Diz que a sua voz “não conta absolutamente nada no PS”, garante que enquanto presidente do Conselho Económico e Social tem “dever de reserva” e até coloca a hipótese de não conseguir, por questões de agenda, ir ao congresso do PS deste fim de semana — seria o primeiro que falharia em “30 e tal anos”. Mesmo assim, quando o assunto é o futuro do país e do partido, Francisco Assis não resiste a vestir o papel de analista. Com convicções fortes: “Ninguém duvida” de que Costa vai mesmo recandidatar-se em 2023 e poderá, depois, seguir para um cargo europeu, acredita.
Numa pousada de Viana, onde está a passar férias — interrompeu-as por uma hora para dar esta entrevista ao Observador — Assis falou sobre a sucessão no PS, um termo que recusa, por lembrar uma lógica “dinástica”, e disse ver “qualidade” nos nomes que conhece melhor (Ana Catarina Mendes, uma das “maiores amigas”, Fernando Medina e Pedro Nuno Santos). Então e Mariana Vieira da Silva, que surge agora como quarta via? “A capacidade política também se vai construindo”. Quanto ao próprio Assis, jura não ter qualquer “ambição” de liderança.
Com uma visão mais “otimista”, o socialista que sempre se opôs à geringonça até já vê no BE e PCP traços de “reformismo”, embora continue convicto de que é ao centro que se fazem as grandes mudanças de fundo — e que esses entendimentos vão acontecer cada vez mais. Quer ajudar a traçar essas reformas a partir do Conselho Económico e Social: encarregou Miguel Poiares Maduro, que António Costa acusava recentemente de “liderar uma campanha internacional contra Portugal”, de desenhar uma proposta de revisão da organização.
[Pode ver aqui os melhores momentos da entrevista de Francisco Assis ao Observador:]
Em julho dizia que o CES devia “repensar o seu papel”. Já é presidente do CES há um ano. O que é que é preciso repensar?
A quem compete promover alterações é o Governo e a Assembleia da República. Mas entendo que do próprio CES deve sair uma reflexão sobre o papel que deve desempenhar na sociedade portuguesa e na vida cívica do país. Fez há dias 30 anos que o CES foi criado. Resulta numa decisão tomada na revisão constitucional de 1989, e depois em 1991 foi criado por iniciativa do Governo — estive há dias a ler com interesse a ata do debate parlamentar relativo à criação do CES; o professor Valente de Oliveira na altura era ministro do Planeamento e apresentou o CES na AR. Curiosamente, o único partido que também apresentou um projeto foi o PCP e havia pontos de convergência entre os dois projetos. A ideia era criar um CES que valorizasse a concertação social mas também tivesse uma assembleia representativa de vários segmentos…
A proposta do PCP não passava pela valorização da concertação?
Não era uma proposta que de forma ominosa desvalorizasse a concertação social, nem de perto nem de longe. Mas valorizava precisamente a outra componente. Aliás, o debate é muito interessante porque a dada altura o Narana Coissoró, deputado do CDS, diz que o mundo é curioso porque pelas mãos do PCP regressa à vida política portuguesa um projeto de criação de uma nova câmara corporativa (risos). É um debate de alto nível. O PS tem aliás uma posição crítica em relação à proposta do Governo, porque acha que o Governo ao pretender estar representado no CES estaria a tentar governamentalizar o CES.
Mas que seguimento está a dar à revisão que propôs? E está mais próxima de quê?
Há dois tipos de CES. Há um CES em que se valoriza quase estritamente a concertação social, mas é o CES que tem todos os instrumentos, meios e recursos para promover essa concertação social, o que não acontece em Portugal: o CES tem muito poucos recursos. Não tem nenhum economista, nenhum jurista nem nenhum sociólogo nos seus quadros, por isso não tem capacidade de produzir pensamento nem estudos. A meu ver, é uma insuficiência muito grande. Mesmo no apoio à concertação social tem algumas dificuldades, como é óbvio. O presidente do CES tem assento nas reuniões da comissão especial de concertação social, mas intervém episodicamente e não tem direito de voto. A nossa função é mais informal. O modelo mais interessante e inovador é talvez o francês, o Conselho Económico Social e Ambiental, que procura dar voz à sociedade civil francesa e chega ao ponto de criar assembleias participativas, em que as pessoas chegam lá por sorteio. Julgo que o CES pode ter uma maior participação no que considero fundamental: a organização de um espaço público de discussão dos mais diversos temas que se colocam ao país. Desta experiência de um ano, que é muito interessante, tenho verificado que o CES é um local, com todas as limitações que temos, onde se discutem os mais diversos assuntos com muita profundidade. Não estamos sob os focos da opinião pública e da comunicação social, o que tem as suas vantagens do ponto de vista da discussão. Eu próprio, nas pessoas que escolhi…
Fale-nos disso. Em que ponto está a proposta? Quem está a trabalhar consigo?
A pessoa a quem pedi que apresentasse uma proposta que submeterei a discussão e apresentarei ao Governo é o professor Miguel Poiares Maduro, que faz parte do CES. O presidente tem a faculdade de escolher dois vice-presidentes: escolhi o professor Fernando Alexandre, de Economia na Universidade do Minho; a professora Sara Falcão Casaca, do ISEG, especialista em igualdade de género; e cinco personalidades, uma delas o Miguel Poiares Maduro. O processo de instalação do CES é muito lento, demora meses… Só em abril tivemos o CES plenamente constituído.
Curioso que escolha Miguel Poiares Maduro, que teve uma guerra com o primeiro-ministro sobre o procurador europeu. Aliás, foi muito dura a troca de acusações. António Costa acusou-o mesmo de fazer campanha internacional contra Portugal. É pacífica essa escolha, quando fala com o primeiro-ministro?
(Risos) O primeiro-ministro é um homem que tem uma abertura grande, como é evidente. É uma escolha do presidente do CES, entendi que é a pessoa indicada e não me pronuncio sobre essas disputas. Eu estava afastado da vida partidária…
Mas com certeza terá ouvido António Costa acusá-lo de fazer campanha internacional contra Portugal. Essa crítica foi exagerada?
Ouvi, e entendo isso no campo da disputa política-partidária. Já estava até afastado antes e esta função limita-me na minha capacidade de intervenção política. Sei distinguir o que decorre estritamente do campo do confronto político-partidário, que respeito, porque a vida política faz-se de confronto e conflitualidade e não de unanimismos e consensos absolutos; outra coisa é o CES e nesse sentido considero que o professor Poiares Maduro tem qualidades intelectuais e requisitos académicos que o habilitam de forma superior para elaborar um estudo dessa natureza. De resto, tenho falado inúmeras vezes com ele, até me disse que ia aproveitar as férias para trabalhar nessa questão, e não tenho nenhum motivo para qualquer reserva.
Por falar em conflitualidade, foi já enquanto presidente do CES que acusou a bancada do PS de ter um comportamento “altamente negativo” quando aprovou a proposta do PCP sobre lei laboral. Sentiu o PS refém do PCP? Acredita que o PS se vai aproximar dos comunistas nestas matérias?
Não me pronuncio sobre a substância da proposta…
Tinha a ver, por exemplo, com o fim do alargamento do período experimental.
Exatamente. Não me pronuncio sobre a substância, acho perfeitamente legítimo e até coerente que o PCP se bata por isso, respeito essa posição. O que salientei foi que há um acordo de concertação social em vigor e foi assinado pelo Governo. Portanto tudo o que do ponto de vista parlamentar seja aprovado no sentido de pôr em causa compromissos assumidos pelo Governo evidentemente é negativo no plano da concertação social, porque gera um ambiente de suspeição. Felizmente não teve consequências e a prova é que depois já assinámos um acordo de concertação social, sobre formação profissional, que foi muito importante…
E acredita que o PS não vai alinhar com o PCP nas questões laborais?
Não sei, não direi mais nada. Apenas alertei para este problema porque entendi que enquanto presidente do CES tinha essa obrigação. Há um acordo em vigor. Depois até houve uma pequena polémica com o líder parlamentar do PCP, por quem tenho consideração. Achei que tinha esse dever e nunca deixarei de fazer aquilo que entenda que devo fazer, em qualquer função pública, com o máximo de rigor e exigência. Naquele momento, levaram-me a tomar essa posição, que não é do meu agrado: falar para a bancada do partido de que faço parte, dirigida por uma pessoa que é das minhas maiores amigas na vida política e pessoal, Ana Catarina Mendes, das mais próximas que tenho e por quem tenho enormíssima consideração política.
Essa consequência, dizia na altura, era criar insegurança e prejudicar a concertação social. Nesse contexto, e até pela relação que tem pelos parceiros parlamentares, o Governo não desvaloriza o papel da concertação social e do CES?
Não tenho notado isso, acho que o Governo tem valorizado a concertação social. Temos reuniões da concertação social de 15 em 15 dias, com uma frequência enorme. O Governo está sempre disponível para ouvir as preocupações dos parceiros sociais. Todos têm tido uma postura construtiva. Acho que dessas reuniões resultaram muitas decisões muito positivas, que tiveram como efeito evitar que a crise pandémica se transformasse numa gravíssima crise económica e social.
Os tempos de geringonça não vieram prejudicar a influência e importância dos parceiros sociais?
Tenho a certeza absoluta de que o PS continua a valorizar fortemente a concertação social. E tenho a certeza absoluta de que o primeiro-ministro valoriza a concertação social, assim como os membros do Governo que participam são pessoas muito empenhadas em promovê-la.
Então o que achou de o PS deixar de repente deixar passar aquela proposta?
Não tenho nenhuma explicação. A questão não foi o PCP. Chamei apenas a atenção para que o Governo assumiu um compromisso. Se há uma violação desse acordo… O Parlamento tem toda a legitimidade para o fazer, mas…
Mas o que é que isso significa para a concertação social?
Podia significar uma perda de confiança, é evidente. Se estabeleço um acordo e depois não estou em condições de cumprir, é evidente que as partes podem passar a duvidar no futuro de se estou em condições de garantir a concretização de eventuais acordos. Acho que não aconteceu.
Acha que é só fumaça.
Acho que é mais fumaça do que outra coisa, porque logo a seguir se assinou este acordo com os representantes das várias confederações empresariais e a UGT. Entendi que como presidente do CES tinha aquela obrigação. Houve quem gostasse, quem não gostasse, mas na vida pública temos de ter a noção de que temos às vezes de tomar decisões difíceis ou fazer afirmações polémicas.
Chegou a fazer as pazes com João Oliveira, que acusou de usar contra si “uma linguagem própria de regimes em que o lugar dos democratas é na prisão”?
Não falei com ele nem ele comigo (risos). Creio que percebemos o que estava em causa. Não gostei muito da forma como o líder parlamentar do PCP se referiu a mim enquanto presidente do CES — no plano pessoal nada me incomoda, já ouvi de tudo, já fui atacado de todas as maneiras e feitios ao longo de tantos anos e tenho uma carapaça enorme — mas entendi que devia deixar claro que o presidente do CES sabe muito bem o papel que desempenha na vida nacional e em nenhum momento pretenderia substituir-se ao Parlamento ou ao Governo. Dessa parte não gostei, mas está ultrapassado. A vida política e cívica fazem-se destas discussões, que são úteis quando feitas com frontalidade.
Disse que um dos objetivos do CES será perceber “por que é que a economia portuguesa está estagnada há cerca de 20 anos”. O rumo do Governo permite contrariar essa situação? Ou perpetua essa estagnação?
Tenho tido a preocupação de me afastar da discussão político-partidária. Não falarei sobre se este Governo em concreto, até porque em 20 anos tivemos vários Governos…
Já temos um Governo de António Costa há alguns anos…
Tivemos muitos primeiros-ministros e vários Governos. E há um problema sério e não há ninguém no país que não tenha consciência dele: a nossa economia, nos últimos 20 anos, praticamente estagnou. Ela cresceu ligeiramente acima da média europeia nos últimos anos, antes da crise pandémica, mas esse crescimento resulta em grande parte do facto de as grandes potências europeias estarem com um crescimento anormalmente baixo, o que significa que a média baixou muito e também partia de um nível muito baixo, de uma fortíssima recessão. Também tivemos a grave crise de 2009-2011, que não tem a sua génese em Portugal mas que depois se manifesta de forma particularmente grave em países mais débeis, como é o nosso caso. O que me proponho fazer, e por isso convidei o professor Fernando Alexandre, que tem estudado profundamente as questões de produtividade, foi dizer: temos de pensar a questão da produtividade, porque é uma questão chave para o desenvolvimento do país. Para o crescimento da economia, para a manutenção do estado social e recursos para o sustentar, num país que está a envelhecer muito rapidamente e tem um seríssimo problema de natalidade… Só haverá crescimento económico se melhorarmos os níveis de produtividade.É preciso que haja capacidade de falarmos uns com os outros e encontrarmos soluções. Uma das razões tem a ver com um problema de qualificações, daí que seja muito importante este acordo na área da formação profissional. São problemas muito antigos.
Mas estamos, pelo menos, nesse caminho?
Acho que é uma preocupação, que há uma clara perceção do problema e que estes instrumentos de ordem financeira que vão ser colocados à nossa disposição para os próximos anos…
Estamos a falar do Plano de Recuperação e Resiliência e do quadro comunitário.
É um valor muito elevado, que temos de aplicar num espaço de tempo relativamente curto. Dizemos sempre que é o último momento, a última oportunidade, devemos dizê-lo há séculos…
A verdade é que é preciso condições políticas para conseguir executá-lo. No início deste ano, falava, apostava até, em entrevista ao Público e à Renascença, numa crise política em outubro deste ano. Continua a pensar assim?
Certamente exprimi-me mal, porque isso deu origem à ideia de que eu defendia uma crise política e não me compete a mim fazer essa análise.
Arrependeu-se?
Não, não me arrependi. Exprimi-me mal. Pus a hipótese, do ponto de vista académico, e depois apareceu que estava a defender isso e houve até reações do PS, de amigos meus.
Até disse que era uma possibilidade de se superar alguns impasses no país.
Eu procurei pôr-me na cabeça do primeiro-ministro, admitindo que ele podia querer esclarecer algumas coisas e iniciar uma nova fase no período pós pandemia. Mas isso gerou uma reação negativa e eu percebi — também aprendemos com as coisas que vamos dizendo ao longo dos tempos — que estando a desempenhar esta função tenho de ter algum dever de reserva, que é coisa que por vezes na vida política portuguesa falta.
Com que impasses é que o país está confrontado?
O que é importante perceber é que só poderemos utilizar bem estes fundos e colocá-los ao serviço de uma estratégia séria e sólida que, de facto, altere aspetos importantes do nosso aparelho produtivo, qualifique os portugueses, as várias gerações, que modernize a administração pública e a fortaleça se existirem alguns consensos no Parlamento. E a meu ver devia haver alguns consensos de fundo entre o PS e o PSD. Sou um defensor de que a democracia vive do conflito e que as sociedades evoluem pelo conflito e que ele é um elemento de transformação na história. Mas as democracias têm de saber gerir muito bem esta relação entre o conflito e o consenso, porque o excesso de conflito pode levar a polarização de tal ordem que é negativa. As sociedades democráticas que se polarizaram excessivamente acabaram por ter resultados catastróficos. Temi que isso acontecesse, julgo que esse risco chegou a existir, julgo que neste momento as coisas estão a caminhar num sentido um pouco diferente.
Porquê? O que mudou?
As pessoas perceberam que havendo divergências entre o PS e o PSD também há áreas de clara convergência. Houve um momento traumático, pós saída da troika, em que há aquelas eleições de 2015 e que se forma o Governo da geringonça. Esse é um momento traumático, no sentido em que há uma necessidade absoluta de toda a esquerda de demonizar o Governo anterior e também há uma necessidade absoluta da direita e do centro direita de porem em causa a legitimidade da solução governativa encontrada. Isso polarizou muito a vida política portuguesa, é indiscutível. Ao fim destes anos todos já se percebeu que a geringonça não foi nenhuma transformação revolucionária do país, que há muitos pontos de contacto entre o pensamento do primeiro-ministro e o pensamento de todos os primeiros-ministros que o precederam em matéria de questões europeias, por exemplo. E até no modelo de sociedade as divergências não são intransponíveis. Por isso, julgo que agora não há esse risco da polarização excessiva. E estou convencido que se na vida política iniciarmos uma discussão mais serena e tranquila sobre as grandes prioridades que se colocam ao país, podemos conjuntamente encontrar as melhores soluções para Portugal.
Sobre o quê, por exemplo?
Nós vamos ter mais dinheiro para fazer modificações, mas os outros países também têm e têm muito mais dinheiro que nós, porque aplicaram muito mais dinheiro na economia, como por exemplo a Alemanha. Eu não gosto do termo bazuca, não me parece que tenha sido uma grande ideia o termo em si, e este plano de recuperação é europeu, mas depois os países têm planos internos. A Alemanha, logo a seguir ao início da pandemia, disponibilizou logo 750 mil milhões de euros para a sua própria economia. Há na UE uma regra que impede apoios de Estado às empresas porque isso distorce a regra da concorrência. Ora, houve um momento em que essa proibição foi suspensa, devido ao medo dos efeitos devastadores da crise, e há países que aproveitaram claramente essa possibilidade que se abriu para apoiarem grandes empresas e acelerarem esse processo.
Não corremos o risco disso criar um fosso ainda maior do que existia?
Sim, corremos esse risco, por isso foi importante este grande plano de recuperação europeu. Temos de ter aqui o cuidado especial de gastarmos bem este dinheiro. Temos pouco tempo e uma pressão enorme.
O PS e PSD têm falhado vários entendimentos de fundo e o PS tem acusado o PSD de não ter ideias de fundo para o PRR. Há hipótese para esses entendimentos nesta fase?
Eu já tive gosto enorme pela luta político partidária, confesso que hoje — e isto não é nenhum discurso anti-partidos — não tenho muito interesse por esse tipo de discussões e até nem sigo com muita atenção.
Mas a verdade é que mostram que não se entendem…
Se formos ver, ainda agora se fez a aprovação de uma lei na área da defesa altamente polémica, que suscitou enorme oposição de altíssimas figuras das Forças Armadas e até uma das figuras mais consensuais na sociedade portuguesa — Ramalho Eanes — e apesar disso o PS e o PSD entenderam-se e fizeram essa reforma. É possível e tem havido essa possibilidade e, com o tempo, estou convencido que essas possibilidades vão existir cada vez mais. Agora, como depois se faz a aprovação dos orçamentos na Assembleia da República, não sei e não me pronuncio. Há muita coisa que à superfície parece devastadora, mas depois se olharmos com mais profundidade as coisas não são assim tão trágicas.
Há uma base de entendimentos para questões de fundo maior com o PSD do que com a esquerda, é isso?
Em algumas coisas, com certeza que há. Essa é a vantagem de um grande partido ser de esquerda. A geringonça trouxe um elemento novo, que foi trazer o PCP e o BE para o campo de uma certa ação reformista. No caso do BE sempre entendi que é um partido com correntes de opinião claramente reformistas — ainda há pouco tempo Catarina Martins dizia que o programa do Bloco nas últimas legislativas até se podia considerar social-democrata.
Foi demasiado fatalista a sua previsão na altura face à geringonça?
Foi uma preocupação.
Mas foi uma análise errada que fez?
Não, foi uma análise que resultou de vários fatores.
Que não se verificaram, foi isso?
Eu nunca disse que se iam verificar. Primeiro, nunca disse que ela era uma solução que não pudesse perpetuar-se por alguns anos e, segundo, nunca disse que daí poderia resultar um mal absoluto para o país. Pronunciei-me foi contra. Em tudo na vida há aspectos positivos e negativos e depois de ocorrerem até gosto mais de encarar os positivos. Também sou um otimista. Mas esses dois partidos entram numa ação mais reformista, veja-se o PCP que começou a ter um papel de, em vez de assumir uma posição radical de votar contra tudo, garantir algumas pequenas conquistas. Mas agora temos de entrar numa fase distinta da vida política nacional. Seria desejável que vivêssemos tudo com menos acrimónia e sectarismo. Tenho a esperança de que a experiência traumática da pandemia tenha alterado bastante a forma como nos relacionamos uns com os outros, nomeadamente do ponto de vista político.
António Costa tem dito que está a preparar uma geração para lhe suceder no PS. Isto pode ser uma tentação de condicionar o futuro do partido através de um leque de figuras que vai promovendo?
Ele lançou, de facto, novas figuras na vida política nacional. Mas o conceito de “preparar a sucessão” é inaplicável num partido democrático, não estamos numa lógica dinástica, numa monarquia.
Pelo menos na teoria não é possível.
Nunca foi assim e quando é dá mau resultado. Uma pessoa que chega à liderança porque o líder que o antecedeu quase o impôs dá sempre mau resultado. Conheço suficientemente bem António Costa para saber que ele tem a mesma posição que eu tenho em relação a esse assunto. Não há aqui nenhum processo de sucessão, mas de eleição.
Mas promover um conjunto de figuras não condiciona esse amanhã?
Objetivamente, quando há figuras desconhecidas e se tornam conhecidas – e se depois derem provas — com certeza que isso ajuda, mas isso acontece em todo o lado. Agora o que não vai acontecer é um processo de sucessão nesse sentido. No dia em que António Costa decidir deixar de ser secretário-geral do PS — e francamente não acho que vá acontecer no curto prazo e até no médio prazo…
Nem em 2023?
Eu estou absolutamente convencido — e eu não tenho nenhuma função e a minha voz não conta absolutamente nada no PS — que em 2023 o PS vai apresentar como seu líder António Costa. Sobre isso não tenho grande dúvidas. Ninguém no país tem grandes dúvidas sobre isso. Já estou como António Costa, que o dizia há uns tempos sobre Marcelo Rebelo de Sousa e os resultados eleitorais. Acho que ele vai ser o candidato do PS e depois logo se vê o que vai acontecer. Em 2024 especula-se que poderá vir a desempenhar ou ser convidado para exercer um cargo europeu. Acho que essa possibilidade é elevadíssima porque conheço muito bem a Europa.
Mas em 2023 será ele.
Seria absolutamente surpreendente que não fosse. Depois ele terá de fazer uma opção quando se colocar essa questão e aí haverá uma eleição no PS.
Ele manter-se ainda para lá desta legislatura é o que é desejável?
Não vejo nenhum incoveniente que uma pessoa desempenhe tantos anos a função de líder do PS. A experiência, não sendo um valor absoluto, é importante.
O último congresso foi há três anos, e as figuras de destaque são exatamente as mesmas. Um partido no Governo acaba sempre por secar internamente e ficar sem alternativa à linha que está no poder?
Acho que o PS até tem muitas figuras. Se há partido que tem muitas figuras que podem aspirar legitimamente à liderança no pós-António Costa é o PS. Vejo noutros partidos uma dificuldade muito maior em encontrar figuras para assegurar a liderança.
No PSD?
Em vários. E até me preocupa porque alguns partidos são absolutamente vitais para o funcionamento adequado da nossa democracia. E no PS não vejo só essas quatro figuras de que habitualmente se fala. Há uma coisa que eu tenho a certeza: quem ascende à liderança de um partido por indicação do líder que o antecedeu normalmente falha. E dão mau resultado até com pessoas brilhantes. O líder tem de ganhar legitimidade própria. Não conheço todas essas quatro pessoas com a mesma profundidade. Das que conheço acho que têm qualidade.
Qual conhece melhor?
A que conheço claramente melhor é Ana Catarina Mendes, que trabalhou comigo sempre que eu fui líder parlamentar. Também conheço razoavelmente bem Pedro Nuno Santos e Fernando Medina e conheço menos bem Mariana Vieira da Silva, mas isso é natural. Mas também estou certo que não exerceria as funções que exerce se não tivesse qualidades.
Mas tem dimensão política?
Isso também se constrói. Na verdade ela é ministra. A capacidade política também se vai construindo ao longo do tempo, ninguém nasce político.
Há dois anos, em entrevista ao Observador, disse que não conhecia pensamento político a Fernando Medina. Já conheceu entretanto?
A minha preocupação é que era mais evidente e vincado o pensamento político de Pedro Nuno Santos do que o de Fernando Medina. A maneira como foi colocada a resposta — a responsabilidade terá sido minha — levava a pensar que Medina não tinha pensamento político, o que é absurdo. Obviamente que ele tem.
Mas não conhecia. Agora conhece melhor?
Depois destes dois anos naturalmente conheço melhor, até porque ele vai à televisão. Está numa disputa política autárquica. Agora o que quis dizer na altura é que o Pedro Nuno tem um pensamento político muito claro, concorde-se ou não.
Mas dessas opções não terá propriamente a visão com que alinha mais… há algum com que se identifique mais?
Não lhe vou responder a isso.
E quando diz que há mais opções, qual lhe está a ocorrer?
Várias, mas não quero dizer.
O seu nome concreto?
Não, não estava a pensar em mim.
Mas não se põe neste leque de possíveis líderes?
Nunca me pus em leque nenhum de possíveis candidatos fosse ao que fosse. Eu não tenho a menor ambição política nesse sentido.
De ser líder partidário?
No outro dias li uma entrevista de uma figura da vida política francesa, o François Bayrou, que dizia: “Talvez eu goste mais da política do que do poder”. Provavelmente é o meu caso. Fui presidente da Câmara muito cedo e o exercício do poder não é coisa que me suscite um fascínio particular. A política sim, a discussão de ideias e também a capacidade de realização das ideias. E tenho mais preocupação com o exercício de autoridade do que com o exercício do poder e o que resulta disso.
Na política normalmente não se diz nunca…
Eu não tenho essa ambição. Nunca tive, é da minha natureza. Gosto da política no sentido do confronto e não posso demitir-me de assumir funções se for chamado a isso — e por isso fui presidente de câmara, líder parlamentar, fui eurodeputado — mas tudo isso ocorreu por acaso e não estou a pensar nisso. Essa questão não se coloca, temos um primeiro-ministro em funções e vai continuar. E estar a discutir isso numa altura destas é até um certo desrespeito pelas prioridades nacionais.
Vai ao congresso?
Fui convidado enquanto presidente do CES para ir ao encerramento. Tenho alguma dificuldade em estar no Algarve nesse dia, vou tentar remover essa dificuldade. Gostaria muito de estar e se não estiver, já comuniquei ao secretário-geral adjunto do PS que assistirei à sessão de encerramento através do Zoom. Com todo o gosto e muito interesse. Mas não terei nenhuma posição de fundo. Acho que é o primeiro congresso desde há 30 e tal anos a que não vou. Mas quando se aceitam determinadas funções também se aceitam as limitações inerentes a elas.
[Veja a entrevista a Francisco Assis na íntegra:]