Francisco Assis, em entrevista ao programa Vichyssoise, da Rádio Observador, vê um “excesso de encenação” e um “excesso de mentira” na vida política portuguesa. Há um ano afastado da política ativa, o antigo candidato à liderança do PS e antigo eurodeputado, não descarta um dia voltar, mas, para já, prefere continuar a fazer análises de fora. Diz que ninguém (leia-se António Costa, Mário Centeno e Marcelo Rebelo de Sousa, mas até o próprio líder do PSD) saiu bem na fotografia da mini-crise política que começou com a transferência de 850 milhões de euros para o Novo Banco. Assis avisa — relativamente ao facto de António Costa ter pré-lançado a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa — que Costa não está acima da “legalidade democrática” no PS.
Embora acredite que o partido vá seguir o candidato que Costa sugerir, Francisco Assis diz que a popularidade do secretário-geral não lhe permite queimar etapas de democracia interna no PS. O socialista diz que Ana Gomes seria uma boa candidata que agradaria à “maioria” dos militantes do PS. Uma entrevista que começa com Sócrates e acaba com Sócrates.
[Ouça aqui na íntegra o podcast Vichyssoise:]
Foi provavelmente o último político que fez uma campanha eleitoral onde se falou muito de vírus e de bactérias. Francisco Assis ainda se lembra dessa campanha?
Já não me recordo que se está a referir.
Era o vírus do socratismo, que Paulo Rangel citava na campanha.
Recordo-me de vários episódios dessa campanha, mas dessa metáfora em especial não me lembrava já.
Hoje já não é metáfora, há mesmo um vírus a dominar o espaço público. Apesar de tudo, esta semana voltou a política do antigamente, com uma espécie de crise. Quem lhe parece que teve razão: o ministro Mário Centeno ou o primeiro-ministro António Costa?
Não colocaria a questão nesses termos, numa contraposição entre essas duas personalidades. Acho que foi um episódio triste, negativo, e ninguém saiu bem dele. Nem o primeiro-ministro, nem o ministro das Finanças, nem o Presidente da República. E até a intervenção do líder do maior partido da oposição, para mim, foi incompreensível. Em primeiro lugar, este é um assunto demasiado sério para não ser objeto de uma discussão no Conselho de Ministros. E penso que esta é a questão central de tudo isto.
Aparentemente foi, mas no Conselho de Ministros que fechou o Orçamento do Estado.
É certo que já se previa, desde a aprovação do Orçamento do Estado no final do ano passado, que haveria que transferir uma verba para emprestar ao fundo de resolução para financiar um processo de recapitalização em curso do Novo Banco. Portanto, não é surpresa para ninguém que esta questão estava em cima da mesa. Aliás, há uma certa hipocrisia em partidos que contribuíram de forma decisiva para a aprovação do Orçamento do Estado e agora vêm protestar enfaticamente como se não tivessem nada a ver com isto.
Está a falar do Bloco de Esquerda?
Estou a falar do Bloco de Esquerda, claramente. Porque o grande problema neste momento é que há um excesso de encenação política. É bom as pessoas não estarem permanentemente a desempenhar funções políticas porque isso nos permite ter um maior distanciamento, uma maior lucidez. Há aqui um excesso de encenação na vida política portuguesa, um excesso de mentira até, que tem de ser contrariado. O Bloco de Esquerda sabia muito bem que isto iria acontecer. Por outro lado, um assunto desta natureza tinha de ser discutido no Conselho de Ministros. É verdade que estava previsto, mas também é verdade que entretanto ocorreram situações de tal maneira dramáticas que obrigavam a que, pelo menos esta matéria, fosse objeto de discussão.
A transferência de 850 milhões de euros para o Novo Banco tinha então sempre de ser discutida entre os vários ministros.
Para mim é incompreensível que um assunto desta natureza não tenha sido discutido no próprio Conselho de Ministros. É para isso que servem os Conselhos de Ministros. Que não seja discutido entre o primeiro-ministro e o ministro das Finanças, isso então é completamente absurdo.
Mário Centeno alegou que tinha havido essa discussão, mas referia-se provavelmente ao momento em que foi discutido o Orçamento.
Mas o momento em que se produz o ato administrativo que conduz à libertação da verba, do meu ponto de vista, devia ser precedido de uma discussão no próprio Conselho de Ministros. Até porque já se devia antecipar a questão política e perceber que este assunto tinha de ser muito bem explicado aos portugueses. Eu até compreendo que haja necessidade de proceder à transferência da verba e, provavelmente, não conhecendo a natureza concreta dos acordos que existem, estou convencido que teria de se fazer mesmo a transferência. Mas o assunto tinha de ser objeto de discussão até para preparar um discurso verdadeiro para dizer aos portugueses com toda a clareza o que estava em causa. E dizer: esta é uma questão séria, dificilmente aceitável por parte de muitas pessoas, compreensivelmente até, que suscita perplexidade da sociedade portuguesa, mas tem de ser cumprida senão daqui resulta uma grave crise bancária. E se nós agora acrescentássemos uma crise bancária à crise com que já estamos confrontados, à crise sanitária, financeira e económica que está a chegar, e à crise social que, infelizmente, já se está a manifestar, isso podia ter consequências muito negativas para o nosso país. O que falhou aqui é que ninguém fala com clareza. Ninguém está disponível hoje para fazer o discurso da dificuldade. Dizer ao país que há momentos em que temos de tomar decisões difíceis. Os políticos, por vezes, têm de surgir perante os cidadãos apresentando soluções e propostas que não são simpáticas e nós hoje temos dirigentes políticos em Portugal que estão, todos eles, excessivamente dependentes da preocupação com as sondagens, da preocupação permanente com a opinião pública.
Mas aqui a mentira e a encenação é de quem?
Aqui houve uma encenação de toda a gente. Em primeiro lugar, repito, a questão fundamental, o assunto tinha de ser discutido no Conselho de Ministros e se não foi também tem de haver uma assunção de responsabilidades.
O que é assunção de responsabilidades, era o ministro das Finanças Mário Centeno ter saído?
Não. Eu não sou por essas medidas radicais. Não podemos estar a exigir a demissão dos ministros, embora o assunto seja grave, sempre que ocorre uma crise. Acho que o assunto se teria encerrado se o primeiro-ministro tivesse feito uma comunicação clara ao país.
Para si não foi suficiente aquele comunicado que saiu na quarta-feira à noite?
Acho que não é suficiente pedir desculpas ao Bloco de Esquerda. Com todo o respeito pelo Bloco de Esquerda que é obviamente um partido por quem tenho muita consideração, apesar de ter grandes divergências com eles. Agora a verdade é que, no meio de uma rua no Porto, não se pede desculpas ao Bloco de Esquerda, é uma questão que exige uma comunicação ao país. Dizer o que é que se passou. Se há um lapso de comunicação, é grave.
E Marcelo Rebelo de Sousa esteve bem?
O Presidente da República teve aqui uma intervenção muito censurável. Não é competência do Presidente da República, ao lado do primeiro-ministro, num momento em que há esta tensão toda dizer ‘o primeiro-ministro teve razão’, naquilo que não pode deixar de ser lido como uma declaração inamistosa em relação ao ministro das Finanças. Numa altura, ainda por cima, como esta que estamos a atravessar.
Porque vivemos tempos que não são normais.
Nós não estamos em absoluto num período normal. Não estamos num período de exceção absoluta, felizmente, mas também não estamos propriamente num período normal. Estamos ainda a enfrentar uma grave crise sanitária, não sabemos muito bem como isto vai evoluir, felizmente tem evoluído de forma razoavelmente positiva ou até bastante positiva no nosso país, mas não sabemos ainda o que vai acontecer a seguir. Já sabemos, porém, que vai haver uma crise económica, uma crise social. Já há, aliás, há pessoas que já estão a passar por grandes dificuldades e num contexto destes, toda esta crise é muito negativa. Mas esperemos que o assunto esteja realmente ultrapassado, porque apesar de tudo era importante que o ministro Mário Centeno prosseguisse como ministro das Finanças.
Esta semana, António Costa lançou também a recandidatura do atual Presidente. Isto foi uma “brincadeira” como disse Manuel Alegre ou há aqui a base para um apoio do PS a Marcelo Rebelo de Sousa?
Foram dias particularmente estranhos, talvez seja também resultado de todo este ambiente que estamos a viver, da grande pressão. Imagino que o primeiro-ministro tenha também uma pressão enorme nestes momentos todos.
Que avaliação faz da atuação de António Costa?
Faço uma avaliação muito positiva do que foi o comportamento do dr. António Costa neste processo de gestão desta grave crise sanitária. Não apenas pelos resultados em si mesmo, que são resultados bons, mas porque revelou uma serenidade que acho que foi muito importante nesta fase num processo particularmente difícil.
E quanto à questão da recandidatura do Presidente da República.
Em relação à questão presidencial, evidentemente que a questão tem de ser colocada noutros termos. Nem o país está em estado de exceção e suspensão da vida democrática, nem o PS está com a democracia suspensa. A ser assim, seria gravíssimo, estaríamos ainda pior que o centralismo democrático do partido comunista. Não pode ser. Ninguém está acima da legalidade partidária. E o secretário-geral, por muito popular que seja, e não tenho dúvidas que António Costa hoje é bastante popular no país e no interior do PS, não está acima da legalidade no PS. A democracia faz-se muito de regras que são fundamentais e têm de ser respeitadas. Há um tempo, um lugar e um modo para discutir essa questão.
Foi isso que António Costa quis fazer? Tentou condicionar o PS à margem da legalidade democrática?
António Costa não precisa de tentar condicionar o PS. Eu estou convencido que, se ele amanhã chegar a um congresso do PS e disser que quer apoiar a, b ou c, eu conheço suficientemente o PS para saber que o PS seguirá a proposta do secretário-geral. Seguirá deste como seguiu de outros no passado e, portanto, não me surpreende. Ainda por cima quando se está no poder, atenção. Estando na oposição é uma coisa, mas quando se está no poder os partidos têm as suas próprias leis de bronze.
Mas teria alguma contestação.
Mesmo que assim aconteça, tem de haver uma discussão. Há um tempo, um lugar e um modo para fazer estas coisas. Não estamos a falar do próximo presidente da junta de freguesia da freguesia. Estamos a falar do próximo Presidente da República, num sistema semi-presidencial. É um tema central do debate político nos próximos tempos. Não estamos ainda numa fase de tal maneira excecional em que tenhamos, em nome do interesse nacional, de abdicar dessa discussão. Aí a nossa democracia estaria seriamente limitada.
Mas o PS fica condicionado a partir deste momento?
Condiciona quem se deixa condicionar. Eu não estou nada condicionado, pelos vistos o Manuel Alegre também não está condicionado. Os que se deixam condicionar tanto se deixam condicionar por uma declaração feita na Autoeuropa como por uma declaração na sede do PS. Nem creio que fosse esse o objetivo do António Costa.
Então era qual? Faz parte da encenação?
Não sei. Aí é que já não entro, na motivação. Analiso os factos, não quero entrar no campo das motivações. O que me parece importante é isto: nas próximas Presidenciais do meu ponto de vista era importante que surgisse um candidato da área da esquerda democrática.
Esse candidato seria Ana Gomes? Ela tem vindo a recusar, já sugeriu até Sampaio da Nóvoa, como um candidato da área do PS. Faz parte do jogo dizer que não está interessada?
Do que conheço de Ana Gomes não acho que ela tenha esse estilo de atuação. Terá muitos defeitos, mas esse não o tem. É uma pessoa com grande frontalidade e é por isso que defendi o nome dela. Tive muitas divergências com a Ana Gomes, que são conhecidas. Representamos até correntes opinião diferentes no campo da esquerda democrática e dentro do PS em particular, mas ela travou uma série de causas e simboliza uma série de coisas que eu acho que é importante que entrem no debate político pré-presidencial em Portugal e no debate político português. As questões da corrupção, do compadrio, da ocupação excessiva do aparelho de Estado.
Tal como já ouvimos dizer pessoas da área do PS. Ouvimos aqui esta semana Henrique Neto, que já se desfiliou do partido, mas que é um reconhecido socialista, dizer que Ana Gomes não será a candidata porque é demasiado “perigosa para o partido”.
Isso não acompanho. Se Ana Gomes se apresentasse, e não tem de pedir autorização a ninguém para o fazer, aliás os melhores candidatos são os que não pedem autorização de ninguém, estou plenamente convencido que a maioria dos socialistas a vão seguir. Entre escolher a Ana Gomes ou escolher outros candidatos que não fazem parte do nosso espaço político, certamente que seguiriam Ana Gomes. Agora, ela tem dito que não quer. Isso é um facto. E também ninguém a pode obrigar a ser candidata. Até tem dito mais: que tem outras funções que pode desempenhar com mais eficácia do que eventualmente se envolvesse numa candidatura presidencial. Não vou insistir no nome de Ana Gomes porque ela tem dito que não quer, agora haverá outros nomes. Tenho alguns na cabeça, mas não vou citá-los porque eles é que têm de aceitar. Não é só um desafio ao PS, é o desafio a candidatos que se queiram candidatar e que prestavam um serviço ao país. Marcelo Rebelo de Sousa é uma personalidade por quem tenho respeito, admiro profundamente a inteligência superior de Marcelo Rebelo de Sousa, e não há dúvidas que em momentos decisivos, nomeadamente agora nesta questão do confinamento, eu tinha muitas dúvidas na primeira fase sobre se optar logo pelo estado de emergência, e eu ouvi a declaração que ele fez e foi convincente. E eu hoje não tenho dúvidas que não estaríamos no estado em que estamos e não teríamos os resultados que temos, que se devem essencialmente aos efeitos do confinamento, se o Presidente da República não tivesse avançado com aquele decreto da declaração do estado de emergência. Reconheço isso tudo. A vida nunca é a preto e branco. Mas, retomando um debate presidencial em que tenha apenas como candidatos Marcelo Rebelo de Sousa e depois um candidato ou candidato oriunda de um espaço mais à esquerda e um candidato cada vez mais da extrema-direita, que é o André Ventura, do meu ponto de vista seria mau para o país. Seria mau para o país. E até seria mau para o próprio Marcelo Rebelo de Sousa. Na esquerda democrática, há momento em que não se deve faltar à chamada para o combate político. E este é o momento em que a esquerda democrática deve ter uma presença com uma candidatura presidencial, com os valores, os princípios, as referências do pensamento político da esquerda democrática. Há personalidades que estão em condições de o fazer e a direção do PS sabe quem são essas personalidades, onde elas se encontram e não terá nenhuma dificuldade em se encontrar com elas.
Vi-o criticar a forma como se comemorou o 1º de maio. Considera que o PCP deve ter direito a realizar a festa do Avante e se esta concessão que aqui foi feita no 1º de maio ainda foi um resquício da geringonça a funcionar?
Relativamente ao 1º de maio entendo que foi algo completamente incompreensível. Em relação ao PCP ainda estamos longe do momento em que se vai realizar a Festa do Avante, não sabemos em que termos. Diria que, se fosse no quadro atual, seria igualmente incompreensível como é evidente. Aliás, custa-me um pouco a perceber como é que há uma insistência tão grande do PCP nessa obsessão. Não está aqui em causa o direito do PCP desenvolver toda a sua atividade política. Do PCP e de todos os demais partidos. O PCP felizmente vive num regime democrático desde o pós-1974, como vivem os demais partidos. Isso não está minimamente em causa. Parece que há aqui uma obsessão patológica em insistir em fazer estas manifestações que até os prejudicam do ponto de vista da apreciação que as pessoas farão desse tipo de comportamentos. Mas veremos como é que as coisas estão em setembro.
Avançamos para a fase o carne ou peixe em que é pedido que o convidado escolha uma das opções:
Qual foi a derrota que mais lhe soube a poucochinho? Perder a câmara do Porto para Rui Rio ou o PS para António José Seguro?
Perder o Porto para Rui Rio.
Preferia fazer uma campanha como fez com Seguro em 2014, ao lado de Pedro Nuno Santos ou de Fernando Medina?
Talvez gostasse de a fazer ao lado dos dois. Se for possível. Há escolhas que não se conseguem fazer. Não é uma coisa tão dramática como a escolha de Sofia, nem de longe nem de perto. Mas seria uma escolha que neste momento teria algumas leituras que não desejo que sejam feitas.
A quem daria uma aula de filosofia na telescola? Marcelo Rebelo de Sousa ou Manuel Alegre?
Seriam dois excelentes alunos, mas tenho mais proximidade com Manuel Alegre do que com Marcelo Rebelo de Sousa nas questões de fundo. Por isso talvez me sentisse como aluno mais próximo. Mas nem um nem outro precisariam de uma aula minha de filosofia, eu é que teria muito gosto em ter aulas com qualquer um deles.
Preferia dar um passeio junto à praia, na Ericeira, com José Sócrates ou pelas ruas de Felgueiras, com Fátima Felgueiras?
Essa para mim é a mais simples de todas: eu sou amigo de José Sócrates. As pessoas não renegam as suas amizades. Eu tive ao longo de muitos anos companheirismo político com José Sócrates e sou amigo dele. É uma relação que está muito para além das circunstâncias em cada um, julgo eu, da minha parte e da dele também, que está muito para além das circunstâncias que envolvem as nossas vidas, dos erros que possamos ter cometido, das coisas extraordinárias que possamos ter feito. Se não estamos acima das circunstâncias não somos dignos de nós próprios.