Gay Talese conheceu a história de Gerald Foos quando escreveu Thy Neighbour’s Wife, livro sobre a revolução sexual da década de 1970. Mais tarde, o auotr e jornalista americano haveria de dedicar-lhe um título inteiro. Motel Voyeur revela como Foos comprou um motel para poder montar uma plataforma que lhe permitia espiar os clientes na intimidade do quarto.
O livro foi originalmente publicado em julho deste ano, nos EUA. O Observador faz agora a pré-publicação do primeiro capítulo, aquele em que Talese revela como tomou conhecimento da histório do empresário pouco ortodoxo. O livro acabou por gerar polémica quando Gerald Foos fez revelações que contradiziam aquilo que Talese escreveu — autor que é um dos nomes maiores do “novo jornalismo”, surgido na década de 60s nos EUA, e que escreveu textos como o clássico “Frank Sinatra has a Cold”, para a Esquire.
“Conheço um homem casado, pai de dois filhos, que há muitos anos comprou um motel com vinte e um quartos, perto de Denver, para se tornar o seu voyeur residente.
Com a ajuda da mulher, abriu buracos em forma de retângulo, com quinze centímetros por trinta e cinco, no teto de uma dúzia de quartos. Depois, tapou as aberturas com grelhas de alumínio que imitavam as das condutas de ventilação, mas que, na realidade, serviam de vigias que lhe permitiam, ajoelhado ou de pé no chão de alcatifa grossa do sótão, sob o telhado íngreme do motel, espiar os hóspedes nos quartos em baixo. Observou-os durante décadas, fazendo um registo quase diário do que via e ouvia… e nunca, durante esses anos todos, foi apanhado.
Soube da existência deste indivíduo quando recebi uma carta manuscrita, anónima e com data de 7 de janeiro de 1980, enviada por correio registado para a minha morada em Nova Iorque. Começava assim:
Caro Sr. Talese,
Desde que tomei conhecimento do seu tão esperado estudo sobre o sexo na América de costa a costa, que fará parte do seu livro Thy Neighbor’s Wife, a publicar brevemente, sinto que disponho de informações importantes que poderiam ser incluídas nessa obra ou noutra futura.
Permita-me que lhe explique de que se trata especificamente. Sou dono de um pequeno motel com vinte e um quartos, na zona metropolitana de Denver. Há quinze anos que sou proprietário deste estabelecimento que, devido às suas características de classe média, tem atraído pessoas de todos os quadrantes da sociedade e tido como hóspedes uma amostra muito variada da população americana. Comprei o motel para satisfazer as minhas tendências voyeurísticas e o meu profundo interesse pela maneira como as pessoas gerem as suas vidas, quer a nível social quer sexual, e para responder à eterna pergunta: “Como é que as pessoas se comportam sexualmente na privacidade do seu quarto?”
Com esse objetivo em mente, comprei este motel e tenho-o gerido pessoalmente, e engendrei um método infalível para poder observar e ouvir as interações das vidas de diferentes pessoas, sem elas saberem que estão a ser observadas. Fi-lo única e simplesmente devido à minha curiosidade desmedida acerca das pessoas e não como um mero voyeur louco. Há quinze anos que me dedico a esta atividade e fiz um rigoroso registo da maioria dos indivíduos que observei, tendo compilado dados muito interessantes sobre o que foi dito e feito, sobre as características individuais, a idade e o tipo de corpo, a zona do país de onde provinham e o seu comportamento sexual.
Trata-se de indivíduos de todos os quadrantes da sociedade. O executivo que leva a secretária para o motel durante a hora de almoço, o que no ramo dos motéis geralmente é rotulado de “negócio dos lençóis quentes”. Casais (casados no papel) que viajam de um estado para outro, em trabalho ou de férias. Casais que não são casados, mas vivem juntos. Mulheres que traem os maridos e vice -versa. Lesbianismo, sobre o qual fiz um estudo pessoal, por causa da proximidade de um hospital militar onde trabalhavam muitas enfermeiras e mulheres militares.
Homossexualidade, que pouco me interessava, mas ainda assim foi alvo das minhas observações, para determinar a motivação e o modo de proceder homossexual. O final dos anos 70 trouxe à luz outro desvio sexual, o chamado “sexo em grupo”, que espiei com todo o interesse. A maior parte das pessoas classifica os exemplos que citei como desvios sexuais, mas como são tão comummente praticados por uma grande parte da população, deviam ser reclassificados como interesses sexuais. Se os investigadores sexuais e as pessoas em geral pudessem espiar as vidas privadas dos outros e observar as suas práticas, e determinar a percentagem de pessoas normais que se entregam a estes ditos “desvios”, mudariam imediatamente de ideias.
Já assisti à expressão da maior parte das emoções humanas, em todas as suas facetas trágicas e cómicas. Nos últimos quinze anos, observei e estudei em primeira mão o melhor sexo que existe, espontâneo e não laboratorial, e quase todos os desvios sexuais possíveis e imagináveis entre casais. O meu desejo de lhe fornecer estas informações confidenciais assenta na convicção de que seriam preciosas para as pessoas em geral e, em especial, para os investigadores sexuais. Além disso, gostava de contar esta história, mas não tenho talento suficiente para o fazer e tenho medo de ser apanhado. A minha esperança era que esta fonte de informação lhe fosse útil, acrescentando mais uma perspetiva às suas outras fontes, para a escrita do seu livro atual ou de outras obras no futuro.
Se, por acaso, estes dados não lhe forem úteis, talvez me pudesse pôr em contacto com alguém que os queira usar. Se estiver interessado em obter mais informações ou se quiser examinar o meu motel e as minhas atividades, escreva-me por favor para a minha caixa postal abaixo indicada, ou indique-me como o poderei contactar. De momento, não posso revelar -lhe a minha identidade, por causa dos meus interesses comerciais, mas revelar-lha-ei assim que me garantir que guardará sigilo absoluto.
Espero receber uma resposta sua. Obrigado.
Os meus cumprimentos,
Caixa 31450
Aurora, Colorado
80041
Depois de receber a carta, pu-la de parte durante uns dias, sem saber como responder, ou sequer se devia responder. Fiquei profundamente perturbado com a maneira como este indivíduo tinha violado a confiança dos seus clientes e invadido a privacidade deles. E sendo eu um autor de não-ficção que teima em usar nomes verdadeiros em artigos e livros, tive de imediato consciência de que não aceitaria a condição de anonimato que ele me impusera, embora, como a própria carta sugeria, ele não tivesse propriamente alternativa. Para evitar uma pena de prisão, além de prováveis processos na justiça que o poderiam levar à falência, tinha de guardar para si a privacidade que negara aos seus hóspedes. Podia um homem destes ser uma fonte fidedigna?
Ainda assim, quando reli algumas das suas frases manuscritas – “Fi-lo única e simplesmente devido à minha curiosidade desmedida acerca das pessoas e não como um mero voyeur louco” e “fiz um rigoroso registo da maioria dos indivíduos que observei” –, tive de admitir que os métodos de investigação dele eram semelhantes aos que usei em Thy Neighbor’s Wife. Eu, por exemplo, tirei apontamentos em segredo, enquanto geri salões de massagens em Nova Iorque e convivi com swingers no Retiro de Sandstone, uma comunidade nudista em Los Angeles; e o meu livro sobre o New York Times, The Kingdom and the Power, publicado em 1969, começa com a frase: “Os jornalistas, na sua maioria, são voyeurs irrequietos que veem as verrugas do mundo, as imperfeições das pessoas e dos lugares.” Mas as pessoas que observei e sobre as quais escrevi tinham-me dado o seu consentimento para o fazer.
Recebi esta carta em 1980 e só seis meses depois é que Thy Neighbor’s Wife foi lançado, mas já tinha havido imensa publicidade ao livro. O New York Times publicara um artigo, na edição de 9 de outubro de 1979, dizendo que a United Artists tinha acabado de comprar os direitos cinematográficos do livro por 2,5 milhões de dólares, batendo o recorde de 2,15 milhões de dólares pagos pelos direitos de Tubarão.
Um excerto de Thy Neighbor’s Wife tinha saído na Esquire uns anos antes, também na década de 1970, e mais tarde foi alvo de dezenas de artigos em revistas e jornais. Foi o meu método de pesquisa que chamou a atenção dos jornalistas: geri salões de massagens em Nova Iorque, analisei o negócio do sexo em cidades pequenas e grandes na zona central dos EUA, no sudoeste e no sul profundo, e vivenciei em primeira mão os factos que recolhi instalando-me como nudista, durante meses, no Retiro de Sandstone para swingers, em Topanga Canyon, Los Angeles.
O livro, quando saiu, saltou de imediato para o top de vendas do Times; ficou em primeiro lugar durante nove semanas consecutivas e vendeu milhões de exemplares nos EUA e no estrangeiro. Se o indivíduo que me escrevera do Colorado era, para usar as palavras dele, “um voyeur louco” – ao estilo do proprietário do Motel Bates no filme Psico, de Alfred Hitchcock, ou do fotógrafo assassino de A Vítima do Medo, de Michael Powell – ou, ao invés, um homem inofensivo de “curiosidade desmedida” como o fotojornalista encarnado por Jimmy Stewart em A Janela Indiscreta, de Hitchcock, ou então um simples mentiroso, isso era uma coisa que eu só poderia saber se aceitasse o convite para nos conhecermos ao vivo.
Como eu tinha planeado ir a Phoenix no final do mês, decidi enviar-lhe uma carta com o meu número de telefone, oferecendo-me para passar pelo aeroporto de Denver, no regresso a Nova Iorque, e sugerindo que nos encontrássemos na recolha de bagagens, no dia 23 de janeiro, às 16 horas. Uns dias depois, ele deixou-me uma mensagem no atendedor de chamadas, a dizer que lá estaria… e lá estava, de facto. Saiu do meio de uma multidão de pessoas à espera das malas e abordou-me quando me aproximei do tapete rolante.
– Bem-vindo a Denver – disse, com um sorriso, empunhando na mão esquerda a carta que eu lhe enviara.
– Chamo -me Gerald Foos.
A minha primeira impressão foi que aquele afável desconhecido se parecia com pelo menos metade dos homens que tinham vindo no meu voo em classe executiva. Gerald Foos andava na casa dos quarenta e picos, tinha a pele clara, olhos cor de avelã, cerca de 1,82 metros e uns quilitos a mais. Vestia um casaco de lã castanho-amarelado, com os botões desapertados, e uma camisa de colarinho aberto que parecia demasiado pequena para o pescoço grosso e musculoso. Tinha as faces escanhoadas e uma cabeleira escura muito bem cortada, com a risca ao lado; e, por detrás dos grossos aros de tartaruga dos óculos, exibia uma expressão invariavelmente simpática, digna de um estalajadeiro.
Depois de darmos um aperto de mão e trocarmos meia dúzia de palavras de circunstância, enquanto esperávamos pela minhabagagem, aceitei o convite para me instalar como hóspede no motel durante uns dias.
– Fica num dos quartos que não me dão privilégios de observador – anunciou, com um sorriso despreocupado.
– Está bem – respondi –, mas posso juntar -me a si quando estiver a observar outras pessoas?
– Pode – disse ele. – Talvez hoje à noite. Mas só depois de a Viola, a minha sogra, se ter ido deitar. Ela é viúva e trabalha connosco, vive num dos quartos do nosso apartamento nas traseiras do escritório. A minha mulher e eu tivemos o cuidado de nunca lhe contar o nosso segredo e, como é óbvio, o mesmo se aplica aos nossos filhos. O sótão onde ficam as vigias está sempre trancado. Só a minha mulher e eu é que temos as chaves do sótão. Como expliquei na minha carta, nestes quinze anos nunca nenhum hóspede desconfiou que estava a ser observado.
Tirou do bolso do peito uma folha dobrada e deu-ma.
– Espero que não se importe de ler isto e assinar – disse. – Permitir-me -á ser completamente franco consigo e não ter qualquer problema em lhe mostrar os cantos todos do motel.
Era um documento de uma página, cuidadosamente datilografado, a declarar que eu nunca o identificaria pelo nome nos meus textos, nem associaria publicamente o motel a quaisquer informações que partilhasse comigo, até me dar autorização expressa para o fazer. Basicamente, repetia as preocupações que ele expressara na sua carta de apresentação. Depois de ler o documento, assinei-o. Que importância tinha? Já tomara a decisão de não escrever sobre Gerald Foos sob essas restrições. Fora a Denver simplesmente para conhecer aquele homem de “curiosidade desmedida acerca das pessoas” e para saciar a minha própria curiosidade desmedida acerca dele.
Quando a minha bagagem chegou, ele fez questão de a carregar, por isso segui-o pelo terminal até ao parque de estacionamento e daí até um Cadillac preto, todo reluzente. Depois de guardar a bagagem na mala do carro e de me fazer sinal para me sentar no lugar do morto, ligou a ignição. Respondeu ao meu elogio sobre o automóvel dizendo que também tinha um Lincoln Continental Mark V novo, mas o seu motivo de orgulho eram os três Thunderbirds antigos, um deles descapotável, de 1955, e dois de capota rígida, de 56 e 57. Acrescentou que Donna, a sua mulher, conduzia um Mercedes-Benz 220S de 1957, vermelho.
– A Donna e eu casámo -nos em 1960 – disse ele, dirigindo-se para a saída do aeroporto antes de entrar na autoestrada para iniciarmos a nossa viagem até ao motel, situado na cidade suburbana de Aurora. – Andámos no mesmo liceu, numa povoação chamada Ault, a aproximadamente cem quilómetros a norte daqui. Tinha cerca de mil e trezentos habitantes, na sua maioria agricultores e rancheiros. – Os pais dele eram donos de uma quinta de sessenta hectares e tinham ascendência alemã. Foos descreveu-os como pessoas de confiança, trabalhadoras e bondosas, que faziam tudo por ele… “exceto falar sobre sexo”. Todos os dias, a mãe vestia -se de manhã na casa de banho do quarto dos pais e ele nunca vira nenhum dos dois denotar o mínimo interesse por sexo. – E por isso, como era muito curioso em relação a sexo, já em adolescente… com tanto animal na quinta, como é que uma pessoa podia não pensar em sexo?… interessei-me pelo que se passava fora de casa dos meus pais, para aprender o que pudesse sobre as vidas privadas das pessoas.
Não teve de ir muito longe, explicou, conduzindo o carro lentamente por entre o trânsito suburbano. Numa quinta ao lado da dos pais, a cerca de setenta metros de distância, vivia Katheryn, uma das irmãs mais novas da mãe. Quando começou a espiar a tia Katheryn, ela devia ter trinta e poucos anos e ele descreveu-a como tendo “o peito grande, um corpo atlético e esguio, e uma cabeleira ruiva flamejante”. Costumava andar nua pelo quarto, à noite, com as luzes acesas e as portadas abertas, e ele espreitava-a por cima do peitoril – “uma traça atraída por uma chama” – e ficava ali escondido durante mais ou menos uma hora, a observá-la e a masturbar -se.
– Foi por causa dela que comecei a masturbar -me.
Espiou-a durante cinco ou seis anos e nunca foi apanhado.
– Às vezes, a minha mãe apanhava-me a esgueirar-me de casa e perguntava: “Onde é que vais a esta hora?” e eu inventava uma desculpa qualquer, do estilo que ia ver se os cães estavam bem, porque me parecia ter ouvido coiotes lá fora.
Depois, dirigia-se sorrateiramente para a janela da tia Katheryn, na esperança de que ela estivesse nua, a passear pelo quarto ou, por exemplo, sentada ao toucador a arrumar a sua coleção de bonecas de porcelana em miniatura, da Alemanha, ou a sua preciosa coleção de dedais, que guardava num armário de madeira com as portas de vidro, pendurado na parede do quarto.
– Às vezes, o marido, o meu tio Charley, também estava no quarto, quase sempre a dormir profundamente. Como bebia muito, era pouco provável que acordasse. Uma vez, vi -os a ter relações sexuais e fiquei aborrecido. Com ciúmes. Ela era minha, pensei. Já tinha visto mais partes do corpo dela do que ele. Sempre o considerei um tipo rude que não a tratava como ela merecia. Eu estava apaixonado.
Continuei a ouvir, sem fazer comentários, embora estivesse surpreendido com a franqueza de Gerald Foos. Conhecia-o há menos de meia hora e já ele estava a desabafar comigo pormenores sobre as suas obsessões masturbatórias e a origem do seu voyeurismo. Enquanto jornalista e provedor da minha própria curiosidade, não me lembro de ter conhecido ninguém que exigisse tão pouco de mim como ele. Demorei anos a ganhar a confiança de Bill Bonanno, chefe da máfia, o sujeito do meu livro Honra o Teu Pai, anos a escrever cartas, a visitar o advogado dele, a jantar com ele “off the record”. Por fim, conquistei a sua confiança, convenci-o a quebrar o código de silêncio da máfia e conheci a mulher e os filhos dele. Mas Gerald Foos não tinha esse tipo de relutância.
Encarregou-se de fazer a conversa toda, enquanto eu, o seu confidente seguro, de declaração assinada, me limitei a ouvi -lo no carro. O carro era o seu confessionário.
– Não tive relações sexuais no liceu – continuou ele –, mas naquele tempo quase ninguém tinha. Foi lá que conheci a minha mulher, como já disse, mas a Donna e eu não namorámos nessa altura. Ela andava dois anos abaixo de mim. Era estudiosa e discreta, e bastante bonita, mas eu estava interessado numa das raparigas da claque da nossa equipa de futebol. Eu era uma das estrelas da equipa, jogava como running back. Durante cerca de dois anos, namorei com uma rapariga da claque, uma miúda linda chamada Barbara White. Os pais dela tinham um restaurante na rua do comércio. Não houve sexo, como disse, mas houve muitos beijos e abraços depois das aulas, no banco da frente da minha carrinha Ford de 1948. Uma noite, estávamos estacionados atrás da casa das bombas de água, no extremo norte da povoação, e eu tentei descalçar-lhe os sapatos. Queria ver os pés dela. Tinha umas mãos bonitas e um corpo esguio… ainda estava de uniforme da claque e eu queria simplesmente ver-lhe e segurar -lhe nos pés. Ela não gostou. Como insisti, ficou furiosa e saltou da carrinha. Depois, arrancou a corrente que levava ao pescoço e atirou-me o meu anel à cara.
– Não a segui até casa – prosseguiu. – Percebi que estava tudo acabado entre nós. Ela viu-me no dia seguinte no liceu e tentou dizer qualquer coisa, mas já não valia a pena. Eu tinha perdido a confiança dela e não a conseguiria recuperar. A nossa relação tinha chegado ao fim. Fiquei triste, confuso e um bocado frustrado. Foi no final do meu último ano. Precisava de fugir dali. As pessoas eram um mistério para mim. Decidi alistar -me na Marinha. Gerald Foos contou que passara os quatro anos seguintes em serviço no Mediterrâneo e no Extremo Oriente, tendo -se especializado em demolição subaquática, e, sempre que tinha licença para ir a terra, alargava os seus conhecimentos sobre sexo sob a orientação de prostitutas de bar.
“As minhas tendências voyeurísticas atenuaram-se”, escreveu Gerald, mais tarde. “Houve algumas ocasiões em que me tornei novamente voyeur, nesses anos, mas, regra geral, participei no máximo de aventuras sexuais que pude. Foi uma época de aprendizagem e experiência, para mim, e aproveitei as viagens com a Marinha para descobrir tudo o que me foi possível. Andei embarcado durante dois anos, a viajar de porto em porto e a visitar todos os bordéis desde a zona do Mediterrâneo até ao Extremo Oriente. Foi excelente, mas continuava à procura de respostas e a querer perceber a questão complexa do que se passa na intimidade. A minha ideia de felicidade absoluta era poder invadir a intimidade dos outros sem eles saberem.”
Mas também continuou a masturbar-se lembrando-se da tia Katheryn, disse ele, acrescentando:
– Há uma imagem específica dela, nua na casa de banho, a acariciar uma das bonecas de porcelana, que me ficou na cabeça e provavelmente ficará para sempre.
O comentário dele lembrou-me a cena muito conhecida do filme “O Mundo a Seus Pés” (“Citizen Kane”), de 1941, em que o Sr. Bernstein (interpretado por Everett Sloane) está a contar as suas reminiscências a um repórter: “Um tipo lembra -se de muitas coisas que ninguém diria que ficariam na memória. Veja o meu caso. Um dia, em 1896, estava no ferry a caminho de Jérsia e, quando partimos, vinha outro ferry a chegar ao cais e a bordo vi uma rapariga, à espera de desembarcar. Envergava um vestido branco e tinha uma sombrinha branca na mão e só a vi durante um segundo e ela não me viu sequer… mas, desde então, não há mês que passe em que eu não me lembre daquela rapariga.”
Pouco antes de Gerald Foos ser dispensado da Marinha, em 1958, enquanto visitava os pais em Ault, a mãe disse que se tinha cruzado, na rua do comércio, com uma colega dele do liceu, Donna Strong, que estava a estudar enfermagem em Denver. Gerald contactou Donna de imediato (Barbara, a amiga chefe de claque, já se tinha casado) e, pouco depois, Gerald e Donna iniciaram uma relação que os levou ao casamento, em 1960.
Por essa altura, Donna tinha um emprego de enfermeira a tempo inteiro num hospital, na comunidade suburbana de Aurora, enquanto Gerald trabalhava como auditor na sede da Conoco em Denver. Disse que o trabalho era horrível, passava os dias sentado num cubículo a analisar os registos dos níveis dos tanques de petróleo no Colorado e nos estados vizinhos. O seu principal escape ao tédio eram as suas “excursões voyeurísticas” em Aurora, onde ele e Donna arrendavam um apartamento num segundo andar perto do hospital onde ela trabalhava. Passeava pelos bairros muitas vezes a pé, embora por vezes fosse de carro, tirando proveito das pessoas que não se preocupavam em baixar os estores ou não se importavam com olhares intrusivos. O seu voyeurismo não era segredo para Donna.
– Antes mesmo de nos casarmos – disse –, contei -lhe que tinha uma curiosidade obsessiva pelas pessoas e que gostava de as observar sem elas saberem. Contei-lhe que isso me excitava e me dava uma sensação de poder, e expliquei -lhe que havia montes de homens como eu. – Ela pareceu compreender – continuou ele, e não ficou nada chocada com as suas confissões. – Acho que o facto de ser enfermeira me facilitou a vida. A Donna e a maior parte das enfermeiras têm o espírito muito aberto. Já viram de tudo, morte, doença, dor, todo o tipo de distúrbios, e é preciso muito para ficarem chocadas. Pelo menos a Donna não ficou.
Não só não ficou chocada, prosseguiu ele, como até o acompanhava de vez em quando nas suas excursões voyeurísticas e, uma noite, depois de terem assistido juntos a cenas de preliminares ou de sexo consumado, que Donna considerou interessante se não mesmo estimulante, ela perguntou-lhe: “Tiras apontamentos sobre o que vês?” “Nunca tinha pensado nisso”, respondeu ele. “Era capaz de ser boa ideia”, disse Donna. “Vou pensar nisso”, retorquiu Gerald e, pouco depois, começou a escrever um diário que, nos anos 70, já ia em várias centenas de páginas, sendo quase todos os seus apontamentos sobre o que ele via (e por vezes, o que Donna via com ele) desde que tinham comprado em conjunto o Motel Manor House, no número 12700 da East Colfax Avenue, em Aurora.
– Estamos quase a chegar ao motel – anunciou Gerald Foos, conduzindo ao longo da East Colfax Avenue, atravessando um bairro branco de classe trabalhadora com muitos edifícios baixos: lojas, moradias unifamiliares, um parque de rulotes, um Burger King, uma oficina de automóveis e um velho cinema da Fox que lembrava a Foos um dos seus filmes preferidos, “A Última Sessão”. A Colfax era muito movimentada, a principal artéria que atravessava a zona de leste a oeste. Especialmente no seu troço situado em Denver, a Colfax era uma rua famosa, que em tempos a Playboy rotulou de “a avenida mais comprida e pecaminosa da América”.
Gerald disse que havia 250 motéis ao longo da Colfax. Um deles era o Riviera Motel, de dois andares, que Foos pensara em comprar um dia (contou que inicialmente visitara o Riviera como mirone, espiando os seus caminhos e as janelas iluminadas dos quartos do rés do chão); mas, em vez desse, decidira-se pelo Manor House, de um só piso, porque tinha o telhado íngreme com uma altura de quase dois metros, no meio, o suficiente para ele poder atravessar o sótão de pé e, se criasse umas aberturas discretas nos tetos dos quartos dos hóspedes, poderia contemplar o que se passava dentro deles.
Por conseguinte, pouco tempo depois, abordou o proprietá- rio do Manor House, um senhor idoso com problemas de saúde, chamado Edward Green. Foos desconfiou que o Sr. Green estava desejoso de vender e, assim sendo, arrebatou de imediato a propriedade por 145 mil dólares. Como entrada, Foos disse que deu cerca de 25 mil dólares que guardara da herança do avô paterno e outros 20 mil da venda de uma casa em Aurora que ele e Donna tinham comprado no terceiro ano de casamento.
– A Donna não ficou particularmente feliz com a ideia de abdicarmos da nossa casa e vivermos no motel, nos aposentos do gerente – explicou –, mas eu prometi-lhe que compraríamos outra casa, assim que tivéssemos dinheiro para isso. Também concordei que a Donna não devia largar a carreira de enfermeira, que ela adorava, para trabalhar a tempo inteiro atrás do balcão de uma receção. Foi nessa altura que eu sugeri que a Viola, a mãe dela, nos ajudasse a gerir o motel. O pai da Donna tinha abandonado a família quando a Donna era pequena. Era um músico talentoso e um ótimo carpinteiro, mas bebia demais. Depois de nos casarmos, ele aparecia de vez em quando a implorar para ela lhe emprestar dinheiro que ele nunca devolvia. Lembro-me de ele ter vindo, uma vez, ao nosso apartamento no segundo andar e de a Donna lhe ter dado todos os dólares que tinha na carteira, mais de cinquenta, se não me engano. Quando ele se foi embora, peguei nos binóculos e vi -o, pela janela do segundo andar, a atravessar a estrada e a dirigir-se para a loja de bebidas alcoólicas mais próxima.
Foos abrandou na East Colfax Avenue, virou à direita para a Scranton Street e depois à esquerda para o parque de estacionamento do Motel Manor House, um edifício de tijolo cuidadosamente pintado de verde, com portas cor de laranja que davam para os vinte e um quartos de hóspedes.
– Parece que estamos cheios – comentou, olhando pelo para-brisas e reparando que quase todos os espaços demarcados por linhas brancas à frente das portas laranja estavam ocupados por veí culos. A seguir, estacionou junto de um edifício adjacente mais pequeno, composto por um escritório com duas salas, os aposentos familiares e, mais ao fundo, três quartos isolados, com portas cor de laranja numeradas “22”, “23” e “24”, todos eles equipados com uma sala e uma pequena cozinha. Segui Foos, que levava a minha bagagem, e no escritório esperava-nos Donna, uma loura franzina, de olhos azuis e farda de enfermeira. Cumprimentámo-nos com um aperto de mão e ela explicou que estava de saída para o hospital, ia fazer o turno da noite, mas teria todo o gosto em me ver no dia seguinte de manhã. A mãe dela, Viola, uma senhora grisalha e de óculos, que estava sentada a uma secretária a falar ao telefone, acenou-me com a mão e sorriu -me, e voltou a acenar quando saí porta fora com Foos. Atravessámos um estreito carreiro de pedra em direção ao quarto onde eu ia ficar, o número 24, ao fundo do edifício mais pequeno.
– Isto está mais sossegado do que é hábito – disse Foos.
– Já nenhum dos nossos filhos vive cá connosco. O rapaz, o Mark, entrou para a School of Mines, no Colorado, e a Dianne, que nasceu com um problema respiratório, teve de desistir do liceu para fazer um tratamento no hospital. A Donna vai vê -la sempre que pode, no intervalo das rondas, e eu também lá vou regularmente, regra geral de manhã.
Foos pousou a minha bagagem à frente do Quarto n.º 24 e, depois de abrir a porta com a chave, ligou o ar condicionado e colocou a minha bagagem junto do roupeiro.
– Arrume as suas coisas e instale -se à vontade – sugeriu ele – e, daqui a uma hora, eu chamo -o e vamos a um restaurante novo que é ótimo, o Black Angus. Depois, voltamos para cá e faço-lhe uma visitinha guiada ao sótão.”