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Daryan Dornelles

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Fred quis dar música aos poemas de Regina. Juntaram-se e puseram as "Mãos no Fogo"

Fred Ferreira sempre admirou os poemas de Regina Guimarães. Um dia, surpreendendo-a, pediu-lhe que declamasse alguns dos seus poemas para ele os musicar. Ambos apresentam-nos o álbum que gravaram.

Fred Ferreira e Regina Guimarães, desconhecidos até meterem juntos as mãos no fogo, sabem que a poesia e a música estão em todas as coisas. Uma ajuda a outra a superar-se, ambas ajudam-nos a viver. O trabalho que agora lançam é, portanto, sobre tudo o que é vital, sobre a amargura do vazio também.

Foi Fred quem, ganhando coragem, ligou a Regina, há quase um ano. “Sempre fui fascinado pelo universo e pelos textos dela”, declara do seu estúdio, de onde nos concedeu esta entrevista, à distância. Já Regina, acolhendo-nos no Porto, na sua sala de estar habitada por seres reais e imaginários, memórias, recortes nas paredes, bordados e um aquecedor junto às pernas para amansar o frio polar, revela-nos que ficou surpreendida com a abordagem do baterista e produtor que já leva mais de 20 anos de carreira: “No princípio nem percebi muito bem o que é que ele queria. Imaginei que ele quisesse que eu escrevesse letras para algum projeto, mas não era nada disso.”

O que Fred tinha na cabeça era uma ideia muito concreta: queria pedir a Regina que declamasse alguns dos seus poemas para ele os gravar e musicar. E Regina, dando-se à exaltante possibilidade do desconhecido, onde a vida e o amor se revelam, entregou-lhe as suas palavras. “No fundo, pus as mãos no fogo pelo Fred”, diz, explicando que o título do projeto relaciona-se precisamente com a afirmação da confiança como condição essencial à coexistência humana.

Ao escutar os dez poemas de Mãos no Fogo (no Bandcamp há uma versão com mais cinco faixas instrumentais) sobressai a candura e o respeito com que Fred ampara a mulher que Regina é e a mulher que já foi. A sua presença é generosa, subtil, não tem pressa, como o arco do violoncelo a roçar devagar nas cordas, sabendo que é ali que deve permanecer pelo tempo que Regina assim o precisar. Dois minutos. Seis minutos. Uma eternidade. A da vida e a da morte.

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A capa do álbum "Mãos no Fogo"

A capa do álbum "Mãos no Fogo"

Fred faz-se discreto, elemento primevo: a luz que se vê por entre a copa das árvores, o vento que bate nos cabelos, a água que corre aos pés, o fogo que aquece em noite fria, o éter que é silêncio. Há sons de passarinhos a abrir a “Explicação da Cabisbaixeza”, uma gota a pingar num poço fundo em “Odd Ode”, o crepitar das chamas em “Ainda Há Mestres do Arrependimento” ou a chuva na derradeira “Fuligem”. “São sons que captei com o telemóvel, em momentos em que eu estava a andar a pé. Cada vez gosto mais da natureza e do lado da solidão nesse espaço. Faz-me sentir muito pequenino dentro de uma coisa muito maior do que eu”.

A música neste projeto tem a função de ampliar a paisagem emocional dos poemas, tirados de duas obras e fases distintas da vida de Regina Guimarães: O “Caderno do Poço e da Gaveta” (2012) e “O Caderno das Duas Irmãs e do que Elas Sabiam” (2021). O primeiro “fala de uma Regina de há muito tempo”, mais próxima da idade atual Fred, com 40 anos. O segundo insere-se num período muito difícil da vida da também dramaturga, cineasta e tradutora portuense de 65 anos, que foi o da morte da irmã.

Fred confidencia-nos, sem qualquer embaraço, que as palavras de Regina mexeram muito com ele, ao ponto de se ter visto obrigado a parar para respirar em certos momentos: “Não consegui estar o ano todo seguido a fazer o disco, porque estava a ser difícil para mim. Estava demasiado envolvido e era uma coisa bastante pesada”.

“As coisas mais duras podem-se transformar em amor e ficam ali entregues ao leitor, suficientemente desprotegidas para fazer delas matéria de pensamento, para tornar o presente mais denso”. Amor, ora aí está. É precisamente disso que se trata Mãos no Fogo. E de fraternidade também: “Uma pessoa que eu não conheço vem-me pedir uma coisa, então o embrulho melhor que eu posso dar a essa coisa é o da fraternidade.”

Um disco feito com o espírito da luz

O amor, sabemos bem, não é óbvio. Não é feito apenas de luz, tem também em si muitas sombras. É duro e belo, como o são os poemas de Regina de Guimarães. Daí Fred confidenciar-nos, sem qualquer embaraço, que as palavras de Regina mexeram muito com ele, ao ponto de se ter visto obrigado a parar para respirar em certos momentos: “Não consegui estar o ano todo seguido a fazer o disco, porque estava a ser difícil para mim. Estava demasiado envolvido e era uma coisa bastante pesada”.

Refugiando-se na natureza, “num isolamento aberto, cheio de ar”, o produtor e músico de coletivos como os Orelha Negra ou a Banda do Mar entrou num nível de concentração “quase meditativo”, procurando a libertação latente em cada poema. “Em todas as partes mais pesadas, tentei sempre dar muito mais luz do que escuridão. Fiz todo o disco com esse espírito de luz”.

[ouça “Mãos no Fogo”, através do YouTube:]

Há momentos de grande espiritualidade, como em “A Vida Depois da Vida”, onde o órgão entra numa cadência de acordes que nos apontam o caminho da ressurreição, embora as palavras de Regina, ao invés de nos conduzirem para as nuvens e para o reino dos céus, escavem o abismo que se abrirá aos nossos pés.

O som da água a correr em “A Mais Velha e a Mais Nova”, ao qual se juntam depois o órgão e as cordas, confere ao poema em que uma mulher olha para si com ciúmes de si própria uma cadência de conto, como se os versos “Não lhe perguntem se chora / pois lágrimas come e bebe / é isso que a mantém viva / porque a vida não se escreve” preconizassem a mais antiga história de ninar.

Em “Odd Ode”, poema que fala de alguém que, não sabendo ler nem escrever, escreve cartas ao pai presente e ausente, à mãe que não as lê ou à irmã que não as entende, o piano de Fred faz sobressair a meninice de Regina. “Esse poema tem a ver com a experiência que eu e a minha irmã tivemos. Em parte, fomos educadas e criadas por uma ama que não sabia ler nem escrever, a quem eu ensinei a ler mais tarde. A figura dessa ama cruza-se com a de outra pessoa que trabalhou na casa dos meus pais e que se propunha a ser madrinha de guerra de tudo quanto fosse rapaz da vizinhança. Mas ela não sabia escrever e então pedia-me para o fazer e para acrescentar muitas palavras e muitas coisas, para eles terem uma distração”. Uma distração de uma “guerra de merda” que, em muitos casos, era tudo o que mantinha aqueles homens agarrados à esperança.

A hora sonâmbula da poesia

Todos os poemas partem precisamente de cruzamentos de memórias pessoais de Regina Guimarães, algumas vindas do mundo real, outras do mundo do sonho, daquela hora em que, lutando contra o sono, Regina e as suas duas irmãs conversavam noite dentro, num estado nem “perfeitamente acordadas nem perfeitamente a dormir”: “Isso é um lugar de poesia muito importante para mim, porque as coisas chegam em catadupa e se iluminam e escurecem umas às outras”.

Em catadupa surgem também os poemas da autora finalista do Prémio Literário do Correntes d’Escritas 2023. Escrevendo-os na cabeça, jorra-os “mais ou menos de uma vez” no papel. A exceção é “Fuligem”, tema que encerra o disco e que foi feito ao longo de meses, como se se tratasse de uma viagem. “O ‘Fuligem’ é um poema que, no fundo, é uma sucessão de estados”. Tal como o é a poesia, explica.

Ao ouvir os seus poemas musicados por Fred, Regina descobriu neles novas camadas, sabendo, contudo, que só o tempo permitirá acentuar essas interpretações

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“A poesia para mim é diferente da prosa. É uma coisa que tem por definição ser inacabada. Cada texto é um estado das coisas. O inacabamento, ao invés de ser vivido como um defeito, é vivido como uma condição. Então passa-se ao próximo estado.” A escrita de Regina é, em sentido abstrato e divino, um escadório. “Rio com vontade de chorar / e choro com vontade de continuar”, escreve-nos em “A Prosa Ideal do Futuro”, pondo a nu essa travessia teimosa que, mesmo na mais agoniante tormenta, consegue ser um caminho de sanação e de paz.

Música que inquieta e comove

Ao ouvir os seus poemas musicados por Fred, Regina descobriu neles novas camadas, sabendo, contudo, que só o tempo permitirá acentuar essas interpretações. “A música processa outra dimensão aos poemas: ao mesmo tempo, não contraria o facto de as coisas pertencerem ao passado, mas dá ao passado um forte estatuto de presente. Torna a coisa acontecimento e não só registo. No fundo, trabalha para que o passado se ultrapasse a si mesmo”.

Já Fred, que reconhece em Regina um lado xamânico que o fascina, não só se reviu nas palavras da poeta, como através delas abriu portas para um novo tipo de manifestação criativa. “Este disco, para mim, foi um encontro comigo, foi uma coisa que me fez mergulhar dentro de mim em sítios aos quais não tinha ido assim tanto”.

Ele sabe que tem vários eus dentro de si e que precisa do lado de descoberta e de superação da música para se conhecer a fundo. “Adoro música, é o que eu vou tentar fazer o resto da minha vida.” E Regina adora o modo como Fred se dá à música: “Eu nem sequer consigo arranjar um adjetivo para qualificar o grau de respeito que ele tem pelo trabalho, pela matéria, por tudo. Às vezes até me comove”.

Agora os dois querem passar essa força conjunta para palco, mas ainda não sabem bem como o fazer. “A minha ideia é que fosse um espetáculo mais imersivo, muito mais contido”, partilha Fred e Regina, umas horas depois, corrobora a ideia, fazendo questão de sublinhar que seria absolutamente incapaz de mimetizar em palco o que fez em álbum.

A cumplicidade entre os dois foi evidente em todo o processo. Quer nos momentos de declamação, aos quais Regina se entregou de corpo e alma, com toda a tensão e possessão que requer a leitura de um poema – “essas coisas cheias de buracos, pausas, de música e, ao mesmo tempo, objetos muito concentrados” – quer no momento de produção, em que Fred se fez veículo de uma força transcendente, como o próprio qualifica, e pôs os seus dedos ao serviço da arte, metafórica e literalmente: “Em termos de instrumentos, é um disco aparentemente simples, porque fui eu que toquei tudo [apenas a partir de teclados]”.

Agora os dois querem passar essa força conjunta para palco, mas ainda não sabem bem como o fazer. “A minha ideia é que fosse um espetáculo mais imersivo, muito mais contido”, partilha Fred e Regina, umas horas depois, corrobora a ideia, fazendo questão de sublinhar que seria absolutamente incapaz de mimetizar em palco o que fez em álbum.

A apresentação ao vivo, a seu ver, é uma questão que os deve inquietar: “É difícil perceber qual o fio condutor de um espetáculo destes, no sentido de qual é a situação de escuta que queremos instalar, sem que isso seja impositivo, ostentatório, pedante ou arrogante. Há muitas coisas que temos que pensar para não fazermos disparates”.

Para já, Fred está mais focado em mostrar às pessoas que o álbum existe. “É um trabalho pelo qual tenho muito orgulho e sei que a Regina também”. O formato físico, em CD, terá um texto de Rui Reininho e um print do artista plástico SAMINA, com a visão dos próprios sobre o disco. Haverá ainda uma sweatshirt à venda, para quem quiser andar com as Mãos no Fogo estampadas no peito. Nunca é de mais exibir e lembrar que por vezes confiar cegamente em alguém, mesmo sabendo que nos podemos queimar, é uma bênção, um ato de amor e uma salvação.

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