2021 e que deixou os ucranianos e o Ocidente alarmados, limitou-se a reafirmar ideias e intenções que já eram públicas há meses, mas que, pelo menos no Ocidente, ninguém levou a sério.

Num dos intermináveis monólogos pela noite dentro com que maçava todos aqueles que convidava para jantar, Hitler justificou assim a sua ambição expansionista: “As minhas exigências não são exageradas. No fundo, tudo o que eu quero são os territórios onde os alemães já viveram”. Terá Putin aspiração análoga?